Um cantinho onde o Português, a Literatura, os vários discursos, os enunciados, as opiniões, as críticas... podem ser teus...
segunda-feira, 21 de maio de 2012
“Felizmente Há Luar!”, de Luís de Sttau Monteiro
análise da obra de Sttau Monteiro - "Felizmente Há Luar!"
Como afirma Vitor Manuel Aguiar e Silva, no início dos anos 60 «de forma embrionária, balbuciante nos seus primeiros passos na cena portuguesa, a lição brechteana dava os seus primeiros frutos...» O primeiro passo era a peça O Render dos Heróis de José Cardoso Pires, o passo seguinte - Felizmente Há Luar! de Luís de Sttau Monteiro (1961).
Este último devia ter disto perfeita consciência, já que assim redigiu as didascálias iniciais:
«(...) Este gesto é francamente "representado". O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário são apenas elementos duma linguagem a que tem de adaptar-se. (...) Pretende-se criar, desde já no público, a consciência de que ninguém, no decorrer desta peça, vai esboçar um gesto para cativar ou para acamaradar com ele. (O réu não se senta ao lado dos juízes).» (Monteiro 2008).
Encontramos aqui uma referência directa ao conceito brechteano do teatro épico, bem como ao de distanciamento ou estranhamento, já referidos na entrada passada.
De maneira parecida ao que fez Cardoso Pires na sua obra, Luís de Sttau Monteiro também situa a acção da sua peça no século XIX, nomeadamente no ano 1817, e aproveita factos históricos relacionado com uma tentativa falhada de revolta popular, supostamente chefiada pelo general Gomes Freire d'Andrade. Durante a peça podemos observar os bastidores do poder, personalizado nas figuras de D. Miguel Forjaz, Beresford e Principal Sousa, e o seu estranho "jogo" que visa o aniquilamento da insurreição pressentida. Devido à falta de provas, é urgente encontrar um bode expiatório - o carismático general Gomes Freire d'Andrade.
D. MIGUEL:
Senhores Governadores: aí tendes o chefe da revolta. Notai que lhe não falta nada: é lúcido, é inteligente, é idolatrado pelo povo, é um soldado brilhante, é grão-mestre da Maçonaria e é, senhores, um estrangeirado... (Monteiro 2008: 71).
Vitor Manuel Aguiar e Silva chama a atenção para o facto que «em virtude das profundas mutações que a sociedade portuguesa pós 25 de Abril registou, obras como as de Sttau Monteiro (para além de Felizmente Há Luar!) surgem-nos como irremediavelmente datadas» (grifo do autor).
Por conseguinte, para descodificar todo o subtexto e descobrir paralelismos com a situação vigente na altura em que a obra foi escrita, precisamos do contexto histórico em que ela surgiu e que é:
- o início da guerra colonial em Angola (1961);
- as múltiplas exposições de contestação interna (greves, movimentos estudantis);
- os pequenos "goples palacianos" preanunciadores de clivagens internas, no seio do próprio Poder;
- o crescente aparecimento do movimentos de opinião organizados a par da oposição política que, embora reprimida, fazia sentir a sua voz, nomeadamente na exigência de eleições livres (Aguiar e Silva).
O aparecimento desta narrativa dramática coincide então com o crescente descontentamento de intelectuais politicamente mais preparados.
Assim como pouco tempo antes O Render do Heróis de José Cardoso Pires, também a obra de Luís de Sttau Monteiro aproveita personagens e factos históricos como uma estrutura base que serve para lembrar aos contemporâneos que a história costuma repetir-se e será bom ter em conta lições dos seus acontecimentos.
MONTEIRO, Luís Sttau (2008) Felizmente Há Luar! Porto, Areal Editores.
Contextualização
A história desta peça passa-se na época da revolução francesa de 1789.
As invasões francesas levaram Portugal à indecisão entre os aliados e os franceses. Para evitar a rendição, D. João V foge para o Brasil. Depois da primeira invasão, a corte pede auxilio a Inglaterra para reorganizar o exército. Estes enviam-nos o general Beresford.
Luís de Sttau Monteiro denuncia a opressão vivida na época do regime salazarista através desta época particular da história. Assim, o recurso à distanciação histórica e à discrição das injustiças praticadas no inicio do século XIX, permitiu-lhe, também, colocar em destaque as injustiças do seu tempo, o abuso de poder do Estado Novo e as ameaças da PIDE, entre outras.
“Felizmente Há Luar!” é um texto bifronte, um texto entre dois contextos, relativo a dois tempos, o passado e o presente, estando aquele ao serviço deste. Trata-se de uma metáfora, no sentido em que muitas das situações apresentadas no seu contexto oitocentista se podem transpor para o tempo da escrita e da representação, as décadas de 50 e 60 do século XX. Pode ser considerado uma metáfora do seu próprio tempo, metáfora didáctica que apela à razão para que através desta se atinja uma consciência social e política.
Uma leitura atenta do texto, com o objectivo de encontrar pontes de sentido que permitam a ligação dos dois contextos referidos, pode iniciar-se com as referências que a didascália “Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores” indica, conjugada com “Ouve o som dos tambores” e “(Todos se levantam e escutam a medo [...] e preparam-se para fugir [...])“. O ruído dos tambores funciona como metonímia de um poder repressor, sempre presente tanto no contexto político absolutista como no fascista. Repare-se que os tambores são ouvidos por populares que estão reunidos para comentar a situação política e fazem-no a medo: a mesma situação ocorria frequentemente sob o regime salazarista onde qualquer reunião era tida como potencialmente suspeita consequentemente, reprimida.
Esta questão da falta de liberdade de reunião e expressão surge logo de seguida no texto quando o Antigo Soldado entoa uma quadra onde se refere explicitamente a “liberdade”.
Na continuação da conversa entre os populares, surge a referência ao general Comes Freire, classificado entusiasticamente pelo Antigo Soldado como “Um amigo do povo!”. Através de Manuel que diz, referindo-se ao general, “Se ele quisesse, lança-se a semente da esperança com a possibilidade de acção do general em direcção à liberdade ansiada. Ora é este momento precisamente que mais deve ter tocado o leitor/espectador da obra, as pessoas empenhadas na luta antifascista em Portugal nas décadas atrás referidas: de facto, rapidamente terão estabelecido uma relação de proximidade, senão de identificação, entre o general Gomes Freire e o general Humberto Delgado.
Esta analogia terá sido pois apreendida pelos primeiros leitores da obra. O contributo do general Gomes Freire para a alteração da situação política do seu tempo possibilitado pela didascália a propósito do silêncio que as palavras ousadas de Manuel provocaram: “Este silêncio é pesado. [...] Ainda têm nos ouvidos o ruído dos tambores, símbolo de uma autoridade sempre presente e sempre pronta a interferir”. É contra esta “autoridade” repressiva que Gomes Freire se poderá eventualmente levantar; do mesmo modo que Humberto Delgado o tentou fazer: a identificação é indiscutível. E se se atentar nas palavras de Vicente, logo de seguida, “Se ele quisesse? Mas se ele quisesse o quê? Vocês ainda não estão fartos de generais?”, melhor se pode aprofundar a leitura que vê em Gomes Freire o general Humberto Delgado: de facto, também aquando da sua candidatura, havia sectores da esquerda portuguesa que não o viam com bons olhos, precisamente por ser um militar saído do exército que sustentava o regime.
É o mesmo Vicente que lança uma acusação a Gomes Freire, indiciando-o como “estrangeirado”, referindo-se à sua formação austríaca e francesa: como se sabe, ele tomou nesses países contacto com as novas ideias políticas saídas da Revolução Francesa. Também Humberto Delgado terá tomado consciência das virtudes da liberdade política enquanto adido militar nos Estados Unidos.
A concepção da personagem Vicente contribui para estabelecer identificações entre os dois tempos. Ela pode ser considerada um bom exemplo do tipo pidesco que pululou em Portugal durante o Estado Novo: de origem popular, trai o povo a que pertence para subir na vida. Também a grande maioria da polícia política fascista passou por um percurso semelhante. E, se se atentar nas palavras da mesma personagem mais adiante, pode afirmar-se que elas remeteram sem dúvida os leitores de Sttau Monteiro para a figura máxima do regime nesse tempo: Salazar. De facto o percurso social e político do ditador está bem sintetizado por Vicente: “Os degraus da vida são logo esquecidos por quem sobe a escada... Pobre de quem lembre ao poderoso a sua origem... Do alto do poder, tudo o que ficou para trás é vago e nebuloso”.
É precisamente o poder que aparece seguidamente na peça: absolutista, com características que permitem imediata aproximação ao fascismo do Estado Novo. O governo absolutista apresenta-se como uma trindade: uma componente civil (D. Miguel), uma religiosa (Principal Sousa) e uma militar (Beresford), que sustenta as duas anteriores. Também o regime fascista apresentava esta estrutura: Salazar no poder civil, Cerejeira no religioso e o exército como sustentáculo do regime. De tal modo que, quando o exército não quis, o regime caiu.
A ligação entre o poder político e o religioso é proclamada pelo Principal Sousa: “Diz o Eclesiastes que, tendo Deus dividido o género humano em várias nações, a cada uma delas deu um príncipe que a governasse... É de origem divina o poder dos reis e é portanto a sua—e não a do povo — a voz de Deus” .
Estes três esteios do poder conspiram entre si para manter o estado de coisas a nível político. Num contexto social que dá indícios de agitação por comunhão com as ideias de liberdade que sopram de França e do Brasil — não será por acaso que D. Miguel fala da “revolta de Pernambuco”, movimento que punha em causa a origem divina do poder real, uma revolta passada na colónia que era uma democracia ao tempo da escrita da peça — num contexto em que, nas palavras de D. Miguel, “o povo fala abertamente em revolução”, reflecte-se o ambiente de esperança na liberdade que se vivia em Portugal nos últimos anos da década de 50, exacerbada pela candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República.
Outra referência que permite a identificação dos dois tempos, e que funciona como denúncia do obscurantismo em que o poder fascista mantinha o povo, ocorre quando, propondo Vicente ao Principal Sousa que se ensine o povo a ler, o prelado responde: “[...] a sabedoria é tão perigosa como a ignorância!”: ora o mesmo pressuposto fez com que o poder ditatorial em Portugal investisse muito pouco na alfabetização das camadas populares, como ainda hoje se sente. Esta questão do ensino é abordada de novo mais adiante pelo Principal Sousa, que informa os colegas de triunvirato que “[...I é cada vez maior o número dos que só pensam aprender a ler...” .
A mesma personagem prenuncia o “orgulhosamente sós” que será anos mais tarde bandeira do regime salazarista, quando afirma: “Temos uma missão a cumprir, uma missão sagrada e penosa: a de conservar no jardim do Senhor este pequeno canteiro português. Enquanto a Europa se desfaz, o nosso povo tem de continuar a ver, no Céu, a Cruz de Ourique”.
A união dos três poderes referidos, existente tanto no estertor do absolutismo como durante os anos da ditadura em Portugal, aparece nítida na didascália “(Ilumina-se o palco. D. Miguel Forjaz, Beresford e o Principal Sousa estão sentados em três cadeiras pesadas e ricas com aparência de tronos)”.´
O poder discricionário absolutista/fascista, o tipo de justiça programada/manipulada que em ambos os regimes ocorre, está patente na conjura que se arma contra Gomes Freire. Diz D. Miguel, dirigindo-se ao Principal Sousa: “Reverência, as provas judiciais pertencem ao domínio da razão e, se não pudermos condenar nesse domínio, faremos com que o julgamento decorra no outro, o da emoção, já que a emoção, Reverência, nem carece de provas, nem se apoia na razão”. Pouco depois D. Miguel e o Principal Sousa traçarão o programa desta irrupção da emoção como contributo para destruir Gomes Freire.
Um dos momentos do texto em que melhor se verifica a identificação entre Humberto Delgado e Gomes Freire ocorre quando Morais Sarmento adverte os governantes de que a conspiração de Gomes Freire se destina a “implantar neste reino o sistema das cortes”, isto é, a democracia representativa; ora também Humberto Delgado não fizera segredo do destino que pretendia dar a Salazar no caso de ser eleito, e sabe-se que o objectivo do derrube da ditadura implicava o aparecimento da democracia parlamentar tal como quase toda a Europa ocidental a conhecia então e como a conhecemos nós desde o 25 de Abril de 1974.
Outras situações que nos permitem ainda a transposição de tempos referida são as seguintes: Gomes Freire e os outros onze presos funcionam como denúncia dos presos políticos do regime salazarista; Beresford representa a ajuda estrangeira ao regime do Estado Novo, ajuda que, embora consciente da natureza política fascista deste, sempre existiu; Andrade Corvo e Morais Sarmento, juntamente com Vicente e os dois polícias, são o espelho de organizações de denúncia e repressão como a Legião Portuguesa ou a PIDE/DGS; Matilde pode ser considerada o reflexo de mães, esposas, irmãs de presos políticos, que vão adquirindo consciência política com a situação do familiar; populares como Manuel, Rita ou o Antigo Soldado representam a população que, embora acreditando na acção do general Humberto Delgado, não apresenta capacidade de acção e acaba marcada pela desesperança; de Sousa Falcão se pode dizer que aponta para todos aqueles que, embora amigos de presos políticos e conscientes da ditadura e da necessidade de agir, não ousam actuar; finalmente, Frei Diogo, pode ser entendido como metonímia dos elementos do clero católico que, conhecedores da situação de opressão e miséria do povo, não ousam levantar a voz.
Carácter épico
“Felizmente Há Luar! ” é um drama narrativo, de carácter social, dentro dos princípios do teatro épico, na linha do teatro de Brecht exprime a revolta contra o poder e a convicção de que é necessário mostrar o mundo e o homem em constante devir. Defende as capacidades do homem que tem o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. Por isso, oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar posição.
Inspirado na teoria marxista, que apela às reflexão, não só no quadro da representação, mas também na sociedade em que se insere.
De acordo com Brecht, Sttau Monteiro pretende representar o mundo e o homem em constante evolução de acordo com as relações sociais. Estas características afastam-se da concepção do teatro aristotélico que pretendia despertar emoções, levando o publico a identificar-se com o herói. O teatro moderno tem como preocupação fundamental levar os espectadores a pensar, a reflectir sobre os acontecimentos passados e a tomar posição na sociedade em que se inserem. Surge, assim, a técnica do distanciamento que propõem um afastamento entre o actor e a personagem e entre o espectador e a história narrada, para que, de uma forma mais real e autêntica, possam fazer juízos de valor sobre o que se está a ser representado.
Desta forma, o teatro já não se destina a criar terror ou piedade, isto é, já não tem uma função purificadora, realizada através das emoções, tendo, então, uma capacidade crítica e analítica para quem o observa. Brecht pretendia substituir o “sentir” por “pensar”, levando o público a entender de forma clara a sua mensagem por meio de gestos, palavras, cenários, didascálicas e focos de luz.
Estes são, também, os objectivos de Sttau Monteiro, que evoca situações e personagens do passado (movimento liberal oitocentista), usando-as como pretexto para falar do presente (ditadura salazarista) e, assim, pôr em evidencia a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a injustiça e todas as formas de perseguição.
Paralelismo entre passado e as condições históricas dos anos 60: denuncia da violência
Século XIX – 1817
Século XX – anos 60
Agitação social que levou à revolta de 1820
Agitação social: conspirações internas; principal erupção da guerra colonial
Regime absolutista e tirano
Regime ditatorial salazarista
Classes hierarquizadas, dominantes, com medo de perder privilégios
Classes exploradas; desigualdade entre abastados e pobres
Povo oprimido e resignado
Povo reprimido e explorado
Miséria, medo, ignorância, obscurantismo mas “felizmente há luar”
Miséria, medo, analfabetismo, obscurantismo mas crença nas mudanças
Luta contra a opressão do regime
Luta contra o regime totalitário e ditatorial
Perseguições dos agentes de Beresford
Perseguições da PIDE
Denúncias de Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento
Denúncias dos delatores
Censura à imprensa
Censura total
Repressão dos conspiradores; execução sumária e pena de morte
Prisão; duras medidas de repressão e tortura; condenação sem provas
Execução de Gomes Freire
Execução de Humberto Delgado
Revolução de 1820
Revolução do 25 de Abril de 1974
- Características da obra:
- personagens psicologicamente densas e vivas
- comentários irónicos e mordazes
- denúncia da hipocrisia da sociedade
- desfesa intransigente da justiça social
- teatro épico: oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar uma posição
- intemporalidade da peça remete-nos para a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a traição, a injustiça e todas as formas de perseguição
- preocupação com o homem e o seu destino
- luta contra a miséria e a alienação
- denúncia a ausência de moral
- alerta para a necessidade de uma superação com o surgimento de uma sociedade solidária que permitia a verdadeira realização do homem
Personagens
A análise das personagens em Felizmente Há Luar! leva a questionar o seu estatuto. Com efeito, Gomes Freire de Andrade assume centralidade na obra, apesar de nunca surgir em cena, O autor coloca-o na lista das personagens, dizendo que “está sempre presente, embora nunca apareça”.
Gomes Freire é apresentado como símbolo da defesa da liberdade, bipolarizando todas as outras personagens contra ou a seu favor, mesmo quando não têm a coragem de o seguir abertamente, como é o caso dos populares ou de Sousa Falcão.
É neste âmbito que podemos dividir as personagens em dois grupos distintos: as que detêm o poder autoritário e repressivo ou colaboram com ele, e as que estão ligadas ao desejo e luta pela liberdade e, nessa medida, constituem um contrapoder.
Esta divisão das personagens mostra, também, como o mundo ideológico é independente do mundo social.
Cada personagem representa, não um grupo social ou profissional, mas uma atitude ideológica, activa ou passiva.
Em Felizmente Há Luar!, mais importante do que a história das personagens propriamente dita, é a tomada de consciência de uma problemática social geral.
Nesta perspectiva, as oposições ricos vs. pobres e oprimidos vs. opressores são as mais fortes e evidentes. Outra há, no entanto, que, passando mais despercebida, está nitidamente marcada na obra: masculino vs. feminino.
O mundo da acção política e social era masculino. A mulher era a “sombra” do homem e tinha como tarefas cuidar do seu bem-estar e criar-lhe e educar-lhe os filhos.
Na obra, perante um mundo masculino, encontram-se duas mulheres de estatuto social diferente, mas que apresentam o mesmo tipo de relação com este. O afecto de Manuel por Rita é evidente no carinho com que ele a trata quando a vê partilhar o desespero de Matilde, assim como o afecto do general por Matilde o é também quando, não tendo dinheiro, em Paris, Gomes Freire vende duas medalhas e lhe compra uma saia. No entanto, vê-se que Rita obedece sempre ao marido sem qualquer contestação, mesmo quando se pressente que esse comportamento não lhe agrada, e Matilde, para além de andar “na esteira” de Gomes Freire, é mantida numa redoma, não sabendo nada do que se passa à sua volta, nem como reagir perante a prisão do general. Este desconhecimento do mundo masculino impede-a de partilhar sonhos idealistas e acaba por perturbar, também, o seu mundo afectivo, ao provocar distanciamento entre ela e Comes Freire. Para além disso, traz-lhe a incapacidade de reagir quando esse mundo exterior se abate sobre o seu mundo.
Há três grupos importantes de personagens no poema:
1. Povo
® Rita, Antigo Soldado, Populares
· Personagens colectiva
· Representam o analfabetismo e a miséria
· Escravizado pela ignorância
· Não tem liberdade
· Desconfiam dos poderosos
· São impotentes face à situação do país (não há eleições livres, etc.)
® Manuel
· Denuncia a opressão
· Assume algum protagonismo por abrir os dois actos
· Papel de impotência do povo
® Matilde
· Personagem principal do acto II
· Companheira de todas as horas de Gomes Freire
· Forte, persistente, corajosa, inteligente, apaixonada
· Não desiste de lutar, defendendo sempre o marido
· Põe de lado a auto-estima (suplica pela vida do marido)
· Acusa o povo de cobardia mas depois compreende-o
· Personifica a dor das mães, irmãs, esposas dos presos políticos
· Voz da consciência junto dos governadores (obriga-os a confrontarem-se com os seus actos)
· Desmascara o Principal Sousa, que não segue os princípios da lei de Cristo
® Sousa Falcão
· Amigo de Gomes Freire e Matilde
· Partilha das mesmas ideias de Gomes Freire mas não teve a sua coragem
· Auto-incimina-se por isso
· Medroso
Delatores
Representam os “bufos” do regime salazarista.
® Vicente
· É do povo mas trai-o para subir na vida
· Tem vergonha do seu nascimento, da sua condição social
· Faz o que for preciso para ganhar um cargo na polícia
· Demagogo, hipócrita, traidor, desleal e sarcástico
· Falso humanitário
· Movido pelo interesse da recompensa
· Adulador do momento
® Andrade Corvo e Morais Sarmento
· Querem ganhar dinheiro a todo o custo
· Funcionam como “bufos” também pelo medo que têm das consequências de estar contra o governo
· Mesquinhos, oportunistas e hipócritas
2. Governadores
Representam o poder político e são o cérebro da conjura que acusa Gomes Freire de traição ao país; não querem perder o seu estatuto; são fracos, mesquinhos e vis; cada um simboliza um poder e diferentes interesses; desejam permanecer no poder a todo o custo
® Beresford
· Representa o poder militar
· Tem um sentimento de superioridade em relação aos portugueses e a Portugal
· Ridiculariza o nosso povo, a vida do nosso país e a atrofia de almas
· Odeia Portugal
· Está sempre a provocar o principal Sousa
· Não é melhor que aqueles que critica mas é sincero ao dizer que está no poder só pelo seu cargo que lhe dá muito dinheiro
· Tem medo de Gomes Freire (pode-lhe tirar o lugar)
· Oportunista, severo, disciplinar, autoritário e mercenário
· Bom militar, mau oficial
® Principal Sousa
· É demagogo e hipócrita
· Não hesita em condenar inocentes
· Representa o poder clerical/Igreja
· Representa o poder da Igreja que interfere nos negócios do estado
· Não segue a doutrina da Igreja para poder conservar a sua posição
· Não tem argumentos face ao desmascarar que sofre de Matilde
· Tem problemas de consciência em condenar um inocente mas não ousa intervir para não perder a sua posição confortável no governo
· Fanático religioso
· Corrompido pelo poder eclesiástico
· Desonesto
· Odeia os franceses
· Defende o obscurantismo
® D. Miguel Forjaz
· Representa o poder político e a burguesia dominadora
· Quer manter-se no poder pelo seu poder político-económico
· Personifica Salazar
· Prepotente, autoritário, calculista, servil, vingativo e frio
· Corrompido pelo poder
· Primo de Gomes Freire
v Gomes Freire de Andrade
· Representa Humberto Delgado
· Personagem virtual/central
· Sempre presente nas palavras das outras personagens
· Caracterizado pelo Antigo Soldado, por Manuel; D. Miguel e Beresford
· Idolatrado pelo povo
· Acredita na justiça e na luta pela liberdade
· Soldado brilhante
· Estrangeirado
· Símbolo da esperança e liberdade
v Polícias: representam a PIDE
v Frei Diogo de Melo: representam a Igreja consciente da situação do país...
Tempo
® Tempo histórico ou tempo real (século XIX - 1817)
· Invasões francesas (desde 1807): rei no Brasil
· Ajuda pedida aos ingleses (Beresford)
· Regime absolutista
· Situação económica portuguesa má: dinheiro ia para a corte no Brasil
· Regência, influenciada por Beresford (símbolo do poder britânico em Portugal)
· Primeiros movimentos liberais (1817), com a conspiração abortada de Gomes Freire
· 25 De Maio de 1817 – prisão de Gomes Freire; 18 de Outubro de 1817 – enforcado, datas condensadas em dois dias na peça (tempo de acção dramática)
· Governadores viam na revolução a destruição da estrutura tradicional do Reino e a supressão dos privilégios das classes favorecidas
· O povo via na revolução a solução para a situação em que se encontrava
· Revolução liberal de 1820
· Implantação do liberalismo em 1834, com o acordo de Évora-Monte
® Tempo metafórico ou tempo da escrita (século XX - 1961)
· Permanentemente presente (implícito)
· Época conturbada em 1961: guerra colonial angolana; greves; movimentos estudantis; pequenas “guerrilhas” internas; crescente aparecimento de movimentos de opinião organizados; oposição política
· Situação política, social e económica de desagrado geral
· Regime ditatorial salazarista: desigualdade entre abastados e pobres muito grande; povo reprimido e explorado; miséria, medo; analfabetismo e obscurantismo
· PIDE, delatores; censura; medidas de repressão/tortura e condenação sem provas
· Sttau Monteiro evoca situações e personagens do passado como pretexto para falar do presente.
· Grande dualidade de conceitos entre os dois tempos: Gomes Freire é Humberto Delgado; os governadores três são o regime salazarista; Vicente e os delatores são os “bufos”; os homens de Beresford são a PIDE…
→ O futuro
A projecção do tempo no futuro é importante para a revelação do mundo interior e, por isso, tem grande destaque em Felizmente Há Luar!
1) Desejos para o futuro
Para a compreensão das personagens e dos seus comportamentos é importante conhecer os desejos para o futuro que norteiam os seus objectivos.
Vicente recorre à denúncia para obter o cargo de polícia que realizará o seu sonho de bem-estar socioeconómico.
Morais Sarmento e Andrade Corvo planeiam o futuro discorrendo não só sobre as vantagens que a denúncia lhes trará, mas também sobre os inconvenientes sociais dessa traição e modo de os ultrapassar.
Beresford revela que é o seu sonho de poder viver em Inglaterra como um gentleman que motiva o seu comportamento.
D. Miguel afirma que a sua acção visa a construção de “um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor”, um país em que a nobreza dirija sem qualquer limitação.
2) Medos e projectos
Da incapacidade de aceitar as mudanças (D. Miguel) ou da percepção de que os seus interesses estão em jogo (Beresford e Principal Sousa) nascem visões medonhas do futuro e projectos maquiavélicos de acção para manter o poder a todo o custo.
D. Miguel tem medo de “um mundo em que se não distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um nobre dum popular”, em “que o taberneiro da esquina possa discutir a opinião d’el-rei”, em que a sua opinião valha “tanto como a de qualquer arruaceiro”, isto é, teme perder a sua posição se o povo puder “escolher os seus chefes”. Por isso, tendo em conta o seu conhecimento da psicologia popular, planeia minuciosamente uma acção contra-revolucionária que envolverá, também, o clero e o exército e, mais tarde, planifica, igualmente, o julgamento de Gomes Freire, de modo a tornar inevitável a sua condenação.
3) Esperança
O final da peça demonstra que o passado e o presente determinam os acontecimentos seguintes, já que, devido à morte de Comes Freire, o futuro, que na sequência do presente se antevia como pouco esperançoso, irá tornar-se, na perspectiva de Matilde, um tempo de esperança e de luta eficaz pela liberdade.
O passado irreal
Uma das facetas mais complexas do tempo é o passado irreal, isto é, o tempo imaginado do que poderia ter sido e não foi. Em Felizmente Há Luar! revela-se assim o universo idealizado, de tranquilidade familiar, sonhado por Matilde, que não passa de uma ilusão desesperada e cega, própria de quem tem a consciência de que a realidade está completamente desfasada do desejo.
Tempo psicológico
Para Matilde, o passado, que começou por ser tempo de anulação, tornou-se tempo de felicidade, em Paris, apesar das dificuldades financeiras. O presente é, assim, um tempo marcado pela saudade do passado. O futuro, que inicialmente se apresenta negro, devido à prisão e provável morte do seu homem, acaba por transformar-se em tempo de esperança, quando ela assume os valores sociais que são atribuídos a Gomes Freire.
Também para o Antigo Soldado, que tem em comum com Matilde a convivência com Gomes Freire, o passado é tempo de saudade; no entanto, os restantes populares, marcados pelo determinismo, vivem exclusivamente o momento presente, ou melhor, sem passado nem futuro de relevo, limitam-se a sobreviver. Para eles, o passado é apenas a memória de momentos em que a esmola foi maior. Até Manuel, o elemento que mais se destaca, se deixa dominar pela fatalidade perante a prisão de Gomes Freire.
Vicente, pelo contrário, é marcado pelo passado de miséria igual ao dos outros, mas que ele consciencializa. É este facto que vai ditar o seu presente de delator, tendo em vista não só a fuga ao determinismo do futuro, mas também procurando apagar o próprio passado e mesmo o presente.
Envelhecimento
O tempo é um factor de desgaste físico e evolução psicológica. Se para Gomes Freire o tempo trouxe um processo de amadurecimento já que “a idade lhe aumentou a fome e a sede de justiça”, para o Principal Sousa o envelhecimento será um processo gradativo de remorsos — é a praga, de provável realização, com que Matilde o amaldiçoa. O tempo desenvolveu capacidades em Vicente, particularmente a de compreender os mecanismos do poder. Mas, desenvolveu, também, o espírito crítico com que observa o envelhecimento dos outros — é por ele que se sabe que os velhos soldados, já sem préstimo para o exército, são obrigados a pedir esmola pelas igrejas. Aflora-se, assim, a problemática socioeconómica da velhice.
Espaço
· Espaço físico: a acção desenrola-se em diversos locais, exteriores e interiores, mas não há nas indicações cénicas referência a cenários diferentes
· Espaço social: meio social em que estão inseridas as personagens, havendo vários espaços sociais, distinguindo-se uns dos outros pelo vestuário e pela linguagem das várias personagens
Estrutura
A acção da peça está dividida em dois actos (estrutura externa), o primeiro com onze sequências e o segundo com treze (estrutura interna). No acto I trama-se a morte de Gomes Freire; no acto II põe-se em prática o plano do acto I.
Simbologia
§ Trinta moedas
o Gesto de traição por não conseguirem ajudar o General
§ Saia verde
o Em vida – esperança, felicidade, liberdade da sua relação
o Na morte – alegoria ao reencontro e tranquilidade (Matilde acredita na vida depois da morte)
§ Fogueira
o Presente – tristeza, escuridão
o Futuro – esperança, liberdade
§ Luar
o Noite – morte, mal, infelicidade
o Luz – vida, saúde, felicidade
o Lua – dependência (da luz do sol), periocidade e rejuvenescimento (ciclo lunar) e renovação (crescimento)
§ Felizmente Há Luar!
o Para os opressores – efeito dissuasor
§ O luar servirá para fazer com que as pessoas saiam à rua
§ Fogueira – purificadora da sociedade
§ Serve de exemplo – eficácia da execução
o Para os oprimidos – coragem e estímulo para a revolta contra a tirania
§ Fogueira – alerta e luz que ilumina o caminho da liberdade
§ Estímulo e encorajamento para que o povo se possa revoltar.
§ Moeda de 5 reis: símbolo de desrespeito que os mais poderosos mantinham para com o próximo, contrariando os mandamentos de Deus
§ Tambores: símbolos da repressão
Didascálias
§ Explicações do autor
§ Posição das personagens
§ Caracterização do tom de voz
§ Indicação das pausas
§ Saída ou entrada das personagens
§ Movimentações cénicas
§ Expressão do estado de espírito
§ Expressão fisionómica e gestual
Linguagem e estilo
· Recursos estilísticos: enorme variedade (tomar espacial atenção à ironia e ao sarcásmo)
· Funções da linguagem: apelativa (frase imperativa); informativa (frase declarativa); emotiva [frase exclamativa, reticências, anacoluto (frases interrompidas)]; metalinguística
· Marcas da linguagem e estilo: provérbios, expressões populares, frases sentenciosas
· natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e individualizadora de algumas das personagens
· uso de frases em latim com conotação irónica, por aparecerem no momento da condenação e da execução
· frases incompletas por hesitação ou interrupção
· marcas características do discurso oral
· Texto principal: As falas das personagens
· Texto secundário: as didascálias/indicações cénicas (têm um papel crucial na peça)
A didascália
A peça é rica em referências concretas (sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação – relacionadas com os opressores; tristeza, esperança, medo, desânimo – relacionadas com os oprimidos). As marcações são abundantes: tons de voz, movimentos, posições, cenários, gestos, vestuário, sons (tambores, silêncio, voz que fala antes de entrar no palco, sino que toca a rebate, murmúrio de vozes, toque duma campainha) e efeitos de luz (contraste entre a escuridão e a luz; os dois actos terminam em sombra). De realçar que a peça termina ao som de fanfarra (“Ouve-se ao longe uma fanfarronada que vai num crescendo de intensidade até cair o pano.”) em oposição à luz (“Desaparece o clarão da fogueira.”); no entanto, a escuridão não é total, porque “felizmente há luar”.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário