segunda-feira, 21 de maio de 2012

“Felizmente Há Luar!”, de Luís de Sttau Monteiro

análise da obra de Sttau Monteiro - "Felizmente Há Luar!"
Como afirma Vitor Manuel Aguiar e Silva, no início dos anos 60 «de forma embrionária, balbuciante nos seus primeiros passos na cena portuguesa, a lição brechteana dava os seus primeiros frutos...» O primeiro passo era a peça O Render dos Heróis de José Cardoso Pires, o passo seguinte - Felizmente Há Luar! de Luís de Sttau Monteiro (1961). Este último devia ter disto perfeita consciência, já que assim redigiu as didascálias iniciais: «(...) Este gesto é francamente "representado". O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário são apenas elementos duma linguagem a que tem de adaptar-se. (...) Pretende-se criar, desde já no público, a consciência de que ninguém, no decorrer desta peça, vai esboçar um gesto para cativar ou para acamaradar com ele. (O réu não se senta ao lado dos juízes).» (Monteiro 2008). Encontramos aqui uma referência directa ao conceito brechteano do teatro épico, bem como ao de distanciamento ou estranhamento, já referidos na entrada passada. De maneira parecida ao que fez Cardoso Pires na sua obra, Luís de Sttau Monteiro também situa a acção da sua peça no século XIX, nomeadamente no ano 1817, e aproveita factos históricos relacionado com uma tentativa falhada de revolta popular, supostamente chefiada pelo general Gomes Freire d'Andrade. Durante a peça podemos observar os bastidores do poder, personalizado nas figuras de D. Miguel Forjaz, Beresford e Principal Sousa, e o seu estranho "jogo" que visa o aniquilamento da insurreição pressentida. Devido à falta de provas, é urgente encontrar um bode expiatório - o carismático general Gomes Freire d'Andrade. D. MIGUEL: Senhores Governadores: aí tendes o chefe da revolta. Notai que lhe não falta nada: é lúcido, é inteligente, é idolatrado pelo povo, é um soldado brilhante, é grão-mestre da Maçonaria e é, senhores, um estrangeirado... (Monteiro 2008: 71). Vitor Manuel Aguiar e Silva chama a atenção para o facto que «em virtude das profundas mutações que a sociedade portuguesa pós 25 de Abril registou, obras como as de Sttau Monteiro (para além de Felizmente Há Luar!) surgem-nos como irremediavelmente datadas» (grifo do autor). Por conseguinte, para descodificar todo o subtexto e descobrir paralelismos com a situação vigente na altura em que a obra foi escrita, precisamos do contexto histórico em que ela surgiu e que é: - o início da guerra colonial em Angola (1961); - as múltiplas exposições de contestação interna (greves, movimentos estudantis); - os pequenos "goples palacianos" preanunciadores de clivagens internas, no seio do próprio Poder; - o crescente aparecimento do movimentos de opinião organizados a par da oposição política que, embora reprimida, fazia sentir a sua voz, nomeadamente na exigência de eleições livres (Aguiar e Silva). O aparecimento desta narrativa dramática coincide então com o crescente descontentamento de intelectuais politicamente mais preparados. Assim como pouco tempo antes O Render do Heróis de José Cardoso Pires, também a obra de Luís de Sttau Monteiro aproveita personagens e factos históricos como uma estrutura base que serve para lembrar aos contemporâneos que a história costuma repetir-se e será bom ter em conta lições dos seus acontecimentos. MONTEIRO, Luís Sttau (2008) Felizmente Há Luar! Porto, Areal Editores.
Contextualização A história desta peça passa-se na época da revolução francesa de 1789. As invasões francesas levaram Portugal à indecisão entre os aliados e os franceses. Para evitar a rendição, D. João V foge para o Brasil. Depois da primeira invasão, a corte pede auxilio a Inglaterra para reorganizar o exército. Estes enviam-nos o general Beresford. Luís de Sttau Monteiro denuncia a opressão vivida na época do regime salazarista através desta época particular da história. Assim, o recurso à distanciação histórica e à discrição das injustiças praticadas no inicio do século XIX, permitiu-lhe, também, colocar em destaque as injustiças do seu tempo, o abuso de poder do Estado Novo e as ameaças da PIDE, entre outras. “Felizmente Há Luar!” é um texto bifronte, um texto entre dois contextos, relativo a dois tempos, o passado e o presente, estando aquele ao serviço deste. Trata-se de uma metáfora, no sentido em que muitas das situações apresentadas no seu contexto oitocentista se podem transpor para o tempo da escrita e da representação, as décadas de 50 e 60 do século XX. Pode ser considerado uma metáfora do seu próprio tempo, metáfora didáctica que apela à razão para que através desta se atinja uma consciência social e política. Uma leitura atenta do texto, com o objectivo de encontrar pontes de sentido que permitam a ligação dos dois contextos referidos, pode iniciar-se com as referências que a didascália “Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores” indica, conjugada com “Ouve o som dos tambores” e “(Todos se levantam e escutam a medo [...] e preparam-se para fugir [...])“. O ruído dos tambores funciona como metonímia de um poder repressor, sempre presente tanto no contexto político absolutista como no fascista. Repare-se que os tambores são ouvidos por populares que estão reunidos para comentar a situação política e fazem-no a medo: a mesma situação ocorria frequentemente sob o regime salazarista onde qualquer reunião era tida como potencialmente suspeita consequentemente, reprimida. Esta questão da falta de liberdade de reunião e expressão surge logo de seguida no texto quando o Antigo Soldado entoa uma quadra onde se refere explicitamente a “liberdade”. Na continuação da conversa entre os populares, surge a referência ao general Comes Freire, classificado entusiasticamente pelo Antigo Soldado como “Um amigo do povo!”. Através de Manuel que diz, referindo-se ao general, “Se ele quisesse, lança-se a semente da esperança com a possibilidade de acção do general em direcção à liberdade ansiada. Ora é este momento precisamente que mais deve ter tocado o leitor/espectador da obra, as pessoas empenhadas na luta antifascista em Portugal nas décadas atrás referidas: de facto, rapidamente terão estabelecido uma relação de proximidade, senão de identificação, entre o general Gomes Freire e o general Humberto Delgado. Esta analogia terá sido pois apreendida pelos primeiros leitores da obra. O contributo do general Gomes Freire para a alteração da situação política do seu tempo possibilitado pela didascália a propósito do silêncio que as palavras ousadas de Manuel provocaram: “Este silêncio é pesado. [...] Ainda têm nos ouvidos o ruído dos tambores, símbolo de uma autoridade sempre presente e sempre pronta a interferir”. É contra esta “autoridade” repressiva que Gomes Freire se poderá eventualmente levantar; do mesmo modo que Humberto Delgado o tentou fazer: a identificação é indiscutível. E se se atentar nas palavras de Vicente, logo de seguida, “Se ele quisesse? Mas se ele quisesse o quê? Vocês ainda não estão fartos de generais?”, melhor se pode aprofundar a leitura que vê em Gomes Freire o general Humberto Delgado: de facto, também aquando da sua candidatura, havia sectores da esquerda portuguesa que não o viam com bons olhos, precisamente por ser um militar saído do exército que sustentava o regime. É o mesmo Vicente que lança uma acusação a Gomes Freire, indiciando-o como “estrangeirado”, referindo-se à sua formação austríaca e francesa: como se sabe, ele tomou nesses países contacto com as novas ideias políticas saídas da Revolução Francesa. Também Humberto Delgado terá tomado consciência das virtudes da liberdade política enquanto adido militar nos Estados Unidos. A concepção da personagem Vicente contribui para estabelecer identificações entre os dois tempos. Ela pode ser considerada um bom exemplo do tipo pidesco que pululou em Portugal durante o Estado Novo: de origem popular, trai o povo a que pertence para subir na vida. Também a grande maioria da polícia política fascista passou por um percurso semelhante. E, se se atentar nas palavras da mesma personagem mais adiante, pode afirmar-se que elas remeteram sem dúvida os leitores de Sttau Monteiro para a figura máxima do regime nesse tempo: Salazar. De facto o percurso social e político do ditador está bem sintetizado por Vicente: “Os degraus da vida são logo esquecidos por quem sobe a escada... Pobre de quem lembre ao poderoso a sua origem... Do alto do poder, tudo o que ficou para trás é vago e nebuloso”. É precisamente o poder que aparece seguidamente na peça: absolutista, com características que permitem imediata aproximação ao fascismo do Estado Novo. O governo absolutista apresenta-se como uma trindade: uma componente civil (D. Miguel), uma religiosa (Principal Sousa) e uma militar (Beresford), que sustenta as duas anteriores. Também o regime fascista apresentava esta estrutura: Salazar no poder civil, Cerejeira no religioso e o exército como sustentáculo do regime. De tal modo que, quando o exército não quis, o regime caiu. A ligação entre o poder político e o religioso é proclamada pelo Principal Sousa: “Diz o Eclesiastes que, tendo Deus dividido o género humano em várias nações, a cada uma delas deu um príncipe que a governasse... É de origem divina o poder dos reis e é portanto a sua—e não a do povo — a voz de Deus” . Estes três esteios do poder conspiram entre si para manter o estado de coisas a nível político. Num contexto social que dá indícios de agitação por comunhão com as ideias de liberdade que sopram de França e do Brasil — não será por acaso que D. Miguel fala da “revolta de Pernambuco”, movimento que punha em causa a origem divina do poder real, uma revolta passada na colónia que era uma democracia ao tempo da escrita da peça — num contexto em que, nas palavras de D. Miguel, “o povo fala abertamente em revolução”, reflecte-se o ambiente de esperança na liberdade que se vivia em Portugal nos últimos anos da década de 50, exacerbada pela candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Outra referência que permite a identificação dos dois tempos, e que funciona como denúncia do obscurantismo em que o poder fascista mantinha o povo, ocorre quando, propondo Vicente ao Principal Sousa que se ensine o povo a ler, o prelado responde: “[...] a sabedoria é tão perigosa como a ignorância!”: ora o mesmo pressuposto fez com que o poder ditatorial em Portugal investisse muito pouco na alfabetização das camadas populares, como ainda hoje se sente. Esta questão do ensino é abordada de novo mais adiante pelo Principal Sousa, que informa os colegas de triunvirato que “[...I é cada vez maior o número dos que só pensam aprender a ler...” . A mesma personagem prenuncia o “orgulhosamente sós” que será anos mais tarde bandeira do regime salazarista, quando afirma: “Temos uma missão a cumprir, uma missão sagrada e penosa: a de conservar no jardim do Senhor este pequeno canteiro português. Enquanto a Europa se desfaz, o nosso povo tem de continuar a ver, no Céu, a Cruz de Ourique”. A união dos três poderes referidos, existente tanto no estertor do absolutismo como durante os anos da ditadura em Portugal, aparece nítida na didascália “(Ilumina-se o palco. D. Miguel Forjaz, Beresford e o Principal Sousa estão sentados em três cadeiras pesadas e ricas com aparência de tronos)”.´ O poder discricionário absolutista/fascista, o tipo de justiça programada/manipulada que em ambos os regimes ocorre, está patente na conjura que se arma contra Gomes Freire. Diz D. Miguel, dirigindo-se ao Principal Sousa: “Reverência, as provas judiciais pertencem ao domínio da razão e, se não pudermos condenar nesse domínio, faremos com que o julgamento decorra no outro, o da emoção, já que a emoção, Reverência, nem carece de provas, nem se apoia na razão”. Pouco depois D. Miguel e o Principal Sousa traçarão o programa desta irrupção da emoção como contributo para destruir Gomes Freire. Um dos momentos do texto em que melhor se verifica a identificação entre Humberto Delgado e Gomes Freire ocorre quando Morais Sarmento adverte os governantes de que a conspiração de Gomes Freire se destina a “implantar neste reino o sistema das cortes”, isto é, a democracia representativa; ora também Humberto Delgado não fizera segredo do destino que pretendia dar a Salazar no caso de ser eleito, e sabe-se que o objectivo do derrube da ditadura implicava o aparecimento da democracia parlamentar tal como quase toda a Europa ocidental a conhecia então e como a conhecemos nós desde o 25 de Abril de 1974. Outras situações que nos permitem ainda a transposição de tempos referida são as seguintes: Gomes Freire e os outros onze presos funcionam como denúncia dos presos políticos do regime salazarista; Beresford representa a ajuda estrangeira ao regime do Estado Novo, ajuda que, embora consciente da natureza política fascista deste, sempre existiu; Andrade Corvo e Morais Sarmento, juntamente com Vicente e os dois polícias, são o espelho de organizações de denúncia e repressão como a Legião Portuguesa ou a PIDE/DGS; Matilde pode ser considerada o reflexo de mães, esposas, irmãs de presos políticos, que vão adquirindo consciência política com a situação do familiar; populares como Manuel, Rita ou o Antigo Soldado representam a população que, embora acreditando na acção do general Humberto Delgado, não apresenta capacidade de acção e acaba marcada pela desesperança; de Sousa Falcão se pode dizer que aponta para todos aqueles que, embora amigos de presos políticos e conscientes da ditadura e da necessidade de agir, não ousam actuar; finalmente, Frei Diogo, pode ser entendido como metonímia dos elementos do clero católico que, conhecedores da situação de opressão e miséria do povo, não ousam levantar a voz.
Carácter épico “Felizmente Há Luar! ” é um drama narrativo, de carácter social, dentro dos princípios do teatro épico, na linha do teatro de Brecht exprime a revolta contra o poder e a convicção de que é necessário mostrar o mundo e o homem em constante devir. Defende as capacidades do homem que tem o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. Por isso, oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar posição. Inspirado na teoria marxista, que apela às reflexão, não só no quadro da representação, mas também na sociedade em que se insere. De acordo com Brecht, Sttau Monteiro pretende representar o mundo e o homem em constante evolução de acordo com as relações sociais. Estas características afastam-se da concepção do teatro aristotélico que pretendia despertar emoções, levando o publico a identificar-se com o herói. O teatro moderno tem como preocupação fundamental levar os espectadores a pensar, a reflectir sobre os acontecimentos passados e a tomar posição na sociedade em que se inserem. Surge, assim, a técnica do distanciamento que propõem um afastamento entre o actor e a personagem e entre o espectador e a história narrada, para que, de uma forma mais real e autêntica, possam fazer juízos de valor sobre o que se está a ser representado. Desta forma, o teatro já não se destina a criar terror ou piedade, isto é, já não tem uma função purificadora, realizada através das emoções, tendo, então, uma capacidade crítica e analítica para quem o observa. Brecht pretendia substituir o “sentir” por “pensar”, levando o público a entender de forma clara a sua mensagem por meio de gestos, palavras, cenários, didascálicas e focos de luz. Estes são, também, os objectivos de Sttau Monteiro, que evoca situações e personagens do passado (movimento liberal oitocentista), usando-as como pretexto para falar do presente (ditadura salazarista) e, assim, pôr em evidencia a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a injustiça e todas as formas de perseguição. Paralelismo entre passado e as condições históricas dos anos 60: denuncia da violência Século XIX – 1817 Século XX – anos 60 Agitação social que levou à revolta de 1820 Agitação social: conspirações internas; principal erupção da guerra colonial Regime absolutista e tirano Regime ditatorial salazarista Classes hierarquizadas, dominantes, com medo de perder privilégios Classes exploradas; desigualdade entre abastados e pobres Povo oprimido e resignado Povo reprimido e explorado Miséria, medo, ignorância, obscurantismo mas “felizmente há luar” Miséria, medo, analfabetismo, obscurantismo mas crença nas mudanças Luta contra a opressão do regime Luta contra o regime totalitário e ditatorial Perseguições dos agentes de Beresford Perseguições da PIDE Denúncias de Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento Denúncias dos delatores Censura à imprensa Censura total Repressão dos conspiradores; execução sumária e pena de morte Prisão; duras medidas de repressão e tortura; condenação sem provas Execução de Gomes Freire Execução de Humberto Delgado Revolução de 1820 Revolução do 25 de Abril de 1974 - Características da obra: - personagens psicologicamente densas e vivas - comentários irónicos e mordazes - denúncia da hipocrisia da sociedade - desfesa intransigente da justiça social - teatro épico: oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar uma posição - intemporalidade da peça remete-nos para a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a traição, a injustiça e todas as formas de perseguição - preocupação com o homem e o seu destino - luta contra a miséria e a alienação - denúncia a ausência de moral - alerta para a necessidade de uma superação com o surgimento de uma sociedade solidária que permitia a verdadeira realização do homem Personagens A análise das personagens em Felizmente Há Luar! leva a questionar o seu estatuto. Com efeito, Gomes Freire de Andrade assume centralidade na obra, apesar de nunca surgir em cena, O autor coloca-o na lista das personagens, dizendo que “está sempre presente, embora nunca apareça”. Gomes Freire é apresentado como símbolo da defesa da liberdade, bipolarizando todas as outras personagens contra ou a seu favor, mesmo quando não têm a coragem de o seguir abertamente, como é o caso dos populares ou de Sousa Falcão. É neste âmbito que podemos dividir as personagens em dois grupos distintos: as que detêm o poder autoritário e repressivo ou colaboram com ele, e as que estão ligadas ao desejo e luta pela liberdade e, nessa medida, constituem um contrapoder. Esta divisão das personagens mostra, também, como o mundo ideológico é independente do mundo social. Cada personagem representa, não um grupo social ou profissional, mas uma atitude ideológica, activa ou passiva. Em Felizmente Há Luar!, mais importante do que a história das personagens propriamente dita, é a tomada de consciência de uma problemática social geral. Nesta perspectiva, as oposições ricos vs. pobres e oprimidos vs. opressores são as mais fortes e evidentes. Outra há, no entanto, que, passando mais despercebida, está nitidamente marcada na obra: masculino vs. feminino. O mundo da acção política e social era masculino. A mulher era a “sombra” do homem e tinha como tarefas cuidar do seu bem-estar e criar-lhe e educar-lhe os filhos. Na obra, perante um mundo masculino, encontram-se duas mulheres de estatuto social diferente, mas que apresentam o mesmo tipo de relação com este. O afecto de Manuel por Rita é evidente no carinho com que ele a trata quando a vê partilhar o desespero de Matilde, assim como o afecto do general por Matilde o é também quando, não tendo dinheiro, em Paris, Gomes Freire vende duas medalhas e lhe compra uma saia. No entanto, vê-se que Rita obedece sempre ao marido sem qualquer contestação, mesmo quando se pressente que esse comportamento não lhe agrada, e Matilde, para além de andar “na esteira” de Gomes Freire, é mantida numa redoma, não sabendo nada do que se passa à sua volta, nem como reagir perante a prisão do general. Este desconhecimento do mundo masculino impede-a de partilhar sonhos idealistas e acaba por perturbar, também, o seu mundo afectivo, ao provocar distanciamento entre ela e Comes Freire. Para além disso, traz-lhe a incapacidade de reagir quando esse mundo exterior se abate sobre o seu mundo. Há três grupos importantes de personagens no poema: 1. Povo ® Rita, Antigo Soldado, Populares · Personagens colectiva · Representam o analfabetismo e a miséria · Escravizado pela ignorância · Não tem liberdade · Desconfiam dos poderosos · São impotentes face à situação do país (não há eleições livres, etc.) ® Manuel · Denuncia a opressão · Assume algum protagonismo por abrir os dois actos · Papel de impotência do povo ® Matilde · Personagem principal do acto II · Companheira de todas as horas de Gomes Freire · Forte, persistente, corajosa, inteligente, apaixonada · Não desiste de lutar, defendendo sempre o marido · Põe de lado a auto-estima (suplica pela vida do marido) · Acusa o povo de cobardia mas depois compreende-o · Personifica a dor das mães, irmãs, esposas dos presos políticos · Voz da consciência junto dos governadores (obriga-os a confrontarem-se com os seus actos) · Desmascara o Principal Sousa, que não segue os princípios da lei de Cristo ® Sousa Falcão · Amigo de Gomes Freire e Matilde · Partilha das mesmas ideias de Gomes Freire mas não teve a sua coragem · Auto-incimina-se por isso · Medroso Delatores Representam os “bufos” do regime salazarista. ® Vicente · É do povo mas trai-o para subir na vida · Tem vergonha do seu nascimento, da sua condição social · Faz o que for preciso para ganhar um cargo na polícia · Demagogo, hipócrita, traidor, desleal e sarcástico · Falso humanitário · Movido pelo interesse da recompensa · Adulador do momento ® Andrade Corvo e Morais Sarmento · Querem ganhar dinheiro a todo o custo · Funcionam como “bufos” também pelo medo que têm das consequências de estar contra o governo · Mesquinhos, oportunistas e hipócritas 2. Governadores Representam o poder político e são o cérebro da conjura que acusa Gomes Freire de traição ao país; não querem perder o seu estatuto; são fracos, mesquinhos e vis; cada um simboliza um poder e diferentes interesses; desejam permanecer no poder a todo o custo ® Beresford · Representa o poder militar · Tem um sentimento de superioridade em relação aos portugueses e a Portugal · Ridiculariza o nosso povo, a vida do nosso país e a atrofia de almas · Odeia Portugal · Está sempre a provocar o principal Sousa · Não é melhor que aqueles que critica mas é sincero ao dizer que está no poder só pelo seu cargo que lhe dá muito dinheiro · Tem medo de Gomes Freire (pode-lhe tirar o lugar) · Oportunista, severo, disciplinar, autoritário e mercenário · Bom militar, mau oficial ® Principal Sousa · É demagogo e hipócrita · Não hesita em condenar inocentes · Representa o poder clerical/Igreja · Representa o poder da Igreja que interfere nos negócios do estado · Não segue a doutrina da Igreja para poder conservar a sua posição · Não tem argumentos face ao desmascarar que sofre de Matilde · Tem problemas de consciência em condenar um inocente mas não ousa intervir para não perder a sua posição confortável no governo · Fanático religioso · Corrompido pelo poder eclesiástico · Desonesto · Odeia os franceses · Defende o obscurantismo ® D. Miguel Forjaz · Representa o poder político e a burguesia dominadora · Quer manter-se no poder pelo seu poder político-económico · Personifica Salazar · Prepotente, autoritário, calculista, servil, vingativo e frio · Corrompido pelo poder · Primo de Gomes Freire v Gomes Freire de Andrade · Representa Humberto Delgado · Personagem virtual/central · Sempre presente nas palavras das outras personagens · Caracterizado pelo Antigo Soldado, por Manuel; D. Miguel e Beresford · Idolatrado pelo povo · Acredita na justiça e na luta pela liberdade · Soldado brilhante · Estrangeirado · Símbolo da esperança e liberdade v Polícias: representam a PIDE v Frei Diogo de Melo: representam a Igreja consciente da situação do país... Tempo ® Tempo histórico ou tempo real (século XIX - 1817) · Invasões francesas (desde 1807): rei no Brasil · Ajuda pedida aos ingleses (Beresford) · Regime absolutista · Situação económica portuguesa má: dinheiro ia para a corte no Brasil · Regência, influenciada por Beresford (símbolo do poder britânico em Portugal) · Primeiros movimentos liberais (1817), com a conspiração abortada de Gomes Freire · 25 De Maio de 1817 – prisão de Gomes Freire; 18 de Outubro de 1817 – enforcado, datas condensadas em dois dias na peça (tempo de acção dramática) · Governadores viam na revolução a destruição da estrutura tradicional do Reino e a supressão dos privilégios das classes favorecidas · O povo via na revolução a solução para a situação em que se encontrava · Revolução liberal de 1820 · Implantação do liberalismo em 1834, com o acordo de Évora-Monte ® Tempo metafórico ou tempo da escrita (século XX - 1961) · Permanentemente presente (implícito) · Época conturbada em 1961: guerra colonial angolana; greves; movimentos estudantis; pequenas “guerrilhas” internas; crescente aparecimento de movimentos de opinião organizados; oposição política · Situação política, social e económica de desagrado geral · Regime ditatorial salazarista: desigualdade entre abastados e pobres muito grande; povo reprimido e explorado; miséria, medo; analfabetismo e obscurantismo · PIDE, delatores; censura; medidas de repressão/tortura e condenação sem provas · Sttau Monteiro evoca situações e personagens do passado como pretexto para falar do presente. · Grande dualidade de conceitos entre os dois tempos: Gomes Freire é Humberto Delgado; os governadores três são o regime salazarista; Vicente e os delatores são os “bufos”; os homens de Beresford são a PIDE… → O futuro A projecção do tempo no futuro é importante para a revelação do mundo interior e, por isso, tem grande destaque em Felizmente Há Luar! 1) Desejos para o futuro Para a compreensão das personagens e dos seus comportamentos é importante conhecer os desejos para o futuro que norteiam os seus objectivos. Vicente recorre à denúncia para obter o cargo de polícia que realizará o seu sonho de bem-estar socioeconómico. Morais Sarmento e Andrade Corvo planeiam o futuro discorrendo não só sobre as vantagens que a denúncia lhes trará, mas também sobre os inconvenientes sociais dessa traição e modo de os ultrapassar. Beresford revela que é o seu sonho de poder viver em Inglaterra como um gentleman que motiva o seu comportamento. D. Miguel afirma que a sua acção visa a construção de “um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor”, um país em que a nobreza dirija sem qualquer limitação. 2) Medos e projectos Da incapacidade de aceitar as mudanças (D. Miguel) ou da percepção de que os seus interesses estão em jogo (Beresford e Principal Sousa) nascem visões medonhas do futuro e projectos maquiavélicos de acção para manter o poder a todo o custo. D. Miguel tem medo de “um mundo em que se não distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um nobre dum popular”, em “que o taberneiro da esquina possa discutir a opinião d’el-rei”, em que a sua opinião valha “tanto como a de qualquer arruaceiro”, isto é, teme perder a sua posição se o povo puder “escolher os seus chefes”. Por isso, tendo em conta o seu conhecimento da psicologia popular, planeia minuciosamente uma acção contra-revolucionária que envolverá, também, o clero e o exército e, mais tarde, planifica, igualmente, o julgamento de Gomes Freire, de modo a tornar inevitável a sua condenação. 3) Esperança O final da peça demonstra que o passado e o presente determinam os acontecimentos seguintes, já que, devido à morte de Comes Freire, o futuro, que na sequência do presente se antevia como pouco esperançoso, irá tornar-se, na perspectiva de Matilde, um tempo de esperança e de luta eficaz pela liberdade. O passado irreal Uma das facetas mais complexas do tempo é o passado irreal, isto é, o tempo imaginado do que poderia ter sido e não foi. Em Felizmente Há Luar! revela-se assim o universo idealizado, de tranquilidade familiar, sonhado por Matilde, que não passa de uma ilusão desesperada e cega, própria de quem tem a consciência de que a realidade está completamente desfasada do desejo. Tempo psicológico Para Matilde, o passado, que começou por ser tempo de anulação, tornou-se tempo de felicidade, em Paris, apesar das dificuldades financeiras. O presente é, assim, um tempo marcado pela saudade do passado. O futuro, que inicialmente se apresenta negro, devido à prisão e provável morte do seu homem, acaba por transformar-se em tempo de esperança, quando ela assume os valores sociais que são atribuídos a Gomes Freire. Também para o Antigo Soldado, que tem em comum com Matilde a convivência com Gomes Freire, o passado é tempo de saudade; no entanto, os restantes populares, marcados pelo determinismo, vivem exclusivamente o momento presente, ou melhor, sem passado nem futuro de relevo, limitam-se a sobreviver. Para eles, o passado é apenas a memória de momentos em que a esmola foi maior. Até Manuel, o elemento que mais se destaca, se deixa dominar pela fatalidade perante a prisão de Gomes Freire. Vicente, pelo contrário, é marcado pelo passado de miséria igual ao dos outros, mas que ele consciencializa. É este facto que vai ditar o seu presente de delator, tendo em vista não só a fuga ao determinismo do futuro, mas também procurando apagar o próprio passado e mesmo o presente. Envelhecimento O tempo é um factor de desgaste físico e evolução psicológica. Se para Gomes Freire o tempo trouxe um processo de amadurecimento já que “a idade lhe aumentou a fome e a sede de justiça”, para o Principal Sousa o envelhecimento será um processo gradativo de remorsos — é a praga, de provável realização, com que Matilde o amaldiçoa. O tempo desenvolveu capacidades em Vicente, particularmente a de compreender os mecanismos do poder. Mas, desenvolveu, também, o espírito crítico com que observa o envelhecimento dos outros — é por ele que se sabe que os velhos soldados, já sem préstimo para o exército, são obrigados a pedir esmola pelas igrejas. Aflora-se, assim, a problemática socioeconómica da velhice. Espaço · Espaço físico: a acção desenrola-se em diversos locais, exteriores e interiores, mas não há nas indicações cénicas referência a cenários diferentes · Espaço social: meio social em que estão inseridas as personagens, havendo vários espaços sociais, distinguindo-se uns dos outros pelo vestuário e pela linguagem das várias personagens Estrutura A acção da peça está dividida em dois actos (estrutura externa), o primeiro com onze sequências e o segundo com treze (estrutura interna). No acto I trama-se a morte de Gomes Freire; no acto II põe-se em prática o plano do acto I. Simbologia § Trinta moedas o Gesto de traição por não conseguirem ajudar o General § Saia verde o Em vida – esperança, felicidade, liberdade da sua relação o Na morte – alegoria ao reencontro e tranquilidade (Matilde acredita na vida depois da morte) § Fogueira o Presente – tristeza, escuridão o Futuro – esperança, liberdade § Luar o Noite – morte, mal, infelicidade o Luz – vida, saúde, felicidade o Lua – dependência (da luz do sol), periocidade e rejuvenescimento (ciclo lunar) e renovação (crescimento) § Felizmente Há Luar! o Para os opressores – efeito dissuasor § O luar servirá para fazer com que as pessoas saiam à rua § Fogueira – purificadora da sociedade § Serve de exemplo – eficácia da execução o Para os oprimidos – coragem e estímulo para a revolta contra a tirania § Fogueira – alerta e luz que ilumina o caminho da liberdade § Estímulo e encorajamento para que o povo se possa revoltar. § Moeda de 5 reis: símbolo de desrespeito que os mais poderosos mantinham para com o próximo, contrariando os mandamentos de Deus § Tambores: símbolos da repressão Didascálias § Explicações do autor § Posição das personagens § Caracterização do tom de voz § Indicação das pausas § Saída ou entrada das personagens § Movimentações cénicas § Expressão do estado de espírito § Expressão fisionómica e gestual Linguagem e estilo · Recursos estilísticos: enorme variedade (tomar espacial atenção à ironia e ao sarcásmo) · Funções da linguagem: apelativa (frase imperativa); informativa (frase declarativa); emotiva [frase exclamativa, reticências, anacoluto (frases interrompidas)]; metalinguística · Marcas da linguagem e estilo: provérbios, expressões populares, frases sentenciosas · natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e individualizadora de algumas das personagens · uso de frases em latim com conotação irónica, por aparecerem no momento da condenação e da execução · frases incompletas por hesitação ou interrupção · marcas características do discurso oral · Texto principal: As falas das personagens · Texto secundário: as didascálias/indicações cénicas (têm um papel crucial na peça) A didascália A peça é rica em referências concretas (sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação – relacionadas com os opressores; tristeza, esperança, medo, desânimo – relacionadas com os oprimidos). As marcações são abundantes: tons de voz, movimentos, posições, cenários, gestos, vestuário, sons (tambores, silêncio, voz que fala antes de entrar no palco, sino que toca a rebate, murmúrio de vozes, toque duma campainha) e efeitos de luz (contraste entre a escuridão e a luz; os dois actos terminam em sombra). De realçar que a peça termina ao som de fanfarra (“Ouve-se ao longe uma fanfarronada que vai num crescendo de intensidade até cair o pano.”) em oposição à luz (“Desaparece o clarão da fogueira.”); no entanto, a escuridão não é total, porque “felizmente há luar”.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Fernando Pessoa A Águia, a poesia modernista, o Orpheu e a Mensagem



A Águia, a poesia modernista, o Orpheu e a Mensagem

O ano de 1912 significou para o poeta a sua estreia literária, através da publicação em A Águia, órgão da Renascença Portuguesa, do seu primeiro artigo, "A nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada". A este se seguirão outros artigos sobre a poesia portuguesa, publicados nessa revista entre 1912 e 1913. O ano de 1912 foi também o ano em que travou conhecimento com aqueles que mais tarde se iriam reunir em tornou da revista Orpheu, nomeadamente Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Também esse grupo acompanha Fernando Pessoa nos seus percursos pelos ismos que ele criou e que marcaram profundamente a poesia modernista portuguesa deste século. Depois do grupo do Orpheu, Fernando Pessoa persegue a sua actividade literária, já sem aquele espírito de produção e participação em grupo nos destinos da cultura portuguesa, objectivo que, todavia, prossegue sozinho nos diversos projectos que vai realizando e que culmina com a edição da Mensagem. Além desta obra, publica, em vida, os seus poemas ingleses e projectava ainda a publicação do Cancioneiro, que como ele próprio diz é uma colectânea (colecção) de Canções, isto é, de poemas com a emoção suficiente para que possam ser cantadas ou musicadas. Num rascunho para o prefácio do Cancioneiro, onde se encontra reunida grande parte da poesia ortónima, Álvaro de Campos, deixando entrever a manifestação do subjectivismo pessoano, a sua despersonalização bem como a sua poética de fingimento, diz o seguinte:

"Fixar um estado de alma, ainda que o não seja, em versos que o traduz impessoalmente; descrever as emoções que se não sentiram com a própria emoção com que se sentiram - é este o privilégio dos que são poetas, se o não fossem, ninguém os acreditava. Há poetas que fazem isto conscientemente, como Fernando Pessoa. Há poetas que fazem isto inconscientemente, como Fernando Pessoa." (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p. 429)





A Águia: adesão e dissidência (1912/1914)



Fernando Pessoa realiza em 1912 a sua estreia literária na revista A Águia, agora na sua segunda fase e sob a direcção literária de Teixeira de Pascoaes. A sua estreia tem início no nº 4 desta publicação, com uma série de estudos em torno da Nova Poesia Portuguesa, publicados entre 1912 e 1913. Pessoa sente-se atraído pela doutrina subjacente a esta publicação e adere ao patriotismo, nacionalismo, espiritualismo e intenção de despertar e expalhar a alma portuguesa, que os orientadores desta publicação--Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra--detentores de um prestígio considerável na cena literária portuguesa, proclamavam. O amor patriótico de Fernando Pessoa e as suas reflexões sobre Portugal iriam culminar, como se sabe, na Mensagem.

No entanto, em breve surgem discordâncias de Pessoa em relação à doutrina e a alguns dos colaboradores desta publicação; estas discordâncias fazem-se acompanhar por um ampliar dos horizontes do poeta para campos muito diversos daqueles que se cultivavam pelos poetas de A Águia. Em 1913 escreve um artigo para a revista Teatro no qual critica Afonso Lopes Vieira, um dos colaboradores da revista A águia, a propósito do seu livro Bartolomeu Marinho . O afastamento de Fernando Pessoa deste grupo de poetas reunidos em torno do órgão da Renascença Portuguesa culmina em finais de 1914, quando esta publicação mostra um profundo desinteresse em publicar o seu drama estático O Marinheiro. Esta ocorrência marca o rompimento do poeta com a revista.







Paúlismo, Interseccionismo e Sensacionismo

"Somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fizermos será um dia universalmente conhecido e reconhecido." (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p. 121)

Ao longo de 1913, Fernando Pessoa percorre novos caminhos literários e estéticos, estando na origem de novas correntes de índole diversa, como por exemplo o paùlismo, o interseccionismo e o sensacionismo, expressões da moderna literatura portuguesa.

Com seu poema "Impressões do Crepúsculo", marca o advento da poesia modernista em Portugal. Deste poema deriva a corrente paúlismo, o primeiro ismo criado por Fernando Pessoa, tal foi o entusiasmo com que o seu poema foi recebido junto do grupo de amigos que aí viam uma notória inovação e revolução da poesia portuguesa. O poema Impressões do Crepúsculo, que se inicia pela palavra pauis, situa-se no cruzamento de correntes opostas: o saudosismo, corrente literária inspirada em Teixeira de Pascoaes e que se transporta para os poetas reunidos em torno da revista A Águia e o simbolismo-decadentista, que se afasta da primeira seguindo as novas tendências estéticas europeias.

Do paúlismo derivou ainda outra corrente, o interseccionismo, cuja melhor expressão foi a "Chuva Oblíqua", corrente que resulta de uma adaptação do paúlismo a novas estéticas como o futurismo e o cubismo. Com esta corrente o poeta pretende exprimir a complexidade e a intersecção das sensações percepcionadas, aproximando-se, então, do cubismo que exprime a interpenetração e sobufposição dos planos dos objectos.

Mais tarde surgia o sensacionismo, corrente que faz a apologia da sensação como a única realidade da vida corrente que Fernando Pessoa considera cosmopolita e universalista e que corresponde a uma arte sem regras, conforme o texto datado de 1916:

"A uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras, de sintetizar tudo, de se esforçar por de tal modo expressar-se que dentro de uma antologia da arte sensacionista esteja tudo o que de essencial produziram o Egipto, a Grécia, Roma, a Renascença e a nossa época. A arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a ter só uma regra - ser a síntese de tudo." (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p.124)

Numa carta a um editor inglês, Fernando Pessoa define da seguinte forma a atitude central do sensacionismo:
"1- A única realidade da vida é a sensação. A única realidade em arte é a consciência da sensação.
2- Não há filosofia, ética ou estética, mesmo na arte, seja qual for a parcela que delas haja na vida. Na arte existem apenas sensações e a consciência que dela temos.[...]
3- A arte, na sua definição plena, é a expressão harmónica da nossa consciência das sensações, ou seja, as nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objecto que seja uma sensação para os outros. [...]
4- Os três princípios da arte são: 1) cada sensação deve ser plenamente expressa [...]; 2) a sensação deve ser expressa de tal modo que tenha a capacidade de evocar - como um halo em torno de uma manifestação central definida - o maior número possível de outras sensações; 3) o todo assim produzido deve ter a maior parecença possível com um ser organizado, por ser essa a condição da vitalidade. Chamo a estes três princípios 1) o da Sensação, 2) o da Sugestão, 3) o da Construção." (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, pp.137-138)





Orpheu (1915/1916-1º, 2º e 3º números)

"O Orpheu é a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos. Entenda-se que parte do simbolismo, do decadentismo, do paulismo, simultaneismo, futurismo, cubismo, expressionismo, sensacionismo, interseccionismo e outros ismos" (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação).

Orpheu ufpresenta um desafio à sociedade culta portuguesa e o desejo de elevar Portugal à dimensão do moderno, à dimensão da Europa. No Orpheu está patente o fantasma da infância. A infância é anterior à divisão, à fractura da consciência, à descoberta do abismo. O mito da infância não parece inovador no meio do conjunto de agressões sofridas por quem lêr a revista.Mas é no entanto, a grande ponte para a mito-critíca do poeta, é um daqueles elementos em que sempre se pára e se reflecte, para detectar o que essa intersecção, quase que incontrolada, traz consigo. A infância, fantasma recorrente, põe o problema da desadequação do autor à vida e à realidade de si mesmo, que nunca lhe agradou. Traduz em última análise, o apelo do mundo original da mãe, do estado anterior à queda do nascimento. O fim último do Orpheu, que ele pretendia atingir era a fusão de toda a poesia lírica, épica e dramática, em algo de superior que as transcendia. A sua iniciação era a palavra - o seu verdadeiro e único mistério; é o esoterismo no projecto de Orpheu. A desarticulação da metrificação tradicional, o verso livre, a estrofe igualmente livre, que a par de formas tão clássicas como o soneto, os homens do Orpheu utilizaram, já tinham sido introduzidas por Junqueiro, Pascoaes e Nobre. No entanto, o emprego do contraste do requinte da forma e um prosaismo de estilo, identificam uma crise de que o Orpheu é representante. Os homens do Orpheu, trouxeram ao primeiro plano da vivência poética uma nova concepção da personalidade - subjacente à mentalidade do grupo de Orpheu, está a derrocada de todos os valores anunciados por Nietzsche. No plano sociológico à projecção cósmica do espírito poético no Universo, efectuada por Teixeira de Pascoaes, emerge antítese: a busca de uma "estruturação transcendental", de percurso até ao infinito pelo jogo das personalidades até ao mais fundo da própria consciência. Em todos os seus escritos (políticos, comerciais) usou uma ironia transcendente, que é uma das constantes da poesia portuguesa e que define sui generis o grupo Orpheu, porque ela exprime a mutabilidade, diversidade e imprevisibilidade da vida. Com Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros tornou-se um símbolo "único e diverso, nacional e universal, actual e eterno - e um exemplo de coragem moral e de indefectível liberdade de espírito".1

"Há apenas duas coisas interessantes em Portugal - a paisagem e o Orpheu." - Álvaro de Campos


Fernando Pessoa, ao mesmo tempo que se vai distanciando da geração da Renascença Portuguesa, vai-se aproximando de outra geração, que ficará conhecida como a Geração do Orpheu. Reune-se, com frequência, em cafés da baixa lisboeta, com Mário de Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor, que trazem presentes as novas tendências estéticas europeias, nomeadamente, francesas, com Amadeo de Sousa Cardoso, Almada Negreiros e Raúl Leal. Deste grupo, a que se acrescentam Luis de Montalvor, Armando Cortês Rodrigues, bem como António Ferro, irá surgir o projecto de uma revista destinada a congregar as diversas tendências estéticas destes artistas e a intervir na vida intelectual e literária portuguesa, projecto que se concretiza na revista Orpheu, financiada pelo pai de Mário de Sá-Carneiro. No primeiro número desta revista (Abril de 1915) colaboram Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, Almada negreiros, Cortês Rodrigues, Álvaro de Campos e José Pacheco, o responsável pela direcção gráfica. No final da introdução a esta primeira edição, assinada pelo seu director Luis de Montalvor, o grupo manifesta o propósito de ir ao encontro de alguns desejos de bom gosto e refinados propósitos em arte que isoladamente vivem por aí, convictos de que a revista, pelo seu carácter inovador, revela um sinal de vida no ambiente literário português e o desejo, por parte do público leitor de selecção, de mostras de contentamento e de adesão para com este projecto literário. Se da parte dos leitores de selecção, esta primeira edição encontrou mostras de carinho e de contentamento, no público em geral causou grande escândalo e polémica. A revista abalou decididamente o ambiente literário português pela ousadia e vanguardismo dos textos que nela se reuiram. Foi, sem dúvida, um sinal de vida que rompeu com as tradições literárias e significou o advento do modernismo no nosso país. O próprio Pessoa, em carta a Armando Côrtes-Real, revela o sucesso da revista e o escândalo que esta provocou, nomeadamente pelo poema 16 de Mário de Sá-Carneiro e a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos.

Do segundo número da revista (Junho de 1915), dirigido por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, constam textos de Angelo de Lima, Mário de Sá-Carneiro, Eduardo Guimaraens, Raul Leal, Violante de Cysneiros, Luis de Montalvor, Fernando Pessoa e Álvaro de Campos. Esta edição conta ainda com a colaboração de Santa-Rita Pintor. O terceiro número da revista não passou, por falta de financiamento, da fase das provas de página. Para este número estavam previstos textos de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Albino Menezes, Augusto Ferreira Gomes, Almada Negreiros, Thomaz de Almeida, de C.Pacheco e de Castello Moraes. Para além da falta de dinheiro para a continuidade do projecto, o grupo do Orpheu em breve se vê desagregado, para o contribuiu a morte de Mário de Sá-Carneiro, em 1916, de Santa-Rita Pintor e de Amadeo de Sousa Cardoso, em 1918, a ida de Côrtes-Rodrigues para os Açores, de onde era natural, e o afastamento de António Ferro para outros campos como o jornalismo e a política. Depois do Orpheu, Almada Negreiros, em 1917, dirige a revista O Portugal Futurista, que se assemelha em muitos aspectos à revista do grupo. Tratou-se, contudo, de um projecto que não passou do primeiro número. Alguns anos depois, em 1922, José Pacheco tenta reconstruir o grupo Orpheu com o lançamento da Contemporânea, revista que conhece uma série de edições, nas quais Fernando Pessoa colabora com vários textos. Não passou contudo de uma tentativa, já que lhe faltava, desde logo, o arrojo e o talento de grande parte dos nomes da Geração do Orpheu.









A Mensagem (1934)

Fernando Pessoa foi sempre movido pela consciência de ser o intermediário entre o divino e a humanidade e que uma missão, recebida, lhe cumpria desempenhar. Esta consciência move-o no seu percurso literário e culmina, amadurecida e trabalhada, na publicação, em 1934, da sua obra Mensagem. O seu patriotismo desde cedo se fez notar. Quando regressa a Portugal, a pátria abandonada durante cerca de 10 anos, a pátria onde o pai e as memórias da infância feliz ficaram sepultadas, depressa lhe surgem diversos projectos de índole patriótica, a realizar por intermédio da intervenção literária na vida portuguesa. Estes projectos manifestam-se logo com a sua adesão à Renascença Portuguesa e culminam com a reunião e conclusão dos poemas da Mensagem, publicada pouco antes da sua morte, obra que o poeta encara como fruto de uma missão atriótica e universalista. Nesta obra, cujos poemas foram escritos entre 1913 e 1934, está bem patente o seu ideal patrótico, sebastianista e messiânico e a crença na condução divina dos destinos da humanidade e da história: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce (Parte I, O Infante). Na Mensagem, o cruzamento dos percursos espiritualistas, ocultistas e míticos de Fernando Pessoa reunem-se para a apresentação de um Portugal eleito por Deus, um Portugal decadente mas que deverá constituir-se novamente como um Império, desta vez do espírito e da cultura, ideia profética e mítica que o poeta desenvolve ainda no poema Quinto Império, onde também aí visiona o surgimento de Portugal como um Império (depois de Grécia, Roma, Cristandade e da Europa) não material,mas da cultura e do espírito. Para a regeneração de Portugal, para levantar o espírito da nação, Fernando Pessoa é consciente do papel da difusão dos grandes mitos. Parte, então, do mito de D.Sebatião, que, desaparecido no nevoeiro, tal como o Rei Artur, haveria de regressar para que Portugal se cumprisse de novo: Vem, Galaaz com patria, erguer de novo/...Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido, /Excalibur do Fim, em grito tal/ Que sua luz ao mundo dividido/ Revele o Santo Graal. (Parte III - O Desejado). A obra estrutura-se em três partes: O Brasão, O Mar Português e O Encoberto.

Na primeira parte, Fernando Pessoa percorre, através de figuras da nossa história (Viriato, O Conde D.Henrique, D.Teresa, D. Afonso Henriques, D.Dinis, D.João I, D.Filipa de Lencastre, D.Duarte, D.Fernado, D.Pedro, D.João, Infante de Portugal, D.Sebastião, Nunalvares Pereira, O infante D.Henrique, D.João II e Afonso de Albuquerque), emissários e heróis ao serviço da vontade divina, a história de Portugal, a formação da nação portuguesa, sempre com a ideia de uma condução histórica que parte, não da vontade dos homens mas, dos desígnios divinos: Todo o começo é involuntário/ Deus é o agente / O herói a si assite, vario/ E inconsciente. (Parte I - O Conde D.Henrique)

Na segunda parte traça o percurso grandioso da epopeia épica dos portugueses, bem como a preço a pagar pela universalidade conquistada por este povo, entrevendo, desde já, a posssibilidade de regeneração deste país que entretanto se adormeçeu: Senhor, a noite veio e a alma é vil./ tanta foi a tormenta e a vontade! / Restam-nos hoje, no silêncio hostil, / O mar universal e a saudade / Mas a chama, que a vida em nós criou / Se ainda há vida ainda não é finda./ O frio morto em cinzas a ocultou./ A mão do vento pode ergue-la ainda. (Parte II- Prece)

Na terceira parte afirma a possibilidade de uma regeneração de Portugal através da força do mito: É O que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que regressarei (Parte III, D.Sebastião). Consciente da decadência e estagnação do país, o poeta acredita na possibilidade de Portugal voltar a constituir-se como um Império: Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro.../ É a Hora! (Parte III- Nevoeiro).

Na Mensagem manifesta-se igualmente o simbolismo esotérico a que Fernando Pessoa recorre em algumas das suas poesias. É o próprio poeta que a designa como "um livro tão abundantemente embebido em simbolismo templário e rosacruciano" (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, p.434). Desde logo, a estrutura trenária da obra remete para o esoterismo, sendo, como é sabido, o número três um número carregado de simbolismo esotéricos. Não só a obra é dividida em três partes, como, por exemplo, a última parte (O Encoberto) é ela mesma estruturada segundo este esquema trenário (Os Symbolos, Os Avisos e Os tempos). As restantes subdivisões da obra correspondem igualmente a uma estrutura numerológica esotérica, através dos números 5, 7 e 12. A primeira parte da obra (O Brasão) é subdividida em 5 partes, e cada uma subdividida num daqueles números; a segunda parte (O Mar Português) é formada por 12 poemas e na terceira parte, cada uma das três subdivisões já mencionadas é, por seu turno, subdividida, respectivamente, em 5, 3 e 5 partes. Além da numerologia, vários símbolos esotéricos se fazem notar ainda na obra: a tradição esotérica dos Templários bem como o sombolismo rosa-cruciano. Fernando Pessoa concorreu em Outubro de 1934, com esta obra, ao prémio Antero de Quental, do Secretariado da Propaganda Nacional, destindado a premiar uma obra de índole nacionalista. O primeiro prémio foi atribuído a Vasco Reis, mas o júri, presidido por António Ferro, decidiu elevar a quantia atribuída ao segundo prémio. Esta obra, que é geralmente considerada como a expressão do nacionalismo português é lida como uma obra universalista, tal como quase toda a obra pessoana, por estudiosos de inúmeros países. O seu carácter universalista, que o próprio Fernando Pessoa lhe atribuia, não tardou, pois, a ser-lhe reconhecido.





O poeta da modernidade: Desassossego e negação

Numa carta a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa afirma "não evoluo-viajo" - viver não é evoluir e a evolução-viagem não é do ponto central da personalidade, mas das sucessivas organizações desta, ou seja, não o desenvolvimento de um espírito, mas da exploração dos caminhos que esse espírito já conhece.

Embora Joel Serrão não partilhe desta tese na análise que faz, toda a obra poética ou não de Pessoa, patenteia que o "problema gnoseológico do conhecimento "foi problema fundamental em Pessoa.

Toda a obra coloca em primeiro plano a questão da sinceridade - sinceridade metafísica e não da sinceridade ética.

Por isso, para alguns críticos a obra de Pessoa tem sido incompletamente interpretada.

Os heterónimos, ao mesmo tempo que traduzem a impossibilidade - que é um dos dramas da criação poética, em qualquer autor consciente da sua responsabilidade - de, num mesmo poema e num mesmo poeta, encerrar todas as virtualidades de uma intenção poética e de todas as implicações consequentes são ainda, uma tentativa de resolução por influência "sobre o psiquismo nacional" ("Ultimatum" de Álvaro de Campos).

Não se encontra por isso em Pessoa, uma doutrina sistematicamente definida, mas sim doutrinas várias.

Ao mesmo tempo que significam a impossibilidade - que é um dos dramas da criação poética em qualquer poeta consciente da sua missão - impossibilidade de, num mesmo poema encerrar todas as virtualidades de uma intuição poética e todas as implicações consequentes; e que por outro lado, ufpresentam a defesa de um homem que tem a coragem de dizer:

"Ser poeta não é uma ambição minha

É a minha maneira de estar sózinho"

Também significam o seu desejo de agitar "de agir sobre o psiquismo nacional, que precisa ser trabalhado e percorrido por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação".

Os heterónimos são, por excelência, não a criação dramática mas mais fundo o próprio instinto dramático do fluir da vida.

Pondo antes de mais nada a questão da autenticidade intelectual das ufpresentações, a questão da sinceridade - sinceridade metafísica - e não da sinceridade ética, a sua poesia e a sua prosa partem de algo anterior, na consciência e no hábito, partem da luta da personalidade e das outras personalidades, da luta entre a personalidade e o inconsciente colectivo.

"Indisciplinador de almas", como ele próprio se qualificou em carta a Cortes-Rodrigues, Pessoa afirma-se um dos mestres supremos de liberdade e tolerância.

A expressão da impersonalidade, da ausência de lirismo pessoal (que caracteriza toda a poesia clássica onde a personalidade do poeta é essencialmente uma questão de género cultivado e do estilo linguístico adequado à mutação que o poeta pretende conseguir) é também visível em Inscriptions (English Poems III).

Dentro da tradição greco-latina, os epigramas reunidos em Inscriptions, são "epitáfios", inscrições tumulares - são epigramas falantes, ou seja, o tumulado resume-se, define-se, através da inscrição tumular - a pessoa que fala não é pois o poeta, mas a figura a quem o poema se refere, da qual é epitáfio.

"Me, Chloe, a maid, the nighty fates have given

Who wos nought to them, to the people shades

Thus the gods will. My years were but twice seven

I am forgotten in my distant glades"

A tão discutida questão dos heterónimos, leva-nos a uma conclusão - ele não foi um "eu", mas um "anti-eu".

Quando Bernardo Soares diz que a pátria dele era a língua portuguesa, quer dizer que a sua pátria era a linguagem esteticamente considerada.

Processando-se a fixação da personalidade ao nível da linguagem, mas da linguagem como criação estética, os heterónimos parecendo máscaras o não são, mas são as realidades virtuais de um anti-eu - os vários eus a que a literatura dava corpo e alma.

Optando pela negação do ser, pensou e viveu virtualmente, fundindo a sua obra e a sua biografia - na negação do ser como consciência de si mesmo.

Nos recessos profundos desse ser que "ele não era", a existência como negação traduz-se na incapacidade de amar. Inerente ao não-ser é a castidade sublimada - a incapacidade para fundir, num mesmo impulso, o desejo e a ternura.

Da irónica superioridade de Pessoa, emana um calmo desassossego.

Não se pode considerar que o "desassossego" de Fernando Pessoa esteja todo no livro qu ele imaginou com esse título.

Esta obra fragmentária não é senão mais uma das suas várias obras por pessoas várias.

O próprio Pessoa acentuou que o Bernardo Soares, a quem o livro acabou sendo atribuido, era qualquer coisa como um "semi-heterónimo".

Tudo o que Pessoa fazia, o fazia como sendo outro. O carácter de antítese, que é o do múltiplo (que Pessoa punha em tudo) também aqui se revela: faz do "Autor" do livro menos do que ele próprio, através de uma consciência de negatividade e de frustação, com a evasão pela poesia.

É no fundo, a evasão místico-nacionalista de uma geração que sofreu as oposições entre o socialismo aristocrático e o ufpublicanismo pequeno-burguês.

A náusea social que caracteriza Pessoa, ante a realidade portuguesa de então é proveniente da desilusão sofrida pela intelectualidade portuguesa do fim do século, acrescentada de uma visão super-nacional da cultura, desde a geração de 70.

Assim, Alberto Caeiro é ironicamente, um pequeno cidadão da província, Álvaro de Campos, um técnico educado no estrangeiro, Ricardo Reis um monárquico exilado e Bernardo Soares um modesto ajudante de guarda-livros.

Pessoa foi acusado de ser (pelo livro do Desassossego) a mais acabada imagem da alienação da civilização burguesa. No entanto, a diversificação da ilusão estética, a despersonalização dramática identificada com a pluralidade virtual do "eu"; a negação da unidade psicológica da criação literária; a linguagem como personificação, o cruzamento crítico realizado por essas diversas linguagens (aquilo que os heterónimos escrevem uns aos outros) não é alienação, mas a negação da alienação.

"Como Camões, Pessoa viveu terrivelmente a alteração de toda uma época e de toda um fase civilizacional: aquele, opondo a um mundo que se tornava pavorosamente monolítico, um super-eu absorvente, que era a contrapartida dialéctica de uma vida dissipada através do mundo;este,opondo a um mundo que se cindiu por todos os lados,uma multiplicidade de "eus", que eram por sua vez, a contrapartida dialéctica de uma vida que,se negara a qualquer dissipação,qualquer convivência que não consigo mesmo". 1

Esta vertente de poeta da negação (e não negação de um poeta) fez dele o poeta da modernidade.

O Livro do Desassossego é o que mais ufpresenta a dramaticidade dolorosa da negação a que ele dedicou a sua vida.

Ao lado dos poemas esotéricos e dos de explicação pessoal, a única prosa de criação literária, além das recordações de Campos, são os trechos do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.

Com efeito, para ele confluiu toda a meditação dispersa e fragmentada de uma sociedade de heterónimos na disponibilidade - de tudo "o que não chegava a ser de ninguém dos outros".

Na carta de 13/1/35, a Casais Monteiro,Pessoa escreve: "É semi-heterónimo, porque não sendo a personalidade minha, é não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade..."

O estilo de Bernardo-Soares não difere do das prosas ortónimas, senão por um fenómeno de inibição, e por isso, menos denotadora de sensibilidade.

Soares é assim, o Pessoa mutilado "daquilo que não é ele".

Em carta de 28/7/32, a Gaspar Simões, escreve Pessoa. " O ajudante de guarda-livros, Bernardo Soares e o Barão de Teive, são ambas figuras minhamente alheias - escreveram com a mesma substância de estilo, a mesma gramática e o mesmo tipo e forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu. Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenómeno - a inadaptação à realidade da vida e o que é mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e razões".

No entanto, Bernardo Soares não é um ser inferior, mas aquilo o que se não "outra" suficientemente a ponto de ter um nome; por isso, o seu estilo é caracterizado por uma inadaptação à vida, pelos mesmos motivos e razões do Pessoa quotidiano.

Paralelamente ao Inconsciente, de que falava Antero de Quental, Fernando Pessoa não sabia como se chamava, porque o" poeta não é aquele que é, mas aquele que sendo ou não sendo, vive e morre "donnant un sens plus pur aux mots de la tribu", como disse Mallarmé.

O Livro do Desassossego, é a soma e o resto de toda a análise espectral das vivências que fervilhavam dentro do homem Fernando Pessoa e que englobam " o racionalismo transcendental de Fernando Pessoa; o misticismo irónico e frio de outro Fernando Pessoa; a meditação existencial de Alvaro de Campos; o empirio-criticismo de Alberto-Caeiro; a consciência cansadamente hedonística da fugacidade de tudo, que era Ricardo Reis; o neo-positivismo espiritualista do autor dos 35 Sonnets; a lascívia refinada do autor de "Antinous"; o anarquismo paradoxal do Banqueiro,etc". 2





Criação literária e universalista: a dimensão europeia

Enquanto teórico da arte e da literatura, Pessoa é um homem de espírito europeu, formado no convívio de autores gregos, latinos, ingleses, alemães e franceses.

Não concebe uma cultura fechada sobre si mesma. É numa perspectiva europeia que situa habitualmente o caso português, ora, quando define "o génio" do nosso país, criador de um dos elementos básicos da civilização moderna - a universalidade - ao anunciar feito profeta, um grande e novo renascimento, que Portugal vai dar ao mundo - afirma a necessidade de se criar um meio culto permeável aos homens superiores que em Portugal vão surgindo.

Não faltaram textos em Pessoa a exprimir a concepção do patriotismo como degrau para o universalismo, em que revela o desejo de servir, pela criação literária, a humanidade inteira em que aponta aos Portugueses o ideal da completa disponibilidade, incitando-os a "ser tudo de todas as maneiras", a desdobrarem-se na múltipla experiência de todos os credos e de todas as filosofias, de modo que, na Mensagem, o Quinto Império pode simbolizar o anseio da totalidade.

Na carta destinada a Marinetti, exprime o grande sonho duma síntese futura em que nada falte, da integração de todos os indivíduos e de todos os povos numa "Infinidade-síntese", em que nenhum deles fosse sacrificado:

"Se houvesse que sacrificar um povo, isso significaria a perda para sempre de uma aspecto multitudinário da Existência e por este motivo procuro o nacionalismo com um propósito puramente ultranacional".

"A sensação estética pode tornar-se uma ciência e a originalidade cultivada como uma disciplina".

O objectivismo de Pessoa assume pretensões científicas positivistas: parece querer incorporar na estética as aquisições da ciência do sec. XIX e no que a estética tem de específico (entendida a obra de arte como criatura autónoma), injectar-lhe um espírito científico.

Talvez a parte mais actual do pensamento estético de Pessoa (se dum pensamento uno se pode falar) seja aquela em que se aproxima do formalismo russo e do new-criticism anglo-americano.

"As ideias, enquanto algo distinto dos propósitos, é que dão imortalidade - ideias como forma e não como substância. Na arte tudo é forma e tudo inclui ideias. Não interessa ao juízo da posteridade se um poema encerra noções materialistas ou idealistas; o que interessa é se elas são ou não elevadas, agradáveis na forma - ainda que na sua forma mental ou abstracta - ou desagradáveis" (Erostratus).

Pessoa adopta a concepção do poema como organismo, como forma. A forma, para ele, é constituída por ideias; entretanto,sendo tais ideias,na obra artística, elementos formais, não importa quais sejam, só importa que sejam "elevadas" e "agradáveis".

A poesia não é apenas música de palavras, é o que diz, mas o que diz devemos recebê-la como mensagem estética.

Observa Pessoa "que três espécies de emoções produzem grande poesia - emoções fortes, mas rápidas, apreendidas para a arte logo que passam, mas não antes de haverem passado; emoções fortes e profundas na recordação que deixam longo tempo depois; e falsas emoções, ou seja, emoções sentidas no intelecto. A base de toda a arte é não a inseridade, mas sim uma sinceridade traduzida".

Assim, o poeta "finge" emoções só imaginadas, "sentidas no intelecto", artísticamente sinceras e "finge" também outras vezes emoções que humanamente sente. No segundo caso, há ainda fingimento porque as emoções passam a ser forma, são filtradas, tanspostas em função da expressão poética - e dizer por palavras implica um processo de intelectualização.

"A arte é a intelectualização da sensação através da expressão. A intelectualização é dada na, pela e mediante a própria expressão".

A máxima de Campos é: "Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela".

Preso, ainda à estética do classicismo, pensa que o poeta não deve explorar a margem de indeterminação existente na palavra; que deve antes procurar a expressão clara, inequívoca, de sentido único: "nem é possível construir uma frase a que não se possa atribuir um sentido qualquer, seja só um e não possivelmente um de "vários".

A teoria estética de Pessoa propõe o ideal da obra fechada,que reduz ao indispensável a colaboração do leitor (monossemia, quer ao nível da expressão isolada,quer ao nível da obra de arte,como organismo auto-suficiente).

No entanto, em conjunto, a sua obra poética desdobrada em ortónima e heterónima, atinge noutro plano a ambiguidade, pelo facto de serem diversas até antinómicas, embora interdependentes, as atitudes expressas (modos de enfrentar a vida, filosofias práticas) não havendo entidade que, estando de fora, eleja uma em desfavor das outras e espelhando assim "o drama em gente" pessoano, a própria ambiguidade do mundo.

O poeta cumpre-se dando livre curso às suas várias linguagens, busca-se no encontro da expressão múltipla. Em certo sentido, pois,a obra poética de Pessoa, com o seu leque de virtualidades expressivas e a sua ambiguidade essencial é espantosamente aberta .

A estética anti-romântica de Fernando Pessoa assenta numa concepção da escrita como ruptura e ausência. É uma estética, não já da expressão, mas da invenção.

O grande poeta não passa dum fingidor persuasivo e o acto da comunicação poética consiste pois numa série de equívocos mais ou menos bem sucedido.

Se eu é um outro, compreende-se que o poeta multiplique as suas"máscaras" e "ficções do interlúdio", pondo no mesmo plano as obras que atribui a autores imaginários e aquelas em que se inventa a si próprio - despersonalizando-se, desposa ludicamente a ilusão de que é feita a sua imagem no mundo.

Reflexos duma crise de humanismo, crise do homem, as vanguardas de começos do século - inclusive do Orfheu, sobretudo através de Pessoa - trazem uma concepção nova,moderna das relações entre a linguagem e o real. Entretanto, concede ao poeta duas possibilidades: a de confessar a sua impotência ao mesmo tempo que denuncia o absurdo do mundo e a de encontrar uma compensação na criação estética do imaginário (autor de autores).

Mário Sacramento ponderou que uma coisa é o fenómeno poético em si e outra a significação que para além dele, a poesia como linguagem assume. Para além do sentido linguístico(estilístico) do poema haverá o sentido cultural dele. Mas Mário Sacramento viu bem que Pessoa é da linhagem dos poetas cuja obra revela uma inquietação e uma aventura espirituais.

Em Pessoa, tanto a poesia heterónima, como a ortónima, resultam da colaboração embora em doseamento variável, do irracional e do racional, do espontâneo e do voluntário.

Mas convirá distinguir entre duas espécies de inteligência e entre duas espécies de vontade - porque há uma vontade e uma inteligência profundamente sérias, radicadas no íntimo do poeta, e outra inteligência, outra vontade superficiais, habilidosas, que surpreendemos em Pessoa em algumas facetas da sua actividade literária" dos arredores da sua sinceridade" e precisamente entre elas, alguns aspectos da sua invenção dos heterónimos.

As fundamentais diferenças de atitude dos heterónimos perante a vida denunciam a mesma problemática, doloridamente vivida por Pessoa; que cada um deles existia em função dos outros e de Pessoa "ele mesmo", porque implicados todos nessa problemática.

Citando Jacinto Prado Coelho: "Há unidade na multiplicidade pelo simples facto de os heterónimos trazerem cada um a sua resposta à inquietação crucial do poeta".

Na génese da poesia, combinam-se factores irracionais e factores intelectuais, "inspiração" e vontade.

Resultará o desdobramento em heterónimos do propósito mais ou menos consciente de fugir à fluidez do eu, à sensação de vazio interior, à sensação de que o eu não passa de um palco onde desfilam várias e confusas personagens?

Podemos dizer que o problema dos heterónimos está ligado ao problema da sinceridade e este ao da autognose.

Admitindo que a máxima de Campos ("fingir é conhecer-se" - máxima que devemos entender à luz de outra, pertencente ao mesmo texto - "Exprimir-se é dizer o que não se sente"), não presidia, informulada ainda, à gestação dos heterónimos, antes deriva da experiência do "drama em gente", o certo é que Pessoa parece encontrar-se quando fala dos heterónimos. É então que alude com aparente segurança à sua personalidade, definindo os heterónimos em função dela: "Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática; pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção, que não dou nem a mim, nem à vida (Páginas de Doutrina Estética, pág. 259).

"O meu semi-heterónimo Bernardo Soares (...) aparece sempre que estou cansado ou sonolento (...) . É um semi heterónimo porque não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade".

Em Fernando Pessoa e heterónimos, há traços comuns temáticos e também de estilo, como há diferença de atitude e de estilo. Não considerar uns e outros - afinidades que identificam e singularidades que traduzem a diversidade, a riqueza de moldes psíquicos - equivale a falsear a fisionomia da obra pessoana.

Logo na primeira composição da Mensagem, Portugal é o rosto com que a Europa fita "O Ocidente, futuro do passado" e esta "tem olhos gregos, lembrando".

No Portugal sonhado por Fernando Pessoa fulgiu restaurada a cultura helénica ("o reino da inteligência começa só com a Grécia, onde nasceu o espírito crítico"; logo, a nova expansão será universalista ainda no conceito tradicional; será de sentido lusocêntrico e eurocêntrico assentará no primado da Razão: ("Guia-me a só razão/ Não me deram mais guia; o sentir tudo de todas as maneiras, longe de entrega total à diversidade do mundo, implica provavelmente um certo modo português de sentir e acabará numa síntese europeia, portuguesa das mais variadas experiências "é que é a Europa e não a América, a fons et origo deste tipo civilizacional, região civilizada que dá o tipo e a direcção a todo o mundo" (Páginas Íntimas, págs. 114-5).

Na crítica literária que lhe dirige, Leyla-Perrone Moisés, bate-se contra uma interpretação tornada "clássica", segundo a qual a heteronímia nasce em Pessoa, duma "riqueza", dum excesso de forças vivas.

A tese de Leyla, instaura, pelo contrário, a ideia duma carência originária. "Meu trabalho não pressupõe uma riqueza desse ser que foi muitos, mas a falta de ser, que ser muitos indicia".

Trata-se, enfim, da "energia excepcional que anima a escrita poética de Pessoa, duma "força que é também a da esperança", a da utopia tendente a transformar o mundo.

No livro de Leyla se desenham duas linhas de leitura, tornando-se dominante aquela que nos dois primeiros capítulos, se encontra mais apagada, em estado nascente - nesta última, que favorece a positividade, em detrimento da negatividade.

Pessoa é sem dúvida um dos expoentes máximos de polivalência intelectual do nosso tempo, procurando a chave para o mistério do ser.

Esse amor incondicional à Grécia Antiga que alia o poeta aos grandes humanistas europeus, parte de uma visão parcial e arbitrária, o "objectivismo absoluto".

"Emendaremos por fim, o capítulo Universalismo, convertendo as nações extra-europeias de prolongamentos ou oposições ao espírito da Europa, em províncias activas da mesma Europa, não impondo a Europa ao mundo, como até aqui senão fazendo Europa do mundo".

Este aspecto, por mais utópico que seja, desmente os críticos que sublinharam de diferentes pontos de vista ideológicos o negativismo de Pessoa. O "relativismo criador" nada tem a ver com o niilismo.

As Páginas Íntimas são documentos reveladores da sua intimidade, do que pensava de si próprio - Fernando Pessoa crítico de Fernando Pessoa viu melhor aquilo que os seus comentadores têm procurado trazer à luz.

Também a prosa que nos oferece se desenha sob o signo da pluralidade, da diversidade - o seu pensamento ironicamente ambíguo.

Linhares Filho, professor de literatura da Universidade Federal do Ceará - no seu livro - A "Outra Coisa" na Poesia de Fernando Pessoa (Universidade do Ceará, Fortaleza, 1982) assinala a vocação idealista de Pessoa, diversamente manifestada na sua obra ortónima e heterónima.

A mundividência pessoana é tão complexa e vária , que em Pessoa se abrem duas vias do conhecimento: a racional e a hermético-mística:

"Meu pensamento, dito já não é/ Meu pensamento (...) se falo sinto/ Que a palavras esculpo a minha morte/ Que com toda a minha alma minto (...) Meu próprio diálogo interior divide/ Meu ser de mim." (Novas Poesias Inéditas)

Donde se poderá concluir que não é a linguagem articulada o lugar para a conquista de qualquer conhecimento, de qualquer verdade, antes só é concedida qualquer revelação ao poeta para além dessa linguagem: a revelação indecisa e fugaz, vem do canto, que permaneceu experiência incomunicável, por quanto o poeta não pode "torná-lo em palavras de dizer".

O cantar é o "sono do pensamento", o outro lado. Quando muito se admitirá que na linguagem articulada paira latente o anelo de ser outra coisa: canto sem palavras, música, fonte não de certezas mas de efémeros, inegáveis vislumbres; neste sentido é que a linguagem articulada abriria frestas para a Outra Coisa: o inominável.





O ideal universalista da Mensagem

Considera o próprio autor que este livro se integra numa linha de criação poética que designa por "nacionalismo místico".

Em carta de 1935, a Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, escreve: "Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com um livro da natureza da Mensagem. Sou de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.

Mais à frente, Pessoa diz que concorda com os factos acentuando que o aparecimento do livro coincide "com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra), da remodelação do subconsciente nacional".

Conforme o estudo de Jacinto Prado Coelho, Cronologia e variantes da Mensagem, "a obra nasce principalmente de três tipos criadores: do primeiro, entre 1918 e 1922 resulta "Mar Português"; o segundo são os últimos meses de 1928, em que surgem predominantemente composições de "Brazão"; o terceiro são os primeiros meses de 1932, que precedem imediatamente a publicação do volume".

Constituem as datas dos poemas um elemento de ligação à sociedade e cultura de uma época, que seria motivo de equívoco se a sua leitura não mostrasse que o nacionalismo da Mensagem é uma proposta de renascer para a diversidade compatível com o ideal cosmopolita.

A totalidade Portugal (o livro esteve para ser intitulado deste modo) é um meandro aberto para o futuro que só existe num processo de criação dramático.

Para Pessoa, a existência de Portugal como nação anda a par com a sua existência poética e é esta que considera em perigo, estagnada, propondo-se a engrandecê-la.

A concretização "do propósito impessoal de engrandecer a pátria" e contribuir para a evolução da humanidade, passa pelo fazer outra a história nacional.

Mensagem, enquanto poema épico-lírico, revivaliza com o conto épico da literatura portuguesa - Os Lusíadas - prossegue noutro sentido a história do futuro, do Padre António Vieira.

Como parte do diálogo intertextual interior à obra de Fernando Pessoa, este livro conduz-nos perante aspectos fundamentais para a sua compreensão, nomeadamente os seguintes:

a relação entre a estética e política, ou melhor, entre a criação artística e o empenhamento pluridimensional do autor, a sua responsabiilidade perante a comunidade;
a conjugação do processo que dá origem ao "drama em gente" e a busca de uma super-identidade, do "nada que é tudo";
a ligação do pensamento poético-filosófico de Pessoa ao saudosismo profético da tradição portuguesa;
As três partes em que se divide o livro e a organização de cada uma delas revelam a importância fundamental da estruturação triádica e a oscilação tendente para um esquema de síntese quíntupla.

As três divisões principais são as seguintes:

1ª - Heráldica - Brasão - Passado
2ª - Descobertas - Mar Português - Passado/Presente
3ª - Profecia - O Encoberto - Futuro.

A zona intermédia não possui subdivisões, sendo formada por um único conjunto de poemas onde se esbatem as fronteiras entre a iniciação no longe, que consistiu no concretizar das descobertas e a que consiste no descobrir contemplativo.

Ambas resultam do fascínio do "mar anterior": "O mar anterior as nós, tem medos / Tinham coral e arvoredos" ("Horizonte"). Neste grupo de poemas é notória a fluidez, em íntima conexão com a dominância do elemento água. A sua ligação à primeira e terceira partes estabelece uma identificação profunda entre o impulso para o mar e o impulso para o sonho, que pousam nas figuras do Infante D. Henrique e de D. Sebastião, as únicas que se repetem.

No "Timbre", elemento maior da "Heráldica" e que a finaliza, "A cabeça do Grego" é ele "O único imperador que tem deveras / O globo mundo em sua mão".

No início da segunda parte, "O Infante, simboliza o poder criador do sonho, enquanto que a terminá-la, "A Prece" de renovação do sonho ("E outra vez conquistemos a Distância - / Do mar ou outra, mas que seja nossa") - o ver surgir na sua existência mais pura - o primeiro símbolo, D. Sebastião, que vem dizer: "E o que eu me sonhei que eterno dura".

A posição intermédia de "Mar Português", estabelece a sucessão império material-império espiritual, porquanto no mar se simboliza a essência de um ideal ser-se português - o estar com a distância é o jamais aceitar-se vencido, o não se contentar de ser vencedor.

A sub-divisão da terceira parte da Mensagem em três grupos reforça a importância da estruturação triádica.

Também a este nível o elemento intermédio- "Os Avisos" entre "Os Símbolos" e "Os Tempos" - é o lugar onde o sonho, a viagem que é a criação poética ,se conjuga com a vontade de mudança.Quanto à articulação com uma síntese quíntupla, temos: a divisão da primeira parte em cinco grupos de poemas que correspondem aos elementos da bandeira nacional, sendo que a quinta da quinas é "D.Sebastião Rei de Portugal"; na terceira parte são cinco os "Os Símbolos,sendo o quinto "O Encoberto" e cinco os "tempos" que terminam com o Nevoeiro.

Atendendo à visão ocultista, que informa o pensamento de Pessoa sobre Portugal consagrado neste livro, a sua tripartição revela,segundo Helder Macedo, da tradição Joaquinista (de Joachim de Fiore), na qual se inscreve o profetismo português, de Bandarra ao Padre António Vieira.

Trata-se de uma doutrina da Trindade que na sua divisão da História em idades "propõe uma visão profética e iniciática da História", a qual regista em figuras emblemáticas (in Fernando Pessoa e as Ficções do Abismo, p.303).

Na Mensagem, o olhar estático concilia-se com uma perspectiva temporal quase detecta na sucessão de tempos a nível global, ou na que preside à organização de "Os Tempos", onde à "Noite" se sucede a "Antemanhã" e finalmente o "Nevoeiro", que inclui a Hora na ambiguidade da eterna ausência do dia claro.

A unidade do poema é construída a partir de valores simbólicos que integram o passado histórico transfigurado em mito e a invenção de um futuro.

Os heróis mitícos figuram sucessivamente: a formação e a consolidação da nacionalidade,as descobertas e a expansão imperial: a esperança de um novo império.

Em cada uma das partes que concorrem para a totalidade se podem encontrar figuras dominantes: Nun'Alvares, O Infante, D.Sebastião. Todavia o que ressalta desse conjunto originado numa rigorosa selecção é que não são os factos ou feitos gloriosos, empirícos que criam o destino,mas o processo de mitologização que lhes confere vida espiritual fazendo que concorram para uma conjunção de atitudes e valores.

Num plural harmonioso se reune a inconsciência e a consciência, como motores de acção;os heróis movidos por um instinto obscuro e os que agem voluntariamente -segundo J. Prado Coelho (in Fernando Pessoa, Autor da Mensagem, p.52). Nele confluem o activo e passivo, a coragem guerreira e a capacidade de sacrifício, o desejo de posse e a contemplação sem objectivos.

Em "Os Castelos", componente primeira do "Brasão", que exibe valores da fundação e defesa da nacionalidade, a força, a nobreza e coragem de inspiração divina,são valores colocados a par do mistério e do enigma como portadores da origem e do futuro.

São as figuras maternas de D.Tareja e D. Filipa de Lencastre; é D. Dinis, o rei poeta, cujo canto na noite "Busca o oceano por achar".

O primeiro dos "Castelos", o fundamento da identidade futura é o puro nato, o irreal, que detém todas as possibilidades de dar vida à realidade. A lenda de Ulisses vem afirmar não só a filiação cultural grega,mas sobretudo a primazia da errância, que é glorificada em "Mar Português", dela derivando todos os valores nobres inscritos na vida espiritual de um país que vive o "futuro do passado", repudiando a miséria do presente.

Pertence a "As Quinas", o poema "Fernando Infante de Portugal", com data de 1913, que consiste numa nova versão de um poema nessa época (anterior ao aparecimento dos heterónimos) escrito por Fernando Pessoa.

Nele se apresenta inteiramente a aceitação de um sacrifício a um Além, que move o sujeito da escrita, poeta na dor.

O carácter sacrificial da experiência poética, afirma-se nos vários tempos da Mensagem.No terceiro dos "Avisos", o poeta profeta, confunde o mar e a dor."Escrevo meu livro à beira-mágoa", apontando como lugar da criação um litoral que só na mágoa se ultrapassou. È visível a analogia com a História-Trágico-Marítima, contemplada do poema "Mar Português": "Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor".

As Quinas são o elemento fundamental do Padrão dos Descobrimentos, elas ensinam "Que o mar com um fim, será grego ou romano/O mar sem fim é português".

O desejo de infinito parte da consciência de que o irreal é a única realidade, abismo e salvação.Daí, a urgência de negar tod o mito que tenha como suporte a ilusão da realidade. Existe na obra de Pessoa, escrito em Junho de 1935, que tem uma íntima ligação com "Mar Português" (um estudo sobre esta relação é feito no ensaio de Dalila Pereira da Costa) e onde encontramos o apelo:"Dai-me uma alma transposta de argonauta".Nesse poema aparece reiterada a ideia de um fascínio do indefenido("Qualquer coisa do mar, sem ser o mar/Sereias só de ouvir e não de achar"), uma força impelindo os navegadores para além das descobertas"Uma coisa que quer do som do mar/E o estar longe de tudo e não parar.Ultrapassar a morte é aceitar em morrer, a sedução de uma voz que vem do mar.

Mas a passividade desse acto não se deixa medir pela imaginação ou pela razãovoltadas para o que existe.

Ela é anterior a uma "loucura lúcida" a que domina a globalidade da Mensagem e lhe confere a dimensão de não-tempo, anulando no irreal a distinção entre vida e morte para viver a profecia, a verdade.

O passado e futuro são igualmente míticos, mas é a invenção do segundo que dá sentido ao primeiro. O mito do Encoberto,materializado em D.Sebastião comparece nas três partes dominando inteiramente a terceira.

Ele informa todo o projecto criando uma totalidade onde a capacidade de entender o apelo do oculto aparece como valor fundamental que deve renascer para que com ele renasça Portugal.

O Encoberto é a manifestação do apelo do invísivel,a única realidade actuante e susceptível de criar civilização.

"Os Símbolos", "Os Avisos" e os "Tempos", revelam que as potencialidades do futuro residem no descontentamento do presente e na aceitação da morte do passado , condição para que possa interferir como mito fecundo.

De D.Sebastião, morto enquanto desastre da conquista, fica a loucura que define o homem pela capacidade de se saber infinitamente outro. É esta que permite a realização do desejo de absoluto e a sua contínua renovação.É com ela que se identifica o autor da Mensagem, constituida em sinal que no último dos três "Avisos" se auto-reflecte.

A disponibilidade para superar-se e o desejo de distância atribuidos ao povo português, não tanto o resultado de um aprofundamento psico-sociológico, como o da consonância da criação de uma pátria fictícia e de um sujeito fictício. Ela dita a oscilação contraditória entre uma tendência para a indiferenciação e uma outra, determinadas pela mesma realidade invisível e determinantes, de modos diversos, de uma relação com o longínquo.

A revelação do Encoberto é a consciência de uma paz que implica a luta:"Mestre de Paz,ergue teu gládio ungido/Excalibur do Fim ("ODesejado"). A consciência de que a negação do "fulgor baço" surge com a possibilidade de decidir, pelo que nada tem a ver com o razoável da realidade.

Na própria Mensagem se descreve o povo português envolto em nevoeiro e incerteza . "Ninguém sabe que coisa quer/Ninguém conhece que alma tem(...). Tudo é incerto,derradeiro".

Sintoma do abatimento nacional sob o jugo salazarista.Portugal torna-se deste modo ausência - e a imaginação do poeta leva a concebê-lo como o país que podia ter sido, pura virtualidade, promessa não cumprida.





A solidão como tema

Ao longo da vida e da obra, Pessoa está obsessivamente só, mas é ele o criador da profundidade da sua solidão e, consequentememte, é também o criador do espaço da sua poesia. 1

A presentificação do paraíso que perdeu desdobra-se em dois grupos de imagens: o conjunto dos espaços que recordam um mundo feliz e um outro que objectiva a limitação de um presente triste.

"Estrangeiro aqui como em toda a parte "(Camp. 452) crê numa outra vida que transparece no idealismo platónico e ocultista da obra lírica e épica de Pessoa ortónimo.

As imagens de espaço são a ponte entre o mundo de um além "de antes de tempo e espaço e vida e ser" e o mundo concreto em que o poeta vive.

O espaço do lar perdido, tal como perdeu a infância e perdeu o paraíso da inconsciência define o seu momento actual:

O que sou hoje é como a humidade

no corredor do fim da casa

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)

O que eu sou hoje é terem vendido a casa

É terem morrido todos…

(Campos, 473)



A vida para Pessoa é um espaço fechado, como uma prisão, numa visão da vida limitada:

(…) Usaremos a existência

Como a vila que os deuses nos concedem

(Reis, 325)



A felicidade só existe para os outros, onde ele não está, na casa onde ele não mora:

Na casa defronte de mim e

dos meus sonhos

Que felicidade há sempre

O real e o irreal (aquilo que vê e o que o idealiza - o do espaço imaginado e o do espaço experimentado),

é uma constante no poeta ortónimo e heterónimo

"Eu fui feliz para além de montes outrora"

(Pessoa, 544)



O poeta está só por se ter afastado do mundo de ventura, mas também porque se afasta da vida real - ele mesmo se afasta da felicidade "que chora ou deseja". Este desejo é não sentido, não real, não leva à acção.

Em toda a poesia se patenteia amplamente este lema de nunca partir para a acção e é através de imagens de espaço - circunscrito a pequenas superfícies fechadas - que Pessoa denota esse não querer.

"A vida fica-lhe sempre dividida em antes e depois do instante em que manifesta o desejo de se lançar à conquista seja do que for, antes e depois que se equacionam numa igualdade cuja solução é estar sempre com "a mala aberta esperando a arrumação adiada" (Camp. 478)


É a eterna antinomia entre o desejo e a vontade, entre finito - e infinito, reduzindo a vida ao absurdo e nunca consegue ordenar a sua vida:

Mas tenho que arrumar a mala

Tenho por força que arrumar a

mala

A mala.

(Camp. 478)



Existindo sempre desligado de si próprio, nunca pensando em partir, porque assim nada haverá a ordenar:

Na véspera de não partir nunca

Ao menos não há que arrumar malas

(…) Não há que fazer nada

Na véspera de não partir nunca

A indiferença é a " esteira em que a sua vida jaz" (Ined. 556), sem vontade de nada.

Desfaze a mala feita para a partida!

Chegaste a ousar a mala?

(Ined. 713)



O poeta desconhece a verdade. Não se conhece: "Sabes quem sou? Eu não sei" (Ined. 790). O sentido do mundo exterior e objectivo também se lhe escapa. Ignora os principios que justificam a existência e por isso está só.

Que ao menos na estrada me

sorria alguém

Ainda que por acaso

(Ined. 603)



A ignorância é uma das verdades que o poeta possui. Outra é a ilusão. A ilusão do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo é criação, e toda a criação é ilusão. Criar é mentir. "Para pensar o não ser criámo-lo, passa a ser uma coisa".

Aquilo a que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é: Mas o que é, é ilusão. Por isso a verdade é a ilusão, é uma ilusão".

Como tudo é ilusão, o poeta reduz o mundo ao espaço de um palco onde nos vamos exibindo, em que cada um se ufpresenta a si próprio. 2

"A nossa vida é palco e confusão"

(Canc. 204)



Este jogo teatral é vivido externa e internamente.

Pessoa e Campos "figuram as coisas e a vida, a própria existência e as sensações pelas metáforas de teatro, palco, circo, espectáculo, feira, écran, drama comédia, tragédia, sendo elas todas manifestações de realidades aparentes e ilusórias que disfarçam a realidade absoluta do universo e da alma humana. O fingimento torna-se a pose habitual do homem, porque a capacidade de conhecer-se é restrita se não fora de alcance. A alma, objectivo do conhecimento, traz camada sobre camada de mascaras inseparáveis". 3

Fernando Pessoa canta a solidão através de espaços (abertos, fechados ou abstractos). "Minha mulher, a solidão" (Ined. 678) e confessa-se "só, só, como ninguém ainda esteve". (Cam. 448)





O quinto império - o visionarismo profético

Através da profecia do Quinto Império, a Mensagem inscreve-se na corrente profética, aquela que de facto corresponde a uma identificação colectiva e de sentido positivo. O Bandarra é "Este cujo coração foi / Não português mas Portugal" e António Vieira "O Imperador da Língua Portuguesa".

Esta profecia que nasce do sonho ou da meditação, anunciou um Império de um tipo novo, espiritual.

De acordo com o esquema da interpretação do sonho de Nabucodonosor, por Daniel, que assinala os quatro impérios - Babilónia, Medo-Persa, Grécia e Roma - o quinto seria segundo Pessoa (Sobre Portugal - Introdução ao problema nacional, p. 234) o Império de Inglaterra, por de impérios materiais se tratar.Ora, o Império que profetiza é espiritual e o esquema em que se insere é diferente, pois é o da grandeza civilizacional: "Grécia, Roma, Cristandade/Europa - os quatro se vão /Para onde vai toda a idade /Quem vem viver a verdade/ Que morreu D. Sebastião?"

O apelo da Mensagem vai no sentido da concretização de uma vocação universalista dos portugueses, a qual não se afasta da que é expressa em 1923 na Revista Portuguesa: "O Quinto Império, o futuro de Portugal, que não calculo, mas sei- está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra e também nas quadras do Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem,que seja Português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé (...). Ser tudo de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma cousa (...).Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade".

Das condições para a criação de um "império de cultura", refere Pessoa como fundamentais: uma língua rica e completa, o aparecimento das obras de génio nessa língua.

Para além do anúncio de si próprio como o génio contemplado no grande acontecimento profetizado por Bandarra para 1888 (data em que nasceu), importa considerar a apreciação política de autores portugueses que Pessoa faz no ensaio sobre "A Nova Poesia Portuguesa", mas sobretudo a sua admiração por Teixeira de Pascoaes.

De facto, a Mensagem constrói-se em diálogo com o profetismo de Pascoaes, o poeta da saudade, dele se aproximando e demarcando,Pessoa considera que as "intuições proféticas" de Pascoaes vão no sentido da sua antevisão do "futuro glorioso que espera a pátria portuguesa " e propõe-se nos seus estudos "sociológicos" fazê-las passar do nível intuitivo ao de um pensamento lógico.

"O nacionalismo místico" de Pessoa reformulará a visão de Pascoaes e sobretudo acentuando a vocação universalista de Portugal e a sua disponibilidade de "poder ser".

Se em Pascoaes a saudade reúne lembrança e desejo, em Fernando Pessoa o poder criador do mito recebe a força suprema da qual depende inteiramente o futuro e, com ele, o passado.

A memória não depende de uma realidade empírica, mas de um alto destino que se faz e o faz existir.Leiam-se os primeiros versos do poema "Viriato":

"Se a alma que sente e faz conhece

Só porque lembra o que se esqueceu

Vivemos, raça, porque houvesse

Memória em nós do instinto teu"

Como nota Alfredo Antunes (in A Saudade Profética), a profecia sebastianista aparece em Pascoaes bastante diluída quanto à sua concretização espacio-temporal, enquanto em Pessoa ela é investida de um alto valor de intervenção que engloba o descontentamento do presente e visa o futuro pela acção de uma vontade transformadora.

A diferença é bem visível se compararmos, por exemplo, o tom apelativo do terceiro dos símbolos"O Desejado", com este extracto de "A Era Lusíada" de Teixeira de Pascoaes: "Eis que ele reaparece logo, ainda não em corpo vivo,mas em fantasma de nevoeiro.A Saudade lutuosa, através das suas lágrimas, visiona o Desejado. Os seus olhos perdem-se na neblina do mar que desenha vagamente ao longe , a ilha do Encantamento. (A Era Lusíada, Porto, 1912).

O Sebastianismo de Fernando Pessoa exige uma referência imprescindível a António Nobre, que deixou incompleto um poema intitulado "O Desejado", publicado postumamente.

Segundo Pessoa, o autor do "livro mais triste que há em Portugal" , o Só diz-nos da nossa tristeza de sermos orfãos e choramos sabendo que é inutilmente que choramos.

Do ritual de sacríficio consagrado nas páginas de Nobre, encontramos um eco nítido no terceiro de "Os Avisos", onde às lágrimas choradas é interior o calor e a luz.

De "submissão" voluntária ao sonho se poderá falar ("Quando meu sonho e meu senhor?")

Tudo o que Pessoa escreveu sobre o assunto, irónicamente ou não, poderá elucidar-nos acerca de uma vivência dos problemas portugueses.

Mas apenas na Mensagem encontramos a identificação do sujeito e da pátria, num pensamento da "Hora trágica", que apenas o mito, que como tal se afirma pode interpretar, fazendo surgir o sol na noite, o nacional e o universal.

O "Quinto Império", símbolo colocado sob os desígnios do "Encoberto", nada tem de loucura irracionalista ou de cálculo de uma identidade.

A Mensagem é toda ela um acto de paixão pela Pátria, que a confunde com a aspiração anónima de um povo, a passar além de si, e dar ao mundo novos mundos que só a inteligência pode achar.

"O Sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Momentos de espr'ança e da vontade,

Buscar um linha fina do Horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a ponte

Os beijos merecidos da verdade"

("Horizonte")



A ortografia arcaica que Pessoa valoriza corrobora a mitificação do passado e o ideal aristocrático que animam a Mensagem.

Este ideal é, aliás, sublinhado por um intenso patriotismo visível nas "Páginas de Estética" e de "Auto-Interpretação" e que conjuga o seu acérrimo humanismo:

"Há três realidades sociais - o indivíduo, a Nação, a Humanidade" (…)

"A Humanidade é outra realidade social tão forte como o indivíduo, mais forte que a Nação, porque mais defenida do que ela" (…) "É através da fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado que gradualmente nos sublimamos ou sublimaremos, até à fraternidade com todos os homens. (…)". A Nação é a escola presente para a Super-Nação futura. Cumpre, porém, não esquecer que estamos ainda e durante séculos estaremos na escola e só na escola.

Se intensamente patriota é três coisas: é primeiro, valorizar em nós o indivíduo que somos e fazer o possível por que se valorizem os nossos compatriotas, para que assim a Nação, que é a suma viva dos indivíduos que a compõem, e não o amontoado de pedras e areia que compõem o seu território, ou a colecção de palavras separadas ou ligadas de que se forma o seu léxico ou a sua gramática - possa orgulhar-se de nós, que, porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus pais porque a vamos criando".





Os Lusíadas e a Mensagem

A comparação entre Os Lusíadas e a Mensagem impõe-se pelo próprio facto de esta ser, a alguns séculos de distância e num tempo de decadência - o novo mito de pátria portuguesa.

Conhecido o proposto de Pessoa, desde cedo expresso (ao anunciar o Supra Camões) de ultrapassar o grande épico da nossa literatura, a Mensagem, para além de nos aparecer como parte do sistema de "imaginação ciumenta" (expressão de Eduardo Lourenço para designar no processo de criação poética em Pessoa um mecanismo de disputa com outras obras) que se estende a toda a obra do autor, apresenta-se como uma resposta à premência de um novo mito, de um novo tipo.

Escreve Eduardo Lourenço 1 : "Fernando Pessoa foi o primeiro que percebeu que os Lusíadas já não nos podiam ler como até então nos tinham lido e que chegara o tempo de sermos nós a lê-lo a ele". Os tempos mudaram, o império desfez-se e a esperança possível de Camões está definitivamente afastada, morta, já não pode interferir para pôr fim à estagnação do presente.

Inventar a pátria que escolher, é para Pessoa, libertá-la do peso da imagem de realidade empririca, encontrar sob o heroísmo dos actos concretos um heroismo de grandeza da alma, independente da conquista e do domínio.

A continuidade com o passado, quebrada pelas circunstâncias históricas, é restabelecida pela leitura desse passado a partir da profecia que o transfigura no seu sentido, o do futuro, o da razão de ser português.

Escreve Jacinto Prado Coelho: "Em Camões, põe-se no mesmo plano a memória e a esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a utopia e daí uma concepção diferente do heroísmo ". (D' Os Lusíadas à Mensagem, p. 106)

Apontando as preocupações arquitectónicas comuns às duas obras , o mesmo autor (Prado Coelho), ressalta o carácter mais abstracto e interpretativo da Mensagem, em relação aos Lusíadas.

A dominante mítica é, no poema de Pessoa, solidária da desvalorização da narração e da descrição características da epopeia, dando relevo a um pensamento unificador, ostensivo na proliferação de símbolos em detrimento da acção e conferindo ao poema uma dimensão mais emblemática do que épica.

Marca visível do diálogo com Camões, cuja ausência está presente no texto de Fernando Pessoa (v. Eduardo Lourenço "Pessoa e Camões"), é a reflexão directa de um mito, como é, por exemplo, o poema "O Mostrengo", que corresponde ao Mito do Adamastor. É-o ainda a presença notória de um vocabulário comum aos dois textos.

Maria de Lurdes Belchior, comparando mitos e símbolos das duas obras, conclui que para além dos valores fundamentais do mito do Adamastor, e não existindo na Mensagem sinais do mito do Velho do Restelo, os símbolos - D. Sebastião, o Desejado, o Encoberto, o Quinto Império, as Ilhas afortunadas - "aludem e englobam valores do episódio mítico de Os Lusíadas: Ilha dos Amores (Fernando Pessoa e Luís de Camões: Heróis e Mitos n'Os Lusíadas e na Mensagem, p. 8).

Considerando o diálogo, a nível global e não de micro - episódios, a conclusão será porventura outra, a da "significativa rasura da Ilha dos Amores, que se origina numa concepção diferente de heroicidade.

"Se o movimento mais fundo do epos camoniano é o de uma aspiração positiva para um absoluto, última metamorfose do Amor e seu reino sem fim, o do epos imaginário de Pessoa procede de um Enigma original e final, apenas consentanêo com o eterno diferimento de um Desejo sem outro objecto que não seja a ausência de Desejo.Como no limite, essa mesma "ausência" é inexequível toda a pulsão positiva inerente ao Desejo é transferida por Pessoa para o plano da criação poética, único lugar da heroicidade moderna, faústico, ou mallarmiano, a luta do espirito consigo mesmo. (Eduardo Lourenço, Pessoa e Camões, p.260)

Na Mensagem, através da história se imprime outro sentido à vocação missionante em Os Lusíadas (J. Prado Coelho, D'Os Lusíadas à Mensagem).

Portugal, que Camões via como cabeça da Europa, é agora o rosto contemplativo de uma Europa jacente, inscrição geral do Brasão. ("O dos Castelos").

É como enigma, para além da acção para além da vida e da morte, que ressurge o destino civilizador do ocidente.Identificação do indivíduo, na ambiguidade do sonho que o constitui, com a raça, depois, desta com a humanidade: será esse o nacionalismo universalista daquele que reconheceu como pátria a língua portuguesa.

Camões foi o Mestre que em poesia épica se distinguiu acima de todos os outros .

Fernando Pessoa, o "Supra-Camões", terá sido o Mestre que na poesia dramática (os heterónimos em situação de diálogo uns com os outros) ou na fusão de toda a poesia lírica, épica e dramática ultrapassou a todos.





O Humanismo em Pessoa: "O eterno devir"

Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia.

Fernando Pessoa escreveu por necessidade. E isto é o que distingue um escritor autêntico de um que simplesmente tem talento".

A substância de uma obra reside no tema da alienação e da busca de si mesmo.

Aparecem Alberto Caeiro e os seus discipulos, o futurista Álvaro de Campos e o neoclássico Ricardo Reis - toda a obra de Pessoa é uma ficção, uma fábula.

O que Fernando Pessoa escreveu pertence a duas categorias de obras, a que poderiamos chamar ortónimas e heterónimas. Não se pode dizer que sejam anónimas ou pseudónimas,porque não o são realmente. A obra pseudónima é a do autor na sua pessoa, salvo que assina com outro nome; a heterónima é a do autor fora da sua pessoa. Através deste processo o autor mascara-se transparentemente.

A relação entre Pessoa e os seus heterónimos não é idêntica à do dramaturgo ou do novelista com as suas personagens. Não é um inventor de obras-de-poetas,mas um criador de obras-de-poetas.

Como diz Casais Monteiro "inventou as biografias para as obras, e não as obras para as biografias".

Alberto Caeiro é o seu mestre pela unidade de pensamento e de ser (Caeiro não crê em nada: existe) através da reconciliação com a natureza.

Crença e existência são dois conceitos fundamentais na obra de Pessoa- por Caeiro existe; através dos heterónimos crê.

A verdade não se aprende , vivencia-se, empiricamente.Não pretende estabelecer relações entre as coisas; a palavra como não figura no seu vocabulário; cada coisa está submersa na sua própria realidade. O poeta inocente é um mito,mas um mito que constrói a poesia.

"O poeta real sabe que as palavras e as coisas não são o mesmo, e por isso para restabelecer uma precária unidade entre o Homem e o Mundo, nomeia as coisas com imagens, ritmos ,símbolos e comparações.As palavras não são as coisas: são as fontes que desdobramos entre elas e nós.O poeta é a consciência das palavras, quer dizer, a nostalgia da realidade real das coisas".

O mito do poeta inocente é a linguagem .Pessoa, poeta face à realidade , precisava de inventar um poeta inocente para justificar a sua própria poesia.O mais natural e simples dos heterónimos é o menos real.

"Não sei, evidentemente, se são eles os que não existem ou se o que não existe sou eu".

O homem, sobretudo o homem moderno, não é de todo real. Não constitui uma unidade entre a Natureza ou as coisas; a consciência de si é a sua realidade insubstancial.

A oposição / extremismo entre Álvaro de Campos e Caeiro é vital:Caeiro vive no presente intemporal das crianças e dos animais - o tempo sem tempo; o futurista Alvaro de Campos no instante - o tempo no tempo.

Para Caeiro, a sua aldeia é o centro do mundo, Campos não tem centro, é cosmopolita.

Caeiro, o poeta inocente (na plenitude do ser não podia ser Pessoa); Campos, o vagabundo (em completa privação) é o que podia ter sido e não foi.

São as impossíveis impossibilidades vitais de Pessoa - o dualismo entre o possível e o impossível, pela unidade do nome em Caeiro e o fluir incoerente de Campos - são duas formas de abolir a consciência.

Poeta futurista, Campos começa por afirmar que a única realidade é a sensação. Os heterónimos escrevem numa só direcção e numa só corrente temporal; Pessoa ramifica-se, subdivide-se e cada um destes ramos oferece-nos a imagem , as imagens de um momento.

Em todos os poetas da tradição moderna a poesia é um sistema de símbolos e analogias paralelo ao das ciências herméticas.

O poeta é um homem vazio que vive em negação, descontamento e desconsolo, como reflexo dessa Humanidade -" Limite espiritual da Hora Morta" - cria um mundo para descobrir a sua verdadeira identidade.

Toda a obra de Pessoa é busca de identidade perdida :"Naúsea, vontade de nada : existir para não morrer"

Só desta perspectiva se pode perceber a significação cabal dos heterónimos.São uma invenção literária e uma necessidade psicológica, mas não só. De certo modo são o que teria podido ou querido ser Pessoa; o que não quis: uma personalidade.

Na tradição dos grandes poetas da era moderna, o eu é um obstáculo, é o obstáculo.

A sua obra tem que ser analisada não só do ponto de vista estético, mas crucialmente do ponto de vista humano e humanista, pela busca constante do seu eu, em que a sua obra é um passo para o desconhecido (oculto) - o desconhecido de si. É o constante devir em si e para si, o pressentimento de uma presença que nunca se mostra inteiramente -a consciência da ausência de si, da irrealidade que todos somos.

O pluralismo não estará ligado a uma desilusão inicial e definitiva, à certeza amarga de que tudo é nada, de que tudo é sonho, de que não há comunicação possível entre a inteligência e o ser?

Uma das constantes essenciais da obra de Pessoa é esta ideia fundamente sentido de que nada nos é dado a conhecer porque a inteligência é uma faculdade inútil - o mundo é absurdo. Aqui se revela a faceta que raiou o Existencialismo que reforça o humanismo intrínseco da alma de Pessoa. No entanto, a lucidez de Pessoa tem como pressuposto o irracionalismo resultante duma malograda busca ontológica.

Pessoa compara-se a um quarto com inúmeros espelhos fantásticos onde se reflecte uma realidade que está em todos e em nenhum - é o eterno dilema entre essência e existência, a dualidade que em Pessoa assume a compreensão e culto do múltiplo, é o eterno devir.

A identidade do Ser e do Não Ser (o mistério do Ser) revela-se na poesia de Pessoa, como uma perturbação de raiz existencial.

Não há nela, no entanto, uma verdadeira diferenciação entre "existir e ser":

O que é existir - não nós ou o mundo -

Mas existir em si ? (Primeiro Fausto)

O tema do ser assume nos heterónimos formas e variantes múltiplas, em que a mesma obsessão diversamente se traduz :

As coisas não têm significação : tem existência

(Caeiro)



A identificação do Ser e Não-Ser é mais exaustivamente retomada por Fernando Pessoa "ele mesmo", nas suas divagações poéticas.

Ela aparece manifesta em toda a sua evidência, no poema "Ulysses", de Mensagem:

Este que aqui aportou,

Foi por não ser existindo

Sem existir nos bastou

..................................


O Não-Ser é aqui, na verdade, enquanto condição da "existência" (ou inexistência) de Ulysses como mito - esse "nada" que é tudo - a única forma possível do Ser.

O germe central da Poesia de Pessoa é a oposição (em todos os heterónimos encontramos a mesma obsessão da identidade dos opostos).

Verdade, mentira, certeza, incerteza, são as mesmas?

em Álvaro de Campos:

Tudo quanto sugere ou exprime o que não exprime,

Tudo o que diz o que não diz.

A identidade ontológica, em que os heterónimos se devem reconhecer, é definida pelo semi-heterónimo Bernardo Soares " Somos quem não somos, e a vida é prompta e triste". 1

Transparece também a angústia de Álvaro de Campos em face ao Não-ser em que o ser se volve:

Se alguma coisa foi porque é que não é?

Ser não é ser?

O problema do Ser situa-se, com efeito, num plano essencialmente superior ao da existência de Deus (ou dos Deuses, na sua pluralidade).

...porque existir é ser possível haver ser

E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses (Campos)

acabando por negar qualquer transcendência à dimensão ontológica:

Além de ti

Nada há, decerto,

Além de ti,

Que (só) tens essência

Não tens existência

E te chamas (...) ser (Primeiro Fausto, Primeiro Tema)

Tal como Heidegger, Álvaro de Campos interroga-se :

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?

porque " só a poesia é da mesma ordem que a filosofia e o pensar filosófico"

Falar do nada será sempre para a ciência uma abominação e um absurdo.pelo contrário, além do filósofo, o poeta pode fazê-lo. 2

Mas a linguagem - e antes de mais a linguagem poética é " a casa do ser", de que fala Heidegger, pois que através da sua pluralidade de linguagens, cria "pessoas", como fragmentos dispersos:

E como são estilhaços

Do ser, as coisas dispersas

Quebro a alma em pedaços

E em pessoas diversas (Pessoa)

A oposição de tudo ou nada é outro germe temático presente nos heterónimos.

É no heterónimo Álvaro de Campos, que a relação entre Tudo e Nada, atinge a sua expressão mais intensa e mesmo dramática.

O poema Tabacaria pode considerar-se uma ilustração dessa ambivalência entre o nada e o Tudo: " O Destino a conduzir a carroça de tudo/Pela estrada de Nada?"

Não sou nada

Nunca serei nada

Não posso querer ser nada

À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo.

E esses sonhos do mundo, ele considera um dever, que assume, quando escreve:

"Regresso a mim (...) tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar quanto possa, para o progresso da civilização e o largamento da consciência da humanidade".



Fernando Pessoa Ortónimo : "Ele mesmo e o outro"

Pessoa define-se por posição a Alberto Caeiro. Na carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, ele mostra como, imediatamente a seguir à aparição em si do seu mestre, nele se operou um refluxo a si mesmo, ao escrever os poemas "Chuva Oblíqua". Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção contra a sua inexistência com Alberto Caeiro. 1

A obra "ortónima" poderia com efeito distribuir-se por vários sub-heterónimos, se esta designação não inculcasse uma hierarquia no grau de diferenciação das suas linguagens; assim,considera-se Pessoa como osuporte de outros heterónimos virtuais que não chegaram a despegar-se "d'ele mesmo".

Encontramos assim o Pessoa "paulista" e "interseccionista" da época anterior a Orpheu, em tentativas poéticas, que o poeta considerará mais tarde como "inseceras", em carta a Armando Cortes-Rodrigues.

"Paúlismo", (nome extraído da palavra inicial do poema "Impressões do Crepuscúlo", apresenta-se como um exemplo "da corrente cuja primeira manifestação nítida foi o simbolismo", embora constituindo, segundo Pessoa "um enorme progresso sobre todo o simbolismo e neo-simbolismo de lá fora. 2

Como técnica poética consiste na exacerbação dos processos imagísticos que fazem apelo a sensações mórbidas e requintadas transpostas metafórica e simbolicamente.

Fernando Pessoa, afirma rejeitar esta "construção vivida", deste post-simbolismo retardado.

Assim, o Interseccionismo ufpresenta uma tentativa mais elaborada de construção de uma linguagem poética capaz de exprimir a complexidade de sensações visadas pelo "Paúlismo". Pessoa define o Interseccionismo como "sensacionismo" que toma consciência de cada sensação ser, na realidade , constituída por diversas sensações mescladas"

Esta intersecção das sensações é comparável á interpenetração e sobufposição de planos na visão dos objectos que o cubismo tentou realizar em pintura.

Pessoa faz esta referência, quando observa que o "Interseccionismo procura aperceber-se da deformação que cada sensação cúbica sofre em resultado da deformação dos seus planos. 3

Interseccionismo consiste essencialmente na interpretação dos planos sensoriais (aspectos objectivos e subjectivos da sensação) na linguagem poética.

O poema "Chuva Oblíqua" é o melhor exemplo da aplicação desta técnica .

Sendo o seccionismo uma manifestação estilística particular, encontra-se no Interseccionismo os tópicos fundamentais deste movimento.

O próprio Pessoa condena sem apelo o "Paúlismo" e o Interseccionismo por não conterem "uma fundamental ideia metafísica"...Em qualquer destas composições a minha atitude para com o público é a de um palhaço. 4

Há que assinalar, entretanto, rastos do "Interseccionismo", não só na linguagem poética de Pessoa "ele mesmo", mas na de outros heterónimos, particularmente em Campos.

No poema "Passagem das Horas", a intersecção das sensações é aqui elemento do que poderá chamar-se " o simultaneísmo sensacionista" - "sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo".

"Rua a passear por mim a passear pela rua por mim

Tudo espelhos das lojas de cá dentro das lojas de lá

A velocidade dos carros ao contrário dos espelhos oblíquos das montras

................................................................................................................

Eu de cabeça para baixo no centro da minha consciência de mim

Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua

Rua para trás e p'ra diante debaixo dos meus pés

...............................................................................................................

Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo (Campos)

Se o Interseccionismo não é um traço especifico do poeta "ortónimo", podemos encontrar ainda outras ramificações suas que se estendem ao conjunto da obra heterónima. O esoterismo está sempre subjacente à experiência poética de Pessoa.

O essencial e típico de Fernando Pessoa "ele mesmo" encontra-se nos poemas que intentava publicar sob o título de Cancioneiro, os quais se inserem numa tradição lírica, que desde os Cancioneiros Primitivos atravessa toda a poesia portuguesa até ao Modernismo.

"Cancioneiro é - escreve Pessoa - como a mesma palavra o diz, uma colectânea (colecção) de Canções. Canção é propriamente, todo aquele poema que contém emoção bastante para que pareça ser feito para se cantar, isto é, para nele existir naturalmente o auxílio, ainda que implícito, da música. 5

Fernando Pessoa harmoniza "ele mesmo" os dois pontos de vista opostos de Campos e de Reis; nos poemas do Cancioneiro, há simultâneamente, uma "música" das emoções e uma "música" das ideias, que se traduzem numa "música" das palavras.

Esta música brota de uma estrutura rítmica, que partindo das formas métricas mais tradicionais (verso hexasilábico e heptasilábico) e dos sistemas estróficos mais simples, em que predomina a quadra, a quintilha e a sextilha rimada.

A música enquanto metáfora do significado e do significante, da emoção e das palavras, aparece como a forma privilegiada de expressão:

Qualquer música, ah, qualquer,

Logo que me tire da alma

Esta incerteza que quer

Qualquer uma possível calma!

Para além da música verbal, reencontramos sempre uma música do lado "da forma do conteúdo".

Mesmo nas quadras escritas por Pessoa, inspirando-se no "Cancioneiro Popular", se pode constatar sob esta forma poética de tradição oral, uma grande riqueza e complexidade de expressão emocional e conceptual, inclusive as antinomias temáticas dos heterónimos.

Na poesia "ortónima", ufpercutem-se, na verdade, tanto como em cada um dos restantes heterónimos, os germes temáticos do Ser e Não Ser, Tudo e Nada, Sentir e Pensar.

A caracterização poética do Cancioneiro, encontra-se resumidamente nesta frase do poeta:

"A arte que poetas líricos, ás vezes intentam de todo, têm, é uma composição musical". 6

A "explicação central" de que fala o poeta é nitídamente visível: a poesia de Pessoa é de "tipo dramático"; mas o drama não se situa no plano dos géneros literários tradicionais - e como tal Pessoa foi precursor de uma modernidade.


(in UFP)