«Resumo da ação A Aia
Um rei moço e valente partira a batalhar por terras distantes, deixando só e triste a rainha e um filho pequeno. O rei perdeu a vida numa das batalhas e foi chorado pela rainha. Sendo herdeiro natural do trono, o bebé estava sujeito aos ataques de inimigos dos quais se destacava o seu tio, irmão bastardo do rei morto, que vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes e que queria tomar posse do reino, que agora estava fragilizado. O pequeno príncipe era amamentado por uma Aia, mãe de um bebé negro. A Aia alimentava os dois com igual carinho, pois um era seu filho e outro viria a ser seu rei. A escrava mostrava uma lealdade sem limites.
Uma noite, a aia pressentiu uma movimentação estranha, verificando a presença de homens no palácio. Rapidamente se apercebeu do que iria passar-se e trocou, sem hesitar, as crianças dos respetivos berços. Nesse instante, um homem enorme entrou na câmara, arrebatou do berço de marfim o pequeno corpo que ali descansava e partiu furiosamente. A rainha, que entretanto invadira a câmara, verifica desesperada o berço do principezinho vazio. A Aia mostra-lhe, então, que, no berço de verga, o jovem príncipe dormia.
Entretanto, o capitão dos guardas veio avisar que o bastardo havia sido vencido, mas infelizmente o corpo do príncipe tinha também perecido. A rainha mostrou, então, o bebé e, identificando a sua salvadora, abraçou-a e beijou-a, chamando-lhe irmã do seu coração. Todos a aclamaram, exigindo que fosse recompensada. A rainha levou-a ao tesouro real, para que pudesse escolher a jóia que mais lhe agradasse. A Aia, olhando o céu, onde decerto estava o seu menino, pegou num punhal e cravou-o no seu coração, dizendo que agora que tinha salvo o seu príncipe tinha de ir dar de mamar ao seu filho.
Estrutura da Ação
Introdução
(Primeiros parágrafos)
Apresentação do rei e do seu reino. Partida do rei para a guerra, deixando sozinhos a rainha, o filho e o reino.
Desenvolvimento
(de “A rainha chorou magnificamente o rei …” até ” Era um punhal de um velho rei (…) e que valia uma província.”)
Conclusão
( três últimos parágrafos)
Por amor ao filho, a Aia suicida-se.
Neste conto estamos perante uma narrativa fechada, pois apresenta um desenlace irreversível.
A articulação das sequências narrativas (momentos de avanço) faz-se por encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e interrompem, por vezes, a narração com descrições (espaço, objetos, personagens).
Personagens
Caracterização física das personagens
Rei – Moço, formoso.
Tio – Face escura, homem enorme.
Aia – Bela, robusta, olhos brilhantes.
Príncipe – Cabelo louro e fino, olhos reluzentes.
Escravo – Cabelo negro e crespo olhos reluzentes.
Caracterização psicológica das personagens
Rei – Valente, alegre, rico, poderoso, sonhador, ambicioso.
Rainha – Desventurosa, chorosa, solitária, triste, angustiada, grata surpreendida.
Tio – Mau, terrível, cruel, ambicioso, selvagem .
Aia – Leal, nobre, venerável, sofredora, dedicada, terna, perspicaz, decidida, corajosa.
Príncipe – Frágil, inseguro.
Escravo – Simples, seguro e livre.
Ao longo do texto, está presente o processo de caracterização directa, pois as informações são-nos dadas pelo narrador. No entanto, há também informações que são deduzidas a partir do comportamento das personagens (caracterização indireta).
A Aia, personagem principal, torna-se uma personagem modelada no fim do conto, porque adquire uma densidade psicológica significativa. Mulher dedicada ao filho, ao príncipe e aos reis prova, com o gesto da troca das crianças, uma grandeza de alma que não pode ser compreendida por nenhum humano e que, por consequência, não tem nenhuma recompensa ou pagamento material. A crença espiritual que alimenta o seu gesto demonstra uma simplicidade de pensamento que coloca o dever acima de tudo: o dever de escrava e o dever de mãe. O desejo da aia de provar que a cobiça e a ambição podem estar arredadas de um coração leal, fez com que ela escolhesse um punhal para pôr termo à sua vida. Trata-se de um objeto pequeno, certeiro que remete para o carácter decidido da personagem e que era o maior tesouro que aquela mulher ambicionava, pois, esse objeto lhe abriria caminho para o encontro com o seu filho, para cumprir o seu dever de mãe, dando-lhe de mamar.
O rei, a rainha, o tio, o príncipe e o escravo são personagens secundárias e planas. Não são identificadas por um nome próprio uma vez que remetem para a intemporalidade da história.
As crianças estão, no conto, marcadas pela sua posição social: uma dorme em berço de ouro entre brocados, a outra, num berço pobre e de verga. À hora da morte é por essa marca que o inimigo vai identificar o futuro rei. O príncipe não intervém diretamente na acção, mas é o centro das atenções de todas as personagens. A personagem escravo existe para salvar a vida do príncipe.
Tempo
Não há referências a datas ou locais que permitam localizar a ação no tempo. Há apenas algumas expressões referentes ao tempo: « lua cheia », «começava a minguar»,«noite de Verão», «noite de silêncio», «luz da madrugada».
É à noite que acontecem os principais acontecimentos desta história como: a morte do rei, o nascimento do príncipe e do escravo, o ataque ao palácio, a troca das crianças, as mortes do escravo, do tio e da sua horda. No entanto, a ação fecha com a morte da Aia, de madrugada.
O núcleo central da ação centra-se numa noite. A condensação de um tempo da história tão longo, numa narrativa curta (conto) implica a utilização de sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história); de elipses (eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da história).
Quanto à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela sequência cronológica.
Espaço
A ação localiza-se num reino grande e rico « abundante em cidades e searas». , e decorre num palácio. Toda ação decorre nesse espaço, sendo que alguns recantos do palácio são sobrevalorizados por oposição a outros, por exemplo, a câmara onde o príncipe e o filho da escrava dormiam e a câmara dos tesouros.
No entanto, alguns espaços exteriores adquirem alguma importância. O espaço onde o rei é derrotado e consequentemente morto - o que vai deixar a rainha viúva, o filho órfão e o povo sem rei; O espaço que caracteriza o Tio Bastardo: « vivia num castelo, à maneira de um lobo, que entre a sua alcateia, espera a presa». Através desta apresentação, o leitor fica na expetativa do que irá acontecer, visto que ela é indicadora de confrontação e de tragédia (índice). ìndice este que é também determinante no clima que se vive no palácio, que denota temor e insegurança.
O espaço é descrito do geral para o particular, do exterior para o interior. Primeiramente, é-nos apresentado «um reino abundante em cidades e searas», onde se situa um palácio, habitado por um príncipe que fica órfão e que vai ser protegido no seu berço pela sua Aia. À medida que se desenrolam os acontecimentos, o espaço vai-se concentrando cada vez mais, (à volta do palácio / palácio /dentro do palácio), acabando a Aia por se suicidar na câmara dos tesouros:
No exterior, no alto, encontramos um «castelo sobre os montes», « o cimo das serras», povoado pelo tio bastardo e a sua horda, que vigiam a presa – o príncipe que vivia no palácio. Mais abaixo, «na planície, às portas da cidade» existe um palácio, onde a população e o príncipe estão desprotegidos e são presa fácil. No interior da «casa real» há uma câmara com um berço, um pátio, a galeria de mármore, a câmara dos tesouros, onde estão a rainha, a aia, o príncipe e o escravo.
Quanto ao espaço social temos a descrição de um ambiente da corte – palácio, rei, rainha, aias, guardas.»
Um cantinho onde o Português, a Literatura, os vários discursos, os enunciados, as opiniões, as críticas... podem ser teus...
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa - aspetos da sua obra
«Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.
Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.
Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu superar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.
Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.
Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.
Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bourgeois, um rumo autêntico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "intersecionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."
Com base nesses postulados - e nos demais, que seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligencia construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relatividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relatividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desintegração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.
Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.
Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relatividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.
Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heterónimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.
Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heterónimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:
Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê, / Nem ver quando se pensa".
Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."
Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".
Além desses heterónimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que considerar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lírico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.
Em qualquer hipótese, seja qual for o heterónimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estática em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.
Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no consagrar harmónico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.
Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".
Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.
Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em clichés, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.
Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.
Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
«Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.
Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.
Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu superar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.
Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.
Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.
Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bourgeois, um rumo autêntico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "intersecionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."
Com base nesses postulados - e nos demais, que seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligencia construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relatividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relatividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desintegração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.
Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.
Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relatividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.
Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heterónimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.
Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heterónimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:
Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê, / Nem ver quando se pensa".
Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."
Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".
Além desses heterónimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que considerar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lírico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.
Em qualquer hipótese, seja qual for o heterónimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estática em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.
Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no consagrar harmónico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.
Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".
Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.
Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em clichés, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.
Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.
Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Os Lusíadas // a Mensagem
D' Os Lusíadas à Mensagem
«Os poemas de Camões e de Fernando Pessoa sobre Portugal situam-se respectivamente no início e na fase terminal do longo processo de dissolução do império. Daí notáveis diferenças, a par de afinidades sensíveis. Ao gizar a Mensagem, não só Fernando Pessoa tinha Os Lusíadas no âmbito das suas referências culturais como nele desembocavam os rios subterrâneos duma Weltanschauung e duma mitologia colectivas vindas de Camões e do humanismo quinhentista.
Ambos se mostram impregnados duma concepção mística e missionária da História portuguesa (talvez seja melhor dizer missionante, para evitar equívocos). D. Sebastião, n'Os Lusíadas, é um enviado de Deus incumbido de alargar a Cristandade: «Vós, Ó novo temor da Mama lança, / Maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Para do mundo a Deus dar parte grande» (1,6).
Na Mensagem, Portugal é um instrumento de Deus, a História pátria obedece a um plano oculto, os heróis cumprem um destino que os ultrapassa: «Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal / A mão que ergueu o facho que luziu, / Foi Deus a alma e o corpo Portugal /Da mão que o conduziu».
Se, n'Os Lusíadas, o nosso país é «qual cume da cabeça / Da Europa», na Mensagem, em descrição semelhante, Portugal é o seu rosto, e a diferença reside na personificação da Europa, figura feminina, de «olhos negros», «românticos cabelos», o rosto apoiado na mão direita, atitude estática, pensativa. [...]
Tanto Camões como Pessoa, cantores da pátria, são poetas da ausência. Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser. Dum amor que ou se refugia na memória ou, revigorado, se traduz na vibração dum apelo. Mas as situações divergem, um intervalo multissecular tinha de separá-los.
No Camões épico predomina o elemento viril – a viagem, a aventura, o risco. Tradicionalmente, a mulher é a que fica, esperando, imóvel, na felicidade e no sonho do regresso: como Pessoa e as figuras em que se desdobra, de olhos fitos no indefinido. Homem de acção, e não só de inteligência, Camões ainda conheceu o império no concreto da sua grandeza e das suas misérias, era-lhe fácil ainda ter esperança, o D. Sebastião a quem se dirige é um jovem de carne e osso, vale a pena mostrar-se, exibir os seus préstimos, para que o Rei o distinga, confie nele, se lance na conquista do Norte de África levando-o consigo. Outro império terreno ainda parece possível, «como a pressaga mente vaticina», o próprio Velho do Restelo sanciona a aventura, e Camões prepara-se para cantar a nova empresa. O D. Sebastião da Mensagem, elaborado longa mente pelo sebastianismo e pela humilhação, esse é o Encoberto, o Desejado, uma sombra, um mito. [...]
Em Camões, põem-se no mesmo plano a memória e a esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a utopia, e daí uma concepção diferente de heroísmo. [...]
Se continuássemos à procura de pontos de contacto entre Camões e Fernando Pessoa, ainda poderíamos registar a sua capacidade e preocupação arquitectónicas. Jorge de Sena valorizou «o extraordinário equilíbrio construtivo que, em Os Lusíadas, encontramos, seja qual for o aspecto por que examinemos o poema». Por seu turno, os textos que compõem a Mensagem distribuem-se em grupos e subgrupos, obedecendo a um plano cuidadosamente estabelecido. Aqui a diferença está no facto de Os Lusíadas serem, pela forma, que não só pela substância, uma epopeia clássica, narração onde enlaçam a viagem de Vasco da Gama, a comédia dos deuses e a História de Portugal, mediante alternâncias e discursos dentro do discurso, uns retrospectivos, outros prospectivos, enquanto a Mensagem integra, como se sabe, 44 poesias breves, datadas de várias épocas e arrumadas em três partes principais: «Brasão», «Mar Português» e «O Encoberto». A primeira e a terceira partes ainda estão subdivididas: a primeira em «Os Campos», «Os Castelos» «As Quinas», «A Coroa» e «O Timbre», reproduzindo assim os elementos da bandeira nacional; a terceira os «Símbolos», «Os Avisos» e «Os Tempos». Da face interna, emblemática, desta arquitectura, aliás de sentido ocultista, [...] infere-se um carácter menos narrativo e mais interpretativo, mais cerebral, que o d'Os Lusíadas. [...]
[Pessoa] possui aquilo a que Cesare Pavese chamava «o senso heráldico», isto é, a faculdade de ver símbolos em tudo. Os heróis da galeria da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos, elos duma trajectória cujo sentido Pessoa se propõe desvelar até onde o permite o olhar visionário.
O assunto da Mensagem não é os portugueses ou eventos concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão por cumprir. Em fragmento recolhido nas Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Pessoa censurava a Os Lusíadas a falta dum pensamento. Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna, espectraliza as personagens da História nacional.
Tanto Camões como Pessoa usaram o processo da descrição sucessiva, fragmentária, de figuras-padrão. Nos discursos esta técnica verifica-se quer na «explicação» das bandeiras por Paulo da Gama perante o Catual, quer no relato da História de Portugal feito por Vasco da Gama destinado ao Rei de Melinde. Os retratos (por vezes auto-retratos) morais da Mensagem filiam-se no epigrama ou inscrição tumular dos clássicos. [...]
Em Camões, temos tão-só a descrição laudatória; em Pessoa, Viriato não é já um herói confinado no seu tempo, encarna um momento da vida duma nação, o momento da gestação latente; prefigura o que havia de vir, é o sinal dum plano que tinha de cumprir-se. O indivíduo apaga-se em favor do ente metafísico chamado Portugal. Os elementos descritivos e narrativos ficam obliterados.
Algo semelhante ocorre no tratamento doutra personagem: o Rei D. Dinis. Camões narra, em três oitavas, o que nós hoje aprendemos na escola: o seu reinado foi pacífico e próspero, fundou a Universidade, que depois transferiu para Coimbra, promulgou novas leis, reformou o país «Com edifícios grandes e altos muros» (III, 96-98). Falta qualquer alusão a ter mandado semear o pinhal de Leiria. Pelo contrário, na Mensagem é este o facto posto em relevo pelo seu valor simbólico: D. Dinis surge como «plantador de naus a haver»; encarna outro momento da História secreta de Portugal, é também o instrumento duma vontade transcendente, prepara de longe o Império, ouve, de noite, enquanto escreve um cantar, «o rumor dos pinhais que, como um trigo / De império, ondulam sem se poder ver».
Sem dúvida, na segunda parte da Mensagem, «Mar Português», perpassa um sopro épico, exalta-se o esforço heróico dos Portugueses no domínio dos mares, Pessoa dá, por vezes, a réplica a Os Lusíadas. «O Mostrengo», do mesmo modo que o Adamastor, opõe à hostilidade bravia da Natureza a energia indómita dos Portugueses: «Sou um povo que quer o mar que é teu» – diz ao Mostrengo o homem do leme. Na Mensagem retoma-se, embora noutro registo, o tópico da vantagem que levam os Portugueses aos navegadores da Antiguidade: «Que o mar com fim será grego ou romano; / O mar sem fim é português». E, como n' Os Lusíadas, não se esconde que o reverso da vitória é as lágrimas: a épica integra em claro-escuro a história trágico-marítima: a Mensagem é também um livro-síntese:
«Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!» Mas a perspectiva mudou. Austero, absorto, Pessoa não canta a expansão terrena, menos ainda a guerra contra os
Infiéis. Não é católica apostólica romana a sua inspiração. O emprego do singular Deus, com maiúscula, imposto pela matéria da obra, não vale mais, como prova de convicção pessoal, que o emprego do plural deuses em Ricardo Reis. A atitude típica dos heróis da Mensagem é contemplativa e expectante: olham o indefinido, concentram-se na febre do além que o poeta encarna nos versos admiráveis de «A Noite»: «Com fixos olhos rasos de ânsia / Fitando a proibida azul distância». Depressa esta atitude significa uma ânsia metafísica, a busca duma Índia que não há. A primeira grande missão cometida por Deus a Portugal, desvendar o mundo, chegou ao seu termo: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez» – diz Pessoa em «O Infante». Então qual o destino nacional que vem anunciar? Que sentido tem o verso «Senhor, falta cumprir-se Portugal»?
A inspiração da Mensagem, como foi lembrado, é ocultista, e o Império entrevisto no futuro uma aventura do espírito, viagem sem fronteiras ou limitações movida pelo amor do diverso e uma constante inquietação. Quando muito (a fala sibilina deixa supô-lo) um império da língua portuguesa, superior por natureza ao império terreno, «obscuro e carnal anterremedo» que o tempo destruiu. Na terceira parte do livro, o lema «Pax in excelsis» e a despedida, «Valete, Fratres», sugerem um projecto de fraternidade universal entre os homens. Talvez o que se aponta seja, na verdade, a utopia, e por isso o elogio do herói, ao contrário do que sucede n'Os Lusíadas, redunda no elogio da «loucura» – essa loucura de sinal positivo sem a qual o homem não passa de «besta sadia», essa loucura que nos salva da «metade de nada» em que viver é morrer.
Em contraste com o realismo d'Os Lusíadas (ou do que realista em Camões se pretende), a Mensagem reage pela altiva rejeição a um «real» oco, absurdo, intolerável, propondo-nos em seu lugar a única coisa que vale a pena: o imaginário. Quem não soube – ou não quis – entender a Mensagem ignorou esta diferença essencial; nem soube captar a ironia imanente no intertexto pessoano (compare-se o optimismo voluntário do poema, incluso na profecia, embora marginada pela dúvida, com o pessimismo total da «Elegia na Sombra», escrita uns seis meses depois da publicação do livro, precisamente em 2-VI-1935). Uma vez mais, o poeta se contra-disse, ou disse o que estava latente no não-dito. Resta saber até que ponto o imaginário é susceptível de transformar o leitor enquanto homem e «lusíada, coitado» e em que medida o projecto de Pessoa, vate, cantor de mitos, visava além do simples, conquanto nobre e apaixonado, divertimento estético. Porque esta é, em certa perspectiva, a dupla face de Pessoa.»
Jacinto do Prado Coelho, Camões e Pessoa,
Poetas da Utopia, Lisboa, Europa-América, 1983
«Os poemas de Camões e de Fernando Pessoa sobre Portugal situam-se respectivamente no início e na fase terminal do longo processo de dissolução do império. Daí notáveis diferenças, a par de afinidades sensíveis. Ao gizar a Mensagem, não só Fernando Pessoa tinha Os Lusíadas no âmbito das suas referências culturais como nele desembocavam os rios subterrâneos duma Weltanschauung e duma mitologia colectivas vindas de Camões e do humanismo quinhentista.
Ambos se mostram impregnados duma concepção mística e missionária da História portuguesa (talvez seja melhor dizer missionante, para evitar equívocos). D. Sebastião, n'Os Lusíadas, é um enviado de Deus incumbido de alargar a Cristandade: «Vós, Ó novo temor da Mama lança, / Maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Para do mundo a Deus dar parte grande» (1,6).
Na Mensagem, Portugal é um instrumento de Deus, a História pátria obedece a um plano oculto, os heróis cumprem um destino que os ultrapassa: «Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal / A mão que ergueu o facho que luziu, / Foi Deus a alma e o corpo Portugal /Da mão que o conduziu».
Se, n'Os Lusíadas, o nosso país é «qual cume da cabeça / Da Europa», na Mensagem, em descrição semelhante, Portugal é o seu rosto, e a diferença reside na personificação da Europa, figura feminina, de «olhos negros», «românticos cabelos», o rosto apoiado na mão direita, atitude estática, pensativa. [...]
Tanto Camões como Pessoa, cantores da pátria, são poetas da ausência. Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser. Dum amor que ou se refugia na memória ou, revigorado, se traduz na vibração dum apelo. Mas as situações divergem, um intervalo multissecular tinha de separá-los.
No Camões épico predomina o elemento viril – a viagem, a aventura, o risco. Tradicionalmente, a mulher é a que fica, esperando, imóvel, na felicidade e no sonho do regresso: como Pessoa e as figuras em que se desdobra, de olhos fitos no indefinido. Homem de acção, e não só de inteligência, Camões ainda conheceu o império no concreto da sua grandeza e das suas misérias, era-lhe fácil ainda ter esperança, o D. Sebastião a quem se dirige é um jovem de carne e osso, vale a pena mostrar-se, exibir os seus préstimos, para que o Rei o distinga, confie nele, se lance na conquista do Norte de África levando-o consigo. Outro império terreno ainda parece possível, «como a pressaga mente vaticina», o próprio Velho do Restelo sanciona a aventura, e Camões prepara-se para cantar a nova empresa. O D. Sebastião da Mensagem, elaborado longa mente pelo sebastianismo e pela humilhação, esse é o Encoberto, o Desejado, uma sombra, um mito. [...]
Em Camões, põem-se no mesmo plano a memória e a esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a utopia, e daí uma concepção diferente de heroísmo. [...]
Se continuássemos à procura de pontos de contacto entre Camões e Fernando Pessoa, ainda poderíamos registar a sua capacidade e preocupação arquitectónicas. Jorge de Sena valorizou «o extraordinário equilíbrio construtivo que, em Os Lusíadas, encontramos, seja qual for o aspecto por que examinemos o poema». Por seu turno, os textos que compõem a Mensagem distribuem-se em grupos e subgrupos, obedecendo a um plano cuidadosamente estabelecido. Aqui a diferença está no facto de Os Lusíadas serem, pela forma, que não só pela substância, uma epopeia clássica, narração onde enlaçam a viagem de Vasco da Gama, a comédia dos deuses e a História de Portugal, mediante alternâncias e discursos dentro do discurso, uns retrospectivos, outros prospectivos, enquanto a Mensagem integra, como se sabe, 44 poesias breves, datadas de várias épocas e arrumadas em três partes principais: «Brasão», «Mar Português» e «O Encoberto». A primeira e a terceira partes ainda estão subdivididas: a primeira em «Os Campos», «Os Castelos» «As Quinas», «A Coroa» e «O Timbre», reproduzindo assim os elementos da bandeira nacional; a terceira os «Símbolos», «Os Avisos» e «Os Tempos». Da face interna, emblemática, desta arquitectura, aliás de sentido ocultista, [...] infere-se um carácter menos narrativo e mais interpretativo, mais cerebral, que o d'Os Lusíadas. [...]
[Pessoa] possui aquilo a que Cesare Pavese chamava «o senso heráldico», isto é, a faculdade de ver símbolos em tudo. Os heróis da galeria da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos, elos duma trajectória cujo sentido Pessoa se propõe desvelar até onde o permite o olhar visionário.
O assunto da Mensagem não é os portugueses ou eventos concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão por cumprir. Em fragmento recolhido nas Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Pessoa censurava a Os Lusíadas a falta dum pensamento. Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna, espectraliza as personagens da História nacional.
Tanto Camões como Pessoa usaram o processo da descrição sucessiva, fragmentária, de figuras-padrão. Nos discursos esta técnica verifica-se quer na «explicação» das bandeiras por Paulo da Gama perante o Catual, quer no relato da História de Portugal feito por Vasco da Gama destinado ao Rei de Melinde. Os retratos (por vezes auto-retratos) morais da Mensagem filiam-se no epigrama ou inscrição tumular dos clássicos. [...]
Em Camões, temos tão-só a descrição laudatória; em Pessoa, Viriato não é já um herói confinado no seu tempo, encarna um momento da vida duma nação, o momento da gestação latente; prefigura o que havia de vir, é o sinal dum plano que tinha de cumprir-se. O indivíduo apaga-se em favor do ente metafísico chamado Portugal. Os elementos descritivos e narrativos ficam obliterados.
Algo semelhante ocorre no tratamento doutra personagem: o Rei D. Dinis. Camões narra, em três oitavas, o que nós hoje aprendemos na escola: o seu reinado foi pacífico e próspero, fundou a Universidade, que depois transferiu para Coimbra, promulgou novas leis, reformou o país «Com edifícios grandes e altos muros» (III, 96-98). Falta qualquer alusão a ter mandado semear o pinhal de Leiria. Pelo contrário, na Mensagem é este o facto posto em relevo pelo seu valor simbólico: D. Dinis surge como «plantador de naus a haver»; encarna outro momento da História secreta de Portugal, é também o instrumento duma vontade transcendente, prepara de longe o Império, ouve, de noite, enquanto escreve um cantar, «o rumor dos pinhais que, como um trigo / De império, ondulam sem se poder ver».
Sem dúvida, na segunda parte da Mensagem, «Mar Português», perpassa um sopro épico, exalta-se o esforço heróico dos Portugueses no domínio dos mares, Pessoa dá, por vezes, a réplica a Os Lusíadas. «O Mostrengo», do mesmo modo que o Adamastor, opõe à hostilidade bravia da Natureza a energia indómita dos Portugueses: «Sou um povo que quer o mar que é teu» – diz ao Mostrengo o homem do leme. Na Mensagem retoma-se, embora noutro registo, o tópico da vantagem que levam os Portugueses aos navegadores da Antiguidade: «Que o mar com fim será grego ou romano; / O mar sem fim é português». E, como n' Os Lusíadas, não se esconde que o reverso da vitória é as lágrimas: a épica integra em claro-escuro a história trágico-marítima: a Mensagem é também um livro-síntese:
«Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!» Mas a perspectiva mudou. Austero, absorto, Pessoa não canta a expansão terrena, menos ainda a guerra contra os
Infiéis. Não é católica apostólica romana a sua inspiração. O emprego do singular Deus, com maiúscula, imposto pela matéria da obra, não vale mais, como prova de convicção pessoal, que o emprego do plural deuses em Ricardo Reis. A atitude típica dos heróis da Mensagem é contemplativa e expectante: olham o indefinido, concentram-se na febre do além que o poeta encarna nos versos admiráveis de «A Noite»: «Com fixos olhos rasos de ânsia / Fitando a proibida azul distância». Depressa esta atitude significa uma ânsia metafísica, a busca duma Índia que não há. A primeira grande missão cometida por Deus a Portugal, desvendar o mundo, chegou ao seu termo: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez» – diz Pessoa em «O Infante». Então qual o destino nacional que vem anunciar? Que sentido tem o verso «Senhor, falta cumprir-se Portugal»?
A inspiração da Mensagem, como foi lembrado, é ocultista, e o Império entrevisto no futuro uma aventura do espírito, viagem sem fronteiras ou limitações movida pelo amor do diverso e uma constante inquietação. Quando muito (a fala sibilina deixa supô-lo) um império da língua portuguesa, superior por natureza ao império terreno, «obscuro e carnal anterremedo» que o tempo destruiu. Na terceira parte do livro, o lema «Pax in excelsis» e a despedida, «Valete, Fratres», sugerem um projecto de fraternidade universal entre os homens. Talvez o que se aponta seja, na verdade, a utopia, e por isso o elogio do herói, ao contrário do que sucede n'Os Lusíadas, redunda no elogio da «loucura» – essa loucura de sinal positivo sem a qual o homem não passa de «besta sadia», essa loucura que nos salva da «metade de nada» em que viver é morrer.
Em contraste com o realismo d'Os Lusíadas (ou do que realista em Camões se pretende), a Mensagem reage pela altiva rejeição a um «real» oco, absurdo, intolerável, propondo-nos em seu lugar a única coisa que vale a pena: o imaginário. Quem não soube – ou não quis – entender a Mensagem ignorou esta diferença essencial; nem soube captar a ironia imanente no intertexto pessoano (compare-se o optimismo voluntário do poema, incluso na profecia, embora marginada pela dúvida, com o pessimismo total da «Elegia na Sombra», escrita uns seis meses depois da publicação do livro, precisamente em 2-VI-1935). Uma vez mais, o poeta se contra-disse, ou disse o que estava latente no não-dito. Resta saber até que ponto o imaginário é susceptível de transformar o leitor enquanto homem e «lusíada, coitado» e em que medida o projecto de Pessoa, vate, cantor de mitos, visava além do simples, conquanto nobre e apaixonado, divertimento estético. Porque esta é, em certa perspectiva, a dupla face de Pessoa.»
Jacinto do Prado Coelho, Camões e Pessoa,
Poetas da Utopia, Lisboa, Europa-América, 1983
Memorial do Convento - apontamentos
Estrutura do Memorial do Convento
Estrutura externa
A obra é composta por 25 capítulos
Para além da sua divisão em capítulos, da obra destacam-se ainda 3 planos:
Plano da história
Portugal no século XVIII
Reinado de D. João V
Construção do Convento
Inquisição, autos de fé, casamento dos infantes
Plano da ficção da História
O narrador molda as personagens históricas, transformando-as
D. João e D. Ana caricaturados
Plano do fantástico
Construção da Passarola
Dom de Blimunda
⇒ Romance histórico - oferece uma descrição minuciosa da sociedade portuguesa da época.
Nesta obra, o ponto de vista do narrador altera o ponto de vista histórico e, como tal, a classificação de Memorial do convento como romance histórico não é consensual.
⇒ Romance social - preocupa-se com a realidade social fazendo sobressair o povo oprimido.
⇒ Romance de intervenção - visa denunciar a história repressiva portuguesa da 1ªmetade do século XX.
⇒ Romance de espaço - traduz não só o ambiente histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano.
..............................
O narrador em Memorial do Convento
Homodiegético
Fala na 1ªpessoa, dialoga com outras personagens
Ex : o fidalgo do cortejo do casamento dos príncipes (que explica a João Elvas o que se vai passando) e Manuel Milho
Heterodiegético
Está fora da história que narra
Fala na 3ª pessoa
Descreve, sentencia, profetiza
⇒ Em Memorial do Convento, o narrador conta a história com apartes e comentários:
com uma voz distanciada e impessoal
com uma voz intemporal, comentando os acontecimentos do passado à luz do presente
apresentando marcas da oralidade
como se estivesse dentro e fora das personagens (omnisciente)
.............................
Estilo e linguagem no Memorial do Convento
Discurso
tom coloquial e dialogante
marcas da oralidade
frases parentéticas e apartes
diálogos e monólogos
predomínio do presente e do futuro, em detrimento das frases no pretérito como é comum na narrativa
presença de discurso argumentativo e reflexivo
Recursos estilísticos
trocadilhos e ironia
adjetivação
hiperbole
metáfora
onomatopeia
enumeração
visualismo - o narrador guia o nosso olhar através de expressões como : "primeiro", "último" , " ou/ou" e enumerações
hipálage
anacronismo - faz a ligação entre o tempo da narração e o futuro através de comentários
.......................
A ação em Memorial do Convento
A obra Memorial do Convento divide-se em 4 linhas de ação (linhas estas anunciadas no paratexto da contra capa com " Era uma vez...".
Assim temos:
1. " Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um Convento em Mafra."
• A promessa
- Rei D. João (1689 - 1750) ordena a construcção do Convento que se inicia após o nascimento da princesa Maria Barbara, em cumprimento da promessa.
2. " Era uma vez a gente que construiu esse Convento. "
• " A gente "
- povo anómimo
- personagem coletiva que trabalha e sofre às mãos do rei
- hulmide e trabalhador o povo, que constrói o Convento, é enaltecido pelo narrador, que tenta individualizá-lo.
3. " Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. "
• Baltazar Mateus
- perdeu a mão esquerda trespassada por uma bala na Guerra da Sucessão Espanhola
- conhece Blimunda num auto-de fé no Rossio
- participa na construção da Passarola
- trabalha na construção do Convento
• Blimunda
- partilha com Baltazar um amor espontâneo, verdadeiro
- é vidente, em jejum consegue olhar por dentro das pessoas e das coisas
- recolhe as "vontades" que fazem voar a Passarola
4. " Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido."
• Padre Bartolomeu
- orienta Baltazar e Blimunda na construção da Passarola
- realiza o seu sonho, voando na Passarola
- é perseguido pelo Santo Oficio
- morre louco em Toledo
⇒ o último "Era uma vez" da contracapa abre a porta a todas as possíveis interpretações dos leitores.
..........................
As personagens em Memorial do Convento
Rei D. João V
Rei vaidoso, egocêntrico, megalómano e libertino
Rico e poderoso - não sabe o que fazer com tanta riqueza
Arrogante - a vontade do rei é divina
Tem " medo de morrer"
É ridicularizado pelo narrador que recorre à caricatura e ao tom irónico na sua descrição
Baltazar
Homem do povo nascido em Mafra
Não tem a mão esquerda
Tem a alcunha de Sete Sóis
Apaixonado por Blimunda
Sonhador, constrói a Passarola
Morre queimado num auto-de fé (54 anos)
Blimunda
Mulher misteriosa, fiel, intuitiva e inabalável no amor
Possui o dom da vidência, vê o interior dos corpos
Tem a alcunha de Sete Luas
Tem uma sabedoria muito própria, é inteligente
Padre Bartolomeu de Gusmão
Sonhador, visionário e culto
Capelão na corte e amigo de D. João V
Nascido no Brasil
Possui uma visão muito própria da religião pois:
- abençoa a relação de Baltazar e Blimunda
- aceita o dom de Blimunda
- é muito ligado à ciência
Possui um espírito cientifico que o vai afastando da igreja progressivamente
O seu conhecimento e estudos levam-no a interrogar-se acerca dos dogmas católicos
Tem medo da Inquisição, pois está consciente de que fez coisas condenadas pelo Santo Oficio como, a construção da Passarola
Morre louco em Toledo
Domenico Scarlatti
Músico italiano, nascido em Nápoles
Talentoso, culto e sonhador
Professor de D. Maria Bárbara
Trava amizade com o Padre Bartolomeu na corte do rei
Tem conhecimento da existência da Passarola e interessa-se pelo engenho
A sua música possui um poder curativo e inebriante
O povo
Populares anónimos, analfabetos e oprimidos
Trabalhadores humildes
Sacrificados e sujeitos à exploração dos poderosos
Elevados a herói pelo narrador
.......................
O amor em Memorial do Convento
Baltazar e Blimunda - casal transgressor dos códigos oficiais e sociais
integração mútua e perfeita
partilham o amor sem limites
não procriam - entregam-se um ao outro por amor, não olhando a limites, lugares ou datas
o silêncio é o canal de comunicação - amor intuitivo, natural
entendem-se através do olhar
Conhecem-se a 26 de Junho de 1711
Baltazar morre e 18 de Outubro de 1739 ⇒ 28 anos sem que o seu amor enfraquecesse
Rei e rainha
casamento de conveniência, sem amor
obrigações, datas marcadas
traições do rei
⇒ Ao longo do romance, o narrador opõe a vivência amorosa destes 2 casais: Blimunda e Baltazar e D. João com D. Maria Ana. As diferenças entre ambos são evidentes e tornam-se ainda mais acentuadas com a caricatura e tom irónico usado pelo narrador na descrição do casal real.
Enquanto Baltazar e Blimunda partilham um amor perfeito, entregando-se um ao outro sem olhar a datas ou lugares, o rei e a rainha encontram-se unidos por um casamento de conveniência que tem como objetivo a obtenção de herdeiros para a coroa portuguesa. Na relação dos monarcas tudo é assumido como um compromisso e, até as relações sexuais, são para o rei uma obrigação que ele cumpre em datas previamente definidas.
Outro aspeto que distingue os dois casais é a fidelidade. O facto de Baltazar apenas se dar a Blimunda opõe-se às constantes traições praticadas por D. João V.
Estrutura externa
A obra é composta por 25 capítulos
Para além da sua divisão em capítulos, da obra destacam-se ainda 3 planos:
Plano da história
Portugal no século XVIII
Reinado de D. João V
Construção do Convento
Inquisição, autos de fé, casamento dos infantes
Plano da ficção da História
O narrador molda as personagens históricas, transformando-as
D. João e D. Ana caricaturados
Plano do fantástico
Construção da Passarola
Dom de Blimunda
⇒ Romance histórico - oferece uma descrição minuciosa da sociedade portuguesa da época.
Nesta obra, o ponto de vista do narrador altera o ponto de vista histórico e, como tal, a classificação de Memorial do convento como romance histórico não é consensual.
⇒ Romance social - preocupa-se com a realidade social fazendo sobressair o povo oprimido.
⇒ Romance de intervenção - visa denunciar a história repressiva portuguesa da 1ªmetade do século XX.
⇒ Romance de espaço - traduz não só o ambiente histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano.
..............................
O narrador em Memorial do Convento
Homodiegético
Fala na 1ªpessoa, dialoga com outras personagens
Ex : o fidalgo do cortejo do casamento dos príncipes (que explica a João Elvas o que se vai passando) e Manuel Milho
Heterodiegético
Está fora da história que narra
Fala na 3ª pessoa
Descreve, sentencia, profetiza
⇒ Em Memorial do Convento, o narrador conta a história com apartes e comentários:
com uma voz distanciada e impessoal
com uma voz intemporal, comentando os acontecimentos do passado à luz do presente
apresentando marcas da oralidade
como se estivesse dentro e fora das personagens (omnisciente)
.............................
Estilo e linguagem no Memorial do Convento
Discurso
tom coloquial e dialogante
marcas da oralidade
frases parentéticas e apartes
diálogos e monólogos
predomínio do presente e do futuro, em detrimento das frases no pretérito como é comum na narrativa
presença de discurso argumentativo e reflexivo
Recursos estilísticos
trocadilhos e ironia
adjetivação
hiperbole
metáfora
onomatopeia
enumeração
visualismo - o narrador guia o nosso olhar através de expressões como : "primeiro", "último" , " ou/ou" e enumerações
hipálage
anacronismo - faz a ligação entre o tempo da narração e o futuro através de comentários
.......................
A ação em Memorial do Convento
A obra Memorial do Convento divide-se em 4 linhas de ação (linhas estas anunciadas no paratexto da contra capa com " Era uma vez...".
Assim temos:
1. " Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um Convento em Mafra."
• A promessa
- Rei D. João (1689 - 1750) ordena a construcção do Convento que se inicia após o nascimento da princesa Maria Barbara, em cumprimento da promessa.
2. " Era uma vez a gente que construiu esse Convento. "
• " A gente "
- povo anómimo
- personagem coletiva que trabalha e sofre às mãos do rei
- hulmide e trabalhador o povo, que constrói o Convento, é enaltecido pelo narrador, que tenta individualizá-lo.
3. " Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. "
• Baltazar Mateus
- perdeu a mão esquerda trespassada por uma bala na Guerra da Sucessão Espanhola
- conhece Blimunda num auto-de fé no Rossio
- participa na construção da Passarola
- trabalha na construção do Convento
• Blimunda
- partilha com Baltazar um amor espontâneo, verdadeiro
- é vidente, em jejum consegue olhar por dentro das pessoas e das coisas
- recolhe as "vontades" que fazem voar a Passarola
4. " Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido."
• Padre Bartolomeu
- orienta Baltazar e Blimunda na construção da Passarola
- realiza o seu sonho, voando na Passarola
- é perseguido pelo Santo Oficio
- morre louco em Toledo
⇒ o último "Era uma vez" da contracapa abre a porta a todas as possíveis interpretações dos leitores.
..........................
As personagens em Memorial do Convento
Rei D. João V
Rei vaidoso, egocêntrico, megalómano e libertino
Rico e poderoso - não sabe o que fazer com tanta riqueza
Arrogante - a vontade do rei é divina
Tem " medo de morrer"
É ridicularizado pelo narrador que recorre à caricatura e ao tom irónico na sua descrição
Baltazar
Homem do povo nascido em Mafra
Não tem a mão esquerda
Tem a alcunha de Sete Sóis
Apaixonado por Blimunda
Sonhador, constrói a Passarola
Morre queimado num auto-de fé (54 anos)
Blimunda
Mulher misteriosa, fiel, intuitiva e inabalável no amor
Possui o dom da vidência, vê o interior dos corpos
Tem a alcunha de Sete Luas
Tem uma sabedoria muito própria, é inteligente
Padre Bartolomeu de Gusmão
Sonhador, visionário e culto
Capelão na corte e amigo de D. João V
Nascido no Brasil
Possui uma visão muito própria da religião pois:
- abençoa a relação de Baltazar e Blimunda
- aceita o dom de Blimunda
- é muito ligado à ciência
Possui um espírito cientifico que o vai afastando da igreja progressivamente
O seu conhecimento e estudos levam-no a interrogar-se acerca dos dogmas católicos
Tem medo da Inquisição, pois está consciente de que fez coisas condenadas pelo Santo Oficio como, a construção da Passarola
Morre louco em Toledo
Domenico Scarlatti
Músico italiano, nascido em Nápoles
Talentoso, culto e sonhador
Professor de D. Maria Bárbara
Trava amizade com o Padre Bartolomeu na corte do rei
Tem conhecimento da existência da Passarola e interessa-se pelo engenho
A sua música possui um poder curativo e inebriante
O povo
Populares anónimos, analfabetos e oprimidos
Trabalhadores humildes
Sacrificados e sujeitos à exploração dos poderosos
Elevados a herói pelo narrador
.......................
O amor em Memorial do Convento
Baltazar e Blimunda - casal transgressor dos códigos oficiais e sociais
integração mútua e perfeita
partilham o amor sem limites
não procriam - entregam-se um ao outro por amor, não olhando a limites, lugares ou datas
o silêncio é o canal de comunicação - amor intuitivo, natural
entendem-se através do olhar
Conhecem-se a 26 de Junho de 1711
Baltazar morre e 18 de Outubro de 1739 ⇒ 28 anos sem que o seu amor enfraquecesse
Rei e rainha
casamento de conveniência, sem amor
obrigações, datas marcadas
traições do rei
⇒ Ao longo do romance, o narrador opõe a vivência amorosa destes 2 casais: Blimunda e Baltazar e D. João com D. Maria Ana. As diferenças entre ambos são evidentes e tornam-se ainda mais acentuadas com a caricatura e tom irónico usado pelo narrador na descrição do casal real.
Enquanto Baltazar e Blimunda partilham um amor perfeito, entregando-se um ao outro sem olhar a datas ou lugares, o rei e a rainha encontram-se unidos por um casamento de conveniência que tem como objetivo a obtenção de herdeiros para a coroa portuguesa. Na relação dos monarcas tudo é assumido como um compromisso e, até as relações sexuais, são para o rei uma obrigação que ele cumpre em datas previamente definidas.
Outro aspeto que distingue os dois casais é a fidelidade. O facto de Baltazar apenas se dar a Blimunda opõe-se às constantes traições praticadas por D. João V.
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