Em esquema, a arquitectura d'Os Maias poderia, portanto, representar-se assim:
A arquitectura d'Os Maias
Chave:
1 - Introdução (5 pp.): marco inicial da acção; o Ramalhete; Afonso.
2 - Preparação (cerca de 85 pp.):
* a) juventude de Afonso;
* b) infância de Pedro;
* c) juventude, amores e suicídio de Pedro;
* d) infância e educação de Carlos;
* e) Carlos estudante em Coimbra;
* f) primeira viagem de Carlos
3 - Acção (cerca de 590 pp.).
4 - Epílogo (cerca de 27 pp.):
* a) viagem de Carlos e do Ega (1877-78);
* b) cenas da estada de Carlos em Lisboa, oito anos depois (1887).
Setas ascendentes: indicam a cronologia do narrado.
Curvas a tracejado: indicam (de modo impreciso) analepses completivas e repetitivas, ou sejam, respectivamente, de acordo com Gérard Genette, «segmentos retrospectivos que vêm preencher lacunas anteriores da narrativa» e «alusões da narrativa ao seu próprio passado». Nestas últimas, evocam-se em atitude nostálgica, reflexiva, figuras ou situações já conhecidas não só das personagens como do leitor.
Nas suas três partes fundamentais, o romance está organizado, como se vê, em torno da acção, para servir a acção, que é, tomado à letra, um caso individual (a paixão de Carlos pela irmã); e a acção, que é a parte central, constitui mais de quatro quintos do texto. Só secundariamente, portanto, serão Os Maias um roman fleuve; o autor teve entretanto a ambição de enquadrar o caso de Carlos (na sua dupla face: alvo dum destino caprichoso e cruel; membro típico duma sociedade à deriva) num conjunto mais vasto, surpreendido na sua dimensão histórica: o Portugal do século XIX, o Portugal romântico.
Jacinto do Prado Coelho, «Para a compreensão d'Os Maias, como um todo orgânico»,
em Ao contrário de Penélope, Amadora, Bertrand, 1976, pp. 169-170.
Um cantinho onde o Português, a Literatura, os vários discursos, os enunciados, as opiniões, as críticas... podem ser teus...
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Portugal no tempo de «Os Maias»
Portugal no tempo de «Os Maias»
Os Vencidos da Vida
É muito importante, para a interpretação ideológica das correntes literárias que vão suceder no segundo romantismo análise do conteúdo político e doutrinário das facções que se envolveram na guerra civil de 1847. A derrota do setembrismo explica a dissolução da mensagem progressista da pequena burguesia; que tivera os seus representantes máximos em Garrett e Herculano.
(...) A Regeneração (que chegou a iludir Herculano, Garrett e José Estêvão) dilui as energias da burguesia descontente na espera pacífica da lenta evolução das estruturas económicas, na promessa demagógica duma nova era de fomento, de "bem-estar para todos". No plano nacional, a Regeneração inicia uma situação ambígua, ao mesmo tempo que consolida e legaliza a corrupção administrativa e empreende a sofisticação dos ideais de 1789. Perdido (ou recolhido à toca da subjectividade) o idealismo dos heróis do Mindelo, transformada a classe média em clientela de súbditos subservientes, iniciados nos clãs dos compadres, à babugem dos restos palacianos de barões com vela acesa no paço e no governo, ordenada para buzinar na charanga de bacharéis, comerciantes, agrários, industriais especuladores, financeiros e funcionários superiores da administração, fica em campo uma classe nova, activa e empreendedora: operariado. Classe que é uma ilha no meio de uma nação esmagadoramente agrária, fortemente vinculada a uma economia de sobrevivências feudais.
O partido ordeiro, onde se recrutam os intelectuais que exploram o sentimentalismo barato do segundo romantismo, substitui praticamente as formações políticas da esquerda burguesa.
(...) Aos escritores ordeiros serão oferecidas oportunidades ordeiras: excelentes empregos nas secretarias do Estado, nas cadeiras do Parlamento, nas Embaixadas, nas Academias, no topo dos Ministérios... O regime parlamentar torna-se um mero ' aparato de discursos magros de ideias ou de habilidosos jogos de palavras. Os senhores deputados, divididos em dois grandes partidos constitucionais, ignorarão comodamente os factos. Recrutados, como esclarece Teófilo Braga, entre "doutores, engenheiros, professores e bacharéis, pois são esses que melhor sabem esgrimir com os vocábulos da língua e embair a representação nacional com banalidades campanudas", contribuem para a centralização política e administrativa depondo nos punhos da autoridade a discussão e resolução dos problemas que deveriam ser tratados pelas comunidades produtoras ou no seio das autarquias municipais.
(...) A Regeneração foi a fórmula política mais eficaz para, sob o aparato o legalidade constitucional, iludir a vontade geral que a burguesia vintista procurara ingenuamente implantar representação parlamentar.
(...) Os homens que sustentaram, tanto no plano da cultura como no plano social, o constitucionalismo foram os responsáveis da versatilidade artística, da anarquia moral, da carência de convicções profundas e divagação intelectual que, no seu conjunto, caracterizam a arte e a literatura que os jovens de Coimbra irão castigar na famosa polémica do Bom Senso e Bom Gosto.
Instalara-se a pedantocracia na sociedade portuguesa. Em breve triunfa a mediocridade: os literatos da "ordem asnática" no sarcástico dizer de Garrett, disfarçam a ausência de ideias com a retórica clássica, num zelo linguístico sem função reflexiva, num jornalismo fácil, mimando grotescamente o antigo ideal iluminista, ou em efusões líricas sem energia moral nem fundamento filosófico. Coloca-se a carreira literária acima das convicções e o artista requer comendas, títulos, lugares.
Alberto Ferreira, Perspectiva do Romantismo Português.
Os Vencidos da Vida
É muito importante, para a interpretação ideológica das correntes literárias que vão suceder no segundo romantismo análise do conteúdo político e doutrinário das facções que se envolveram na guerra civil de 1847. A derrota do setembrismo explica a dissolução da mensagem progressista da pequena burguesia; que tivera os seus representantes máximos em Garrett e Herculano.
(...) A Regeneração (que chegou a iludir Herculano, Garrett e José Estêvão) dilui as energias da burguesia descontente na espera pacífica da lenta evolução das estruturas económicas, na promessa demagógica duma nova era de fomento, de "bem-estar para todos". No plano nacional, a Regeneração inicia uma situação ambígua, ao mesmo tempo que consolida e legaliza a corrupção administrativa e empreende a sofisticação dos ideais de 1789. Perdido (ou recolhido à toca da subjectividade) o idealismo dos heróis do Mindelo, transformada a classe média em clientela de súbditos subservientes, iniciados nos clãs dos compadres, à babugem dos restos palacianos de barões com vela acesa no paço e no governo, ordenada para buzinar na charanga de bacharéis, comerciantes, agrários, industriais especuladores, financeiros e funcionários superiores da administração, fica em campo uma classe nova, activa e empreendedora: operariado. Classe que é uma ilha no meio de uma nação esmagadoramente agrária, fortemente vinculada a uma economia de sobrevivências feudais.
O partido ordeiro, onde se recrutam os intelectuais que exploram o sentimentalismo barato do segundo romantismo, substitui praticamente as formações políticas da esquerda burguesa.
(...) Aos escritores ordeiros serão oferecidas oportunidades ordeiras: excelentes empregos nas secretarias do Estado, nas cadeiras do Parlamento, nas Embaixadas, nas Academias, no topo dos Ministérios... O regime parlamentar torna-se um mero ' aparato de discursos magros de ideias ou de habilidosos jogos de palavras. Os senhores deputados, divididos em dois grandes partidos constitucionais, ignorarão comodamente os factos. Recrutados, como esclarece Teófilo Braga, entre "doutores, engenheiros, professores e bacharéis, pois são esses que melhor sabem esgrimir com os vocábulos da língua e embair a representação nacional com banalidades campanudas", contribuem para a centralização política e administrativa depondo nos punhos da autoridade a discussão e resolução dos problemas que deveriam ser tratados pelas comunidades produtoras ou no seio das autarquias municipais.
(...) A Regeneração foi a fórmula política mais eficaz para, sob o aparato o legalidade constitucional, iludir a vontade geral que a burguesia vintista procurara ingenuamente implantar representação parlamentar.
(...) Os homens que sustentaram, tanto no plano da cultura como no plano social, o constitucionalismo foram os responsáveis da versatilidade artística, da anarquia moral, da carência de convicções profundas e divagação intelectual que, no seu conjunto, caracterizam a arte e a literatura que os jovens de Coimbra irão castigar na famosa polémica do Bom Senso e Bom Gosto.
Instalara-se a pedantocracia na sociedade portuguesa. Em breve triunfa a mediocridade: os literatos da "ordem asnática" no sarcástico dizer de Garrett, disfarçam a ausência de ideias com a retórica clássica, num zelo linguístico sem função reflexiva, num jornalismo fácil, mimando grotescamente o antigo ideal iluminista, ou em efusões líricas sem energia moral nem fundamento filosófico. Coloca-se a carreira literária acima das convicções e o artista requer comendas, títulos, lugares.
Alberto Ferreira, Perspectiva do Romantismo Português.
O Romance (a propósito de Os Maias)
Classificação do romance
Embora à primeira vista o pareça, não podemos considerar Os Maias propriamente aquilo que se chama um «romance de família». O «romance de família» estuda a evolução de sucessivas gerações ligadas pelos laços do sangue (Les Rougon-Macquart de Zola, Os Buddenbrook de Thomas Mann). Ora n'Os Maias a geração de Afonso e a de Pedro são abordadas muito superficialmente e só tanto quanto é preciso para justificar a razão de ser de Carlos, personagem central da obra a partir do capítulo 3º.
Parece-nos que devemos classificar Os Maias como um romance de acção, pois nele o romanesco intervém em larga escala, Eça não explorou em profundidade o realismo científico, monográfico, estudando um vício, uma paixão; preferiu inventar enredos, criar dramas, comédias até, mostrando os caracteres de modo indirecto através da acção.
Pela sua complexidade, a obra tem sido também considerada um romance polifónico ou, como dizem os franceses, um roman-fleuve. A multiplicidade de personagens e episódios convergem de todos os lados a agrupar-se num conjunto orgânico: o ambiente da Lisboa romântica da segunda metade do século XIX, onde os Maias, educados ou à portuguesa ou à inglesa, acabam por falhar, como que arrastados por uma fatalidade contra a qual não têm coragem de reagir.
Será a obra Os Maias um romance naturalista, realista mesmo no sentido rigoroso do termo?
É inegável que o realismo está ali bem patente sobretudo no envolvimento social das personagens, desde a educação que receberam até ao condicionamento criado à sua volta pelo putrefacto meio lisboeta que as sufoca. Mas o rigor científico de análise próprio do Naturalismo está ausente. De pequena projecção, sob o aspecto naturalista, são: uma ou outra alusão à hereditariedade (no cap. 1º, Afonso preocupado com o comportamento anormal de Pedro principalmente por ver que se parece com um avô materno, de quem havia um retrato em Benfica, que enlouquecera «e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira»; no mesmo capítulo, a insistência na má raça dos progenitores de Maria Monforte); o apontamento da inclinação inata do pequeno Carlos para a medicina (no cap. 4º, diz-se que o menino descobrira no sótão um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas, que passara dias a recortá-las, «pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil com o recheio à mostra»);o elogio da escola naturalista feito expressamente pelo narrador no capítulo 6º e por Ega no capítulo 12º.
O que dissemos no início do parágrafo anterior tem uma explicação. Quando Eça redigia Os Maias, já muita gente contestava o Positivismo, o Determinismo, a confiança fanática no Cientismo. Daí o descobrirmos no romance um claro desvio das técnicas naturalistas e até umas pinceladas retintas de feição simbólica (predominantes já n'O Mandarim, livro publicado oito anos antes d'Os Maias). Tais pinceladas podem ver-se, por exemplo:
1. Dâmaso, em casa de Maria Eduarda, concitando o ódio e o mal-estar da cadelinha Niniche, que lhe ladra raivosamente, enquanto se mostra regalada nos joelhos de Carlos (cap, 11º);
2. A «horrível cabeça» de S. João Baptista, decapitado por condenar um incesto, a sangrar numa tela do quarto de dormir da Toca, «painel antigo... onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida gelada, dentro de um prato de cobre»; e ainda outro objecto que decorava o mesmo quarto: «de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor... os seus dois olhos redondos e agoirentos» (cap. 13º);
3. O ambiente que envolveu a morte do velho Afonso: «em volta, nas folhas das camélias nas áleas areadas, refulgia, cor de ouro, o sol fino de Inverno. Por entre as conchas da cascata, o fio de água punha o seu choro lento» (cap. 17º).
Do que aqui fica exposto parece poder deduzir-se que a obra Os Maias nos apresenta, consoante as voltas que lhe dermos, aspectos realistas, naturalistas e simbólicos.
António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa
Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio: a cena no jornal A Tarde; e, sobretudo, o sarau literário. Basta ler isso, e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa.
Eça de Queirós, Obras Completas, vol. XIII, Lello & Irmão – Editores, Porto, 1948.
Os Maias, romance fundamental, representa de certo modo a plenitude do período realista da ficção portuguesa, mas ao mesmo tempo ultrapassa o processo realista pela complexidade das personagens e da própria estrutura do romance. De facto, se este romance é, aparentemente, sobretudo a história de uma família da aristocracia portuguesa em decadência, crónica social, cultural e política do fim-do-século lisboeta, ele é muito para além disso a história trágica de um incesto. E um incesto que, não obstante as suas aparências romanescas, tem raízes mais fundas na obscura, desesperada procura do ideal feminino por parte de um diletante do pensamento e do sentimento, Carlos da Maia. Paralelamente, Os Maias é sem dúvida o romance de toda uma geração, a Geração de 70 tornada a geração dos Vencidos da Vida.
Boletim Informativo da Fundação Calouste Gulbenkian, nº2, série V, 1979.
Embora à primeira vista o pareça, não podemos considerar Os Maias propriamente aquilo que se chama um «romance de família». O «romance de família» estuda a evolução de sucessivas gerações ligadas pelos laços do sangue (Les Rougon-Macquart de Zola, Os Buddenbrook de Thomas Mann). Ora n'Os Maias a geração de Afonso e a de Pedro são abordadas muito superficialmente e só tanto quanto é preciso para justificar a razão de ser de Carlos, personagem central da obra a partir do capítulo 3º.
Parece-nos que devemos classificar Os Maias como um romance de acção, pois nele o romanesco intervém em larga escala, Eça não explorou em profundidade o realismo científico, monográfico, estudando um vício, uma paixão; preferiu inventar enredos, criar dramas, comédias até, mostrando os caracteres de modo indirecto através da acção.
Pela sua complexidade, a obra tem sido também considerada um romance polifónico ou, como dizem os franceses, um roman-fleuve. A multiplicidade de personagens e episódios convergem de todos os lados a agrupar-se num conjunto orgânico: o ambiente da Lisboa romântica da segunda metade do século XIX, onde os Maias, educados ou à portuguesa ou à inglesa, acabam por falhar, como que arrastados por uma fatalidade contra a qual não têm coragem de reagir.
Será a obra Os Maias um romance naturalista, realista mesmo no sentido rigoroso do termo?
É inegável que o realismo está ali bem patente sobretudo no envolvimento social das personagens, desde a educação que receberam até ao condicionamento criado à sua volta pelo putrefacto meio lisboeta que as sufoca. Mas o rigor científico de análise próprio do Naturalismo está ausente. De pequena projecção, sob o aspecto naturalista, são: uma ou outra alusão à hereditariedade (no cap. 1º, Afonso preocupado com o comportamento anormal de Pedro principalmente por ver que se parece com um avô materno, de quem havia um retrato em Benfica, que enlouquecera «e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira»; no mesmo capítulo, a insistência na má raça dos progenitores de Maria Monforte); o apontamento da inclinação inata do pequeno Carlos para a medicina (no cap. 4º, diz-se que o menino descobrira no sótão um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas, que passara dias a recortá-las, «pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil com o recheio à mostra»);o elogio da escola naturalista feito expressamente pelo narrador no capítulo 6º e por Ega no capítulo 12º.
O que dissemos no início do parágrafo anterior tem uma explicação. Quando Eça redigia Os Maias, já muita gente contestava o Positivismo, o Determinismo, a confiança fanática no Cientismo. Daí o descobrirmos no romance um claro desvio das técnicas naturalistas e até umas pinceladas retintas de feição simbólica (predominantes já n'O Mandarim, livro publicado oito anos antes d'Os Maias). Tais pinceladas podem ver-se, por exemplo:
1. Dâmaso, em casa de Maria Eduarda, concitando o ódio e o mal-estar da cadelinha Niniche, que lhe ladra raivosamente, enquanto se mostra regalada nos joelhos de Carlos (cap, 11º);
2. A «horrível cabeça» de S. João Baptista, decapitado por condenar um incesto, a sangrar numa tela do quarto de dormir da Toca, «painel antigo... onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida gelada, dentro de um prato de cobre»; e ainda outro objecto que decorava o mesmo quarto: «de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor... os seus dois olhos redondos e agoirentos» (cap. 13º);
3. O ambiente que envolveu a morte do velho Afonso: «em volta, nas folhas das camélias nas áleas areadas, refulgia, cor de ouro, o sol fino de Inverno. Por entre as conchas da cascata, o fio de água punha o seu choro lento» (cap. 17º).
Do que aqui fica exposto parece poder deduzir-se que a obra Os Maias nos apresenta, consoante as voltas que lhe dermos, aspectos realistas, naturalistas e simbólicos.
António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa
Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio: a cena no jornal A Tarde; e, sobretudo, o sarau literário. Basta ler isso, e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa.
Eça de Queirós, Obras Completas, vol. XIII, Lello & Irmão – Editores, Porto, 1948.
Os Maias, romance fundamental, representa de certo modo a plenitude do período realista da ficção portuguesa, mas ao mesmo tempo ultrapassa o processo realista pela complexidade das personagens e da própria estrutura do romance. De facto, se este romance é, aparentemente, sobretudo a história de uma família da aristocracia portuguesa em decadência, crónica social, cultural e política do fim-do-século lisboeta, ele é muito para além disso a história trágica de um incesto. E um incesto que, não obstante as suas aparências romanescas, tem raízes mais fundas na obscura, desesperada procura do ideal feminino por parte de um diletante do pensamento e do sentimento, Carlos da Maia. Paralelamente, Os Maias é sem dúvida o romance de toda uma geração, a Geração de 70 tornada a geração dos Vencidos da Vida.
Boletim Informativo da Fundação Calouste Gulbenkian, nº2, série V, 1979.
Conferências do Casino
Realismo (1865-1890)
Nos anos seguintes a 1860, desencadeia-se uma profunda reviravolta na vida mental Portuguesa: o Romantismo, exausto, agonizante como estilo de vida e de arte, começa a sofrer os primeiros ataques por parte da nova geração que surge. Mais uma vez é Coimbra que serve de trincheira para os revolucionários, com a diferença de que o grito rebelde parte agora da massa estudantil, alvoroçada pelas ideias vanguardeiras dum Proudhon, dum Quinet, dum Taine, dum Renan...
Em 1861, Antero de Quental funda a Sociedade do Raio, uma associação secreta que congrega cerca de duzentos estudantes das várias faculdades de Coimbra, com o objectivo de instaurar a aventura do espírito no seio do convencionalismo académico. Em Outubro do ano seguinte, escolhido para saudar o Príncipe Humberto da Itália, Antero exalta a Itália livre e Garibaldi, então ferido em combate, num significativo gesto de audácia e rebeldia. A Sociedade do Raio ainda vai agir no ano seguinte, raptando o Reitor Basílio Alberto e obrigando-o a demitir-se. Empolgados pelas novas ideias revolucionárias, em 1864 Teófilo Braga publica dois volumes de versos, a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras, e em 1865, Antero edita as Odes Modernas: era a gota que faltava. Nesse ínterim, Pinheiro Chagas escreve o Poema da Mocidade e procura o amparo de Castilho, seu mestre nas Letras. Cheio de entusiasmo, o poeta das Cartas de Eco e Narciso remete uma longa carta ao editor da obra, a qual foi acrescentada em forma de posfácio na edição que dela se fez em 1865. Na missiva, ao mesmo tempo que se refere calorosamente ao fiel discípulo, dirige-se com desagrado aos moços de Coimbra, em especial Antero e Teófilo, aos quais acrescenta Vieira de Castro, afirmando que "muito há que me eu pergunto a mim donde proviria esta enfermidade que hoje grassa por tantos espíritos, de que até alguns dos mais robustos adoecem, que faz com que a literatura, e em particular a poesia, anda marasmada, com fastio de morte à verdade e à simplicidade, com o olhar desvairado e visionário, com os passos incertos, com as cores da saúde trocadas em carmins postiços", etc. Mais adiante, diz: "Lembra-me que uma das causas a que o mal se poderá atribuir será a falta de convivência mútua destes pobres mancebos, que, tendo sido pela natureza predestinados, se fazem precitos; que, talhados para resplandecerem no panteão daqueles génios, que os séculos ficam adorando, se condenam às Trevas próximas do limbo", etc. Dirigindo-se à poesia do tempo, Castilho pondera: "Se a afectação e a enfactuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar de coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear Havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas, ou o grau da doença dos escritores, constitui em resumo a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando", etc. E mais adiante: "Quem não vê que Veie tornando a contagiosa escola dos conceitos, das subtilezas, das unidades discretas, dos alambicamentos metafísicos, das bátegas de flores, de pérolas, de diamantes, das mariposas, das estrelas, das asas de anjos; a anarquia, o turbilhão enfim de todas quantas imagens mudas e miúdas há, e pode, e não pode haver, para usurparem o lugar devido aos pensamentos e aos afectos; a mascarada das figuras em suma, as saturnais da fantasia, a soltura das florais?" A insinuação vai por aí fora, até que o missivista passa a tratar directamente dos três moços de Coimbra, e por fim resume seu pensamento: "Deixando de parte, por agora, Braga e Quental, de que, pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal", etc.
Antero, líder do grupo a que Castilho se refere acremente, de pronto revida as alusões que lhe são dirigidas, num opúsculo que recebeu o nome de Bom-Senso e Bom Gosto, saído no mesmo ano de 1865. Falando em "escola de Coimbra", e à luz da boa fé, afirma: "eu hei de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Ex.a, dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incómodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de V. Ex a."
Assim, com a violência entusiasmada dos vinte e cinco anos, Antero faz a súmula do pensamento que orienta a sua geração: "combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde, às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual." O desagravo termina irreverentemente: "Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta anos de reflexão."
Estava armada a polémica, que passou a chamar-se pelo título do folheto anteriano, ou ainda pela de Questão Coimbrã. Em defesa do pai, sai a campo Júlio de Castilho, a que se seguem Teófilo Braga, com um folheto intitulado As Teocracias Literárias, e Antero, com A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais. Formam-se dois partidos, um, pró-Castilho e outro, pró-Antero, que vão engrossando durante os anos de 1865 e 1866, inclusive estendendo-se até o Brasil, com a adesão de D. Pedro II e Sílvio Romero. O número de opúsculos ascende a algumas dezenas entre as duas facções, integradas ainda por escritores como: Camilo, com o folheto Vaidades Irritadas e Irritantes, a favor da causa romântica, mas a pedido de Castilho; Ramalho Ortigão, com Literatura de Hoje, contra Antero, o que obriga este a desafiá-lo em duelo e com ele se bater em Fevereiro de 1866; Augusto Malheiro Dias, Amaro Mendes Gaveta, pseudónimo de Cunha Belém, Urbano Loureiro, Diogo Bernardes, Brito Aranha, Rui de Porto-Carrero, E. A. Salgado, Carlos Borges, Eduardo Augusto Vidal e tantos outros.
Com a Questão Coimbrã, estava definida a crise de cultura que inicia o Realismo em Portugal. A vitória, como era de esperar, sorri aos moços, mas vai ser preciso que voltem à carga mais adiante a fim de consolidar suas posições. É que a derrota de Castilho significava apenas o golpe de morte no Romantismo: nem era necessário tanto ruído para abater as modas envelhecidas; bastava aguardar os anos, mas é condição da juventude de sempre o gosto de por abaixo estrepitosamente os velhos ídolos e bonzos. Não obstante, Castilho continua pelos anos fora a exercer influência; mais ou menos clandestina, ou indirecta, como se pode observar na poesia de um Eugénio de Castro e de vários poetas do século XX.
Formados em Coimbra, os participantes da revolta anti-castilhista e anti-romântica, disper-sam-se e só tornam a reunir-se em Lisboa, em 1868, no grupo do Cenáculo. Em casa de Jai-me Batalha Reis (1847-1935), realizam encontros periódicos: Eça de Queirós, Antero, Olivei-ra Martins, Ramalho Ortigão, Salomão Sáraga, Santos Valente, Mariano Machado de Faria e Maia, José Eduardo Lobo da Costa, e outros que aparecem menos. Congrega-os uma "escan-dalosa fornalha de Revolução, de Metafísica, de Satanismo, de Anarquia, de Boémia feroz", como lembra Eça de Queirós no retrato que pintou de Antero numa página de rara beleza, intitulada Um génio que era um santo. Em 1871, os rapazes do Cenáçulo resolvem organizar uma série de conferências públicas com o fito de por em discussão franca os problemas e as questões de ordem ideológica que então interessavam a gente culta da Europa e da América do Norte. Para tanto, alugam o Casino Lisbonense, uma espécie de café-concerto onde se reúne a boémia áurea do tempo, para ver o can-can e ouvir cançonetas picantes. Situado a dois passos do Chiado, artéria elegante de Lisboa, era o lugar ideal para levar a efeito o cometimento.
Depois de anunciadas enfaticamente, sobretudo pelo jornal A Revolução de Setembro, a 16 de Maio de 1871 distribui-se o programa-plataforma das conferências, intituladas Conferências Democráticas Estabelecidas na Sala do Casino, Largo da Abegoaria. Mais tarde, passaram a chamar-se apenas de Conferências do Casino Lisbonense.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Casino Lisbonense
O Cenáculo e as Conferências Democráticas
O pequeno grupo coimbrão, de que faziam parte, além de Antero e Teófilo, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga, futuro presidente da República, Eça de Queirós e outros ainda, veio a encontrar-se de novo em Lisboa, restaurando a antiga fraternidade académica num Cenáculo com sede em casa de um deles. A estes agregaram-se novos elementos. A partir de 1871, Antero de Quental, regressando de viagens a França, América e à ilha de S. Miguel, tornara-se o mentor do grupo, a que se foram juntando, entre outros, Jaime Batalha Reis, futuro professor de Agronomia; Oliveira Martins, um autodidacta, então empregado comercial; Ramalho Ortigão, influenciado pela convivência com o seu ex-aluno Eça de Queirós; Adolfo Coelho, iniciador dos estudos de linguística em Portugal; Augusto Soromenho (ou Seromenho), professor no Curso Superior de Letras; Guilherme de Azevedo; Guerra Junqueiro.
Das discussões no Cenáculo, em que se aliavam a literatura e a boémia, tinham saído de começo obras de pura ficção, como as últimas Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e os "satânicos" Poemas de Macadam atribuídos a um imaginário Carlos Fradique Mendes; a chegada de Antero vem disciplinar as leituras e os interesses e dar um objectivo mais preciso ao grupo. O autor à volta do qual cristaliza a doutrina até então flutuante dos seus componentes é P. J. Proudhon (1809-1865) cuja influência na chamada Geração de 70 se intensifica nesta época. Foi neste círculo que nasceu a iniciativa das Conferências Democráticas no Casino Lisbonense .
O projecto das Conferências integra-se num largo, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa. O programa impresso para anunciar e evidenciar a sua realização, sublinhando que "não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo", resume as intenções capitais das conferências nestes ambiciosos termos:
"Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa."
Para compreender todo o alcance das Conferências, convém notar que se estava então num ano de grandes acontecimentos - 1871, remate da unificação de Itália, queda do II Império francês, guerra franco-prussiana, Comuna de Paris, que dois membros do Cenáculo (Antero e Guilherme de Azevedo) aplaudiram publicamente. No plano interno é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se estende a Portugal, com a cooperação de Antero. O principal promotor em Portugal desta organização, um empregado da Livraria Bertrand, José Fontana, tem contactos com o Cenáculo, e participa, como organizador administrativo, nas Conferências.
É fácil, desta maneira, compreender a importância que lhe dedicaram as autoridades; o seu encerramento foi imposto pelo ministro do Reino, António José de Ávila, após os ataques de jornais conservadores, que acusavam os conferencistas de intenções subversivas e de serem adeptos da Comuna. A motivação próxima da ordem de encerramento parece ter sido a de impedir a realização de uma conferência que ia pôr em causa a religião católica, constitucionalmente ligada ao Estado.
Das conferências produzidas, salientaram-se as de Antero, Eça de Queirós e Adolfo Coelho.
Antero, além da conferência inaugural, desenvolveu o tema das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, que eram, segundo ele, três: a reacção religiosa consumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais; um sistema económico de rapina guerreira que, atalhando o desenvolvimento da pequena burguesia, detivera, na Península, a evolução económica de parte da Europa. Antero limitava-se a sistematizar pontos de vista que tinham já sido sustentados em diversas ocasiões por Alexandre Herculano; a sua conferência causou profunda impressão, foi editada em folheto e suscitaria ainda em 1879 uma reflexão correctiva de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica .
Sob o título A Nova Literatura, Eça de Queirós versou o tema O Realismo como nova expressão da Arte:combinando sugestões de Taine e de Proudhon, defendeu uma teoria da arte que a considera condicionada por factores diversos, uns permanentes (o meio, o momento e a raça), outros acidentais ou históricos (ideais directores de cada sociedade); apontou-lhe uma missão social e moralizadora; criticou a literatura romântica por fugir à sua época; e indicou como missão histórica da nova literatura criticar a velha sociedade, abrindo caminho à Revolução - missão proposta à nova escola "realista", que Eça exemplificou na pintura com Courbet (que aliás não conhecia de modo directo) e na literatura com a Madame Bovary, de Flaubert. Eça não publicou o seu texto, que se reconstitui pelas notícias jornalísticas e seus posteriores comentários.
Adolfo Coelho, que viria a ser mais tarde o fundador da linguística em Portugal (Noções Elementares de Língua Portuguesa, 1880), segue na esteira hegeliana-proudhoniana, ao afirmar que na história "vê-se o espírito apropriar-se incessantemente da consciência de si, isto é, da sua natureza, da sua independência, do seu destino". Propõe a organização de um ensino totalmente científico, baseado na separação da Igreja e do Estado, e defende o desenvolvimento pedagógico das ciências sociais, históricas e filosóficas. Fez também uma cerrada crítica às instituições pedagógicas portuguesas, o que provocou violenta reacção, sobretudo universitária.
Houve ainda uma conferência de Augusto Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, sobre A Moderna Literatura, que aliás saía fora do pensamento do Cenáculo, pois se empenhava em exaltar o Romantismo à Chateaubriand, e estavam outras preparadas: sobre Os historiadores críticos de Jesus (Salomão Sáragga); O Socialismo (Batalha Reis); A República (Antero de Quental); A Instrução Primária (Adolfo Coelho); Dedução positiva da Ideia Democrática (Augusto Fuschini). Entre outros conferencistas convidados, contavam-se Teófilo Braga e Oliveira Martins. O encerramento deu-se no dia em que ia realizar-se a conferência sobre Os historiadores críticos de Jesus, onde o autor se propunha tratar dos trabalhos de Renan, com quem colaborara como perito, que era, de estudos hebraicos. Salomão Sáragga dirigirá a importante revista Os Dois Mundos, em português (Paris, 1877-81).
O encerramento provocou protestos de alguns jornais e de dois deputados no Parlamento. Herculano associou-se nos termos que já indicámos.
História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.
Nos anos seguintes a 1860, desencadeia-se uma profunda reviravolta na vida mental Portuguesa: o Romantismo, exausto, agonizante como estilo de vida e de arte, começa a sofrer os primeiros ataques por parte da nova geração que surge. Mais uma vez é Coimbra que serve de trincheira para os revolucionários, com a diferença de que o grito rebelde parte agora da massa estudantil, alvoroçada pelas ideias vanguardeiras dum Proudhon, dum Quinet, dum Taine, dum Renan...
Em 1861, Antero de Quental funda a Sociedade do Raio, uma associação secreta que congrega cerca de duzentos estudantes das várias faculdades de Coimbra, com o objectivo de instaurar a aventura do espírito no seio do convencionalismo académico. Em Outubro do ano seguinte, escolhido para saudar o Príncipe Humberto da Itália, Antero exalta a Itália livre e Garibaldi, então ferido em combate, num significativo gesto de audácia e rebeldia. A Sociedade do Raio ainda vai agir no ano seguinte, raptando o Reitor Basílio Alberto e obrigando-o a demitir-se. Empolgados pelas novas ideias revolucionárias, em 1864 Teófilo Braga publica dois volumes de versos, a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras, e em 1865, Antero edita as Odes Modernas: era a gota que faltava. Nesse ínterim, Pinheiro Chagas escreve o Poema da Mocidade e procura o amparo de Castilho, seu mestre nas Letras. Cheio de entusiasmo, o poeta das Cartas de Eco e Narciso remete uma longa carta ao editor da obra, a qual foi acrescentada em forma de posfácio na edição que dela se fez em 1865. Na missiva, ao mesmo tempo que se refere calorosamente ao fiel discípulo, dirige-se com desagrado aos moços de Coimbra, em especial Antero e Teófilo, aos quais acrescenta Vieira de Castro, afirmando que "muito há que me eu pergunto a mim donde proviria esta enfermidade que hoje grassa por tantos espíritos, de que até alguns dos mais robustos adoecem, que faz com que a literatura, e em particular a poesia, anda marasmada, com fastio de morte à verdade e à simplicidade, com o olhar desvairado e visionário, com os passos incertos, com as cores da saúde trocadas em carmins postiços", etc. Mais adiante, diz: "Lembra-me que uma das causas a que o mal se poderá atribuir será a falta de convivência mútua destes pobres mancebos, que, tendo sido pela natureza predestinados, se fazem precitos; que, talhados para resplandecerem no panteão daqueles génios, que os séculos ficam adorando, se condenam às Trevas próximas do limbo", etc. Dirigindo-se à poesia do tempo, Castilho pondera: "Se a afectação e a enfactuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar de coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear Havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas, ou o grau da doença dos escritores, constitui em resumo a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando", etc. E mais adiante: "Quem não vê que Veie tornando a contagiosa escola dos conceitos, das subtilezas, das unidades discretas, dos alambicamentos metafísicos, das bátegas de flores, de pérolas, de diamantes, das mariposas, das estrelas, das asas de anjos; a anarquia, o turbilhão enfim de todas quantas imagens mudas e miúdas há, e pode, e não pode haver, para usurparem o lugar devido aos pensamentos e aos afectos; a mascarada das figuras em suma, as saturnais da fantasia, a soltura das florais?" A insinuação vai por aí fora, até que o missivista passa a tratar directamente dos três moços de Coimbra, e por fim resume seu pensamento: "Deixando de parte, por agora, Braga e Quental, de que, pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal", etc.
Antero, líder do grupo a que Castilho se refere acremente, de pronto revida as alusões que lhe são dirigidas, num opúsculo que recebeu o nome de Bom-Senso e Bom Gosto, saído no mesmo ano de 1865. Falando em "escola de Coimbra", e à luz da boa fé, afirma: "eu hei de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Ex.a, dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incómodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de V. Ex a."
Assim, com a violência entusiasmada dos vinte e cinco anos, Antero faz a súmula do pensamento que orienta a sua geração: "combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde, às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual." O desagravo termina irreverentemente: "Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta anos de reflexão."
Estava armada a polémica, que passou a chamar-se pelo título do folheto anteriano, ou ainda pela de Questão Coimbrã. Em defesa do pai, sai a campo Júlio de Castilho, a que se seguem Teófilo Braga, com um folheto intitulado As Teocracias Literárias, e Antero, com A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais. Formam-se dois partidos, um, pró-Castilho e outro, pró-Antero, que vão engrossando durante os anos de 1865 e 1866, inclusive estendendo-se até o Brasil, com a adesão de D. Pedro II e Sílvio Romero. O número de opúsculos ascende a algumas dezenas entre as duas facções, integradas ainda por escritores como: Camilo, com o folheto Vaidades Irritadas e Irritantes, a favor da causa romântica, mas a pedido de Castilho; Ramalho Ortigão, com Literatura de Hoje, contra Antero, o que obriga este a desafiá-lo em duelo e com ele se bater em Fevereiro de 1866; Augusto Malheiro Dias, Amaro Mendes Gaveta, pseudónimo de Cunha Belém, Urbano Loureiro, Diogo Bernardes, Brito Aranha, Rui de Porto-Carrero, E. A. Salgado, Carlos Borges, Eduardo Augusto Vidal e tantos outros.
Com a Questão Coimbrã, estava definida a crise de cultura que inicia o Realismo em Portugal. A vitória, como era de esperar, sorri aos moços, mas vai ser preciso que voltem à carga mais adiante a fim de consolidar suas posições. É que a derrota de Castilho significava apenas o golpe de morte no Romantismo: nem era necessário tanto ruído para abater as modas envelhecidas; bastava aguardar os anos, mas é condição da juventude de sempre o gosto de por abaixo estrepitosamente os velhos ídolos e bonzos. Não obstante, Castilho continua pelos anos fora a exercer influência; mais ou menos clandestina, ou indirecta, como se pode observar na poesia de um Eugénio de Castro e de vários poetas do século XX.
Formados em Coimbra, os participantes da revolta anti-castilhista e anti-romântica, disper-sam-se e só tornam a reunir-se em Lisboa, em 1868, no grupo do Cenáculo. Em casa de Jai-me Batalha Reis (1847-1935), realizam encontros periódicos: Eça de Queirós, Antero, Olivei-ra Martins, Ramalho Ortigão, Salomão Sáraga, Santos Valente, Mariano Machado de Faria e Maia, José Eduardo Lobo da Costa, e outros que aparecem menos. Congrega-os uma "escan-dalosa fornalha de Revolução, de Metafísica, de Satanismo, de Anarquia, de Boémia feroz", como lembra Eça de Queirós no retrato que pintou de Antero numa página de rara beleza, intitulada Um génio que era um santo. Em 1871, os rapazes do Cenáçulo resolvem organizar uma série de conferências públicas com o fito de por em discussão franca os problemas e as questões de ordem ideológica que então interessavam a gente culta da Europa e da América do Norte. Para tanto, alugam o Casino Lisbonense, uma espécie de café-concerto onde se reúne a boémia áurea do tempo, para ver o can-can e ouvir cançonetas picantes. Situado a dois passos do Chiado, artéria elegante de Lisboa, era o lugar ideal para levar a efeito o cometimento.
Depois de anunciadas enfaticamente, sobretudo pelo jornal A Revolução de Setembro, a 16 de Maio de 1871 distribui-se o programa-plataforma das conferências, intituladas Conferências Democráticas Estabelecidas na Sala do Casino, Largo da Abegoaria. Mais tarde, passaram a chamar-se apenas de Conferências do Casino Lisbonense.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Casino Lisbonense
O Cenáculo e as Conferências Democráticas
O pequeno grupo coimbrão, de que faziam parte, além de Antero e Teófilo, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga, futuro presidente da República, Eça de Queirós e outros ainda, veio a encontrar-se de novo em Lisboa, restaurando a antiga fraternidade académica num Cenáculo com sede em casa de um deles. A estes agregaram-se novos elementos. A partir de 1871, Antero de Quental, regressando de viagens a França, América e à ilha de S. Miguel, tornara-se o mentor do grupo, a que se foram juntando, entre outros, Jaime Batalha Reis, futuro professor de Agronomia; Oliveira Martins, um autodidacta, então empregado comercial; Ramalho Ortigão, influenciado pela convivência com o seu ex-aluno Eça de Queirós; Adolfo Coelho, iniciador dos estudos de linguística em Portugal; Augusto Soromenho (ou Seromenho), professor no Curso Superior de Letras; Guilherme de Azevedo; Guerra Junqueiro.
Das discussões no Cenáculo, em que se aliavam a literatura e a boémia, tinham saído de começo obras de pura ficção, como as últimas Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e os "satânicos" Poemas de Macadam atribuídos a um imaginário Carlos Fradique Mendes; a chegada de Antero vem disciplinar as leituras e os interesses e dar um objectivo mais preciso ao grupo. O autor à volta do qual cristaliza a doutrina até então flutuante dos seus componentes é P. J. Proudhon (1809-1865) cuja influência na chamada Geração de 70 se intensifica nesta época. Foi neste círculo que nasceu a iniciativa das Conferências Democráticas no Casino Lisbonense .
O projecto das Conferências integra-se num largo, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa. O programa impresso para anunciar e evidenciar a sua realização, sublinhando que "não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo", resume as intenções capitais das conferências nestes ambiciosos termos:
"Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa."
Para compreender todo o alcance das Conferências, convém notar que se estava então num ano de grandes acontecimentos - 1871, remate da unificação de Itália, queda do II Império francês, guerra franco-prussiana, Comuna de Paris, que dois membros do Cenáculo (Antero e Guilherme de Azevedo) aplaudiram publicamente. No plano interno é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se estende a Portugal, com a cooperação de Antero. O principal promotor em Portugal desta organização, um empregado da Livraria Bertrand, José Fontana, tem contactos com o Cenáculo, e participa, como organizador administrativo, nas Conferências.
É fácil, desta maneira, compreender a importância que lhe dedicaram as autoridades; o seu encerramento foi imposto pelo ministro do Reino, António José de Ávila, após os ataques de jornais conservadores, que acusavam os conferencistas de intenções subversivas e de serem adeptos da Comuna. A motivação próxima da ordem de encerramento parece ter sido a de impedir a realização de uma conferência que ia pôr em causa a religião católica, constitucionalmente ligada ao Estado.
Das conferências produzidas, salientaram-se as de Antero, Eça de Queirós e Adolfo Coelho.
Antero, além da conferência inaugural, desenvolveu o tema das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, que eram, segundo ele, três: a reacção religiosa consumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais; um sistema económico de rapina guerreira que, atalhando o desenvolvimento da pequena burguesia, detivera, na Península, a evolução económica de parte da Europa. Antero limitava-se a sistematizar pontos de vista que tinham já sido sustentados em diversas ocasiões por Alexandre Herculano; a sua conferência causou profunda impressão, foi editada em folheto e suscitaria ainda em 1879 uma reflexão correctiva de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica .
Sob o título A Nova Literatura, Eça de Queirós versou o tema O Realismo como nova expressão da Arte:combinando sugestões de Taine e de Proudhon, defendeu uma teoria da arte que a considera condicionada por factores diversos, uns permanentes (o meio, o momento e a raça), outros acidentais ou históricos (ideais directores de cada sociedade); apontou-lhe uma missão social e moralizadora; criticou a literatura romântica por fugir à sua época; e indicou como missão histórica da nova literatura criticar a velha sociedade, abrindo caminho à Revolução - missão proposta à nova escola "realista", que Eça exemplificou na pintura com Courbet (que aliás não conhecia de modo directo) e na literatura com a Madame Bovary, de Flaubert. Eça não publicou o seu texto, que se reconstitui pelas notícias jornalísticas e seus posteriores comentários.
Adolfo Coelho, que viria a ser mais tarde o fundador da linguística em Portugal (Noções Elementares de Língua Portuguesa, 1880), segue na esteira hegeliana-proudhoniana, ao afirmar que na história "vê-se o espírito apropriar-se incessantemente da consciência de si, isto é, da sua natureza, da sua independência, do seu destino". Propõe a organização de um ensino totalmente científico, baseado na separação da Igreja e do Estado, e defende o desenvolvimento pedagógico das ciências sociais, históricas e filosóficas. Fez também uma cerrada crítica às instituições pedagógicas portuguesas, o que provocou violenta reacção, sobretudo universitária.
Houve ainda uma conferência de Augusto Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, sobre A Moderna Literatura, que aliás saía fora do pensamento do Cenáculo, pois se empenhava em exaltar o Romantismo à Chateaubriand, e estavam outras preparadas: sobre Os historiadores críticos de Jesus (Salomão Sáragga); O Socialismo (Batalha Reis); A República (Antero de Quental); A Instrução Primária (Adolfo Coelho); Dedução positiva da Ideia Democrática (Augusto Fuschini). Entre outros conferencistas convidados, contavam-se Teófilo Braga e Oliveira Martins. O encerramento deu-se no dia em que ia realizar-se a conferência sobre Os historiadores críticos de Jesus, onde o autor se propunha tratar dos trabalhos de Renan, com quem colaborara como perito, que era, de estudos hebraicos. Salomão Sáragga dirigirá a importante revista Os Dois Mundos, em português (Paris, 1877-81).
O encerramento provocou protestos de alguns jornais e de dois deputados no Parlamento. Herculano associou-se nos termos que já indicámos.
História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
Almeida Garrett - Frei Luís de Sousa
I - Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa constitui um caso particular na produção de Garrett e na literatura dramática nacional. É geralmente apontado como obra-prima do teatro português romântico.
Frei Luís de Sousa, à semelhança dos anteriores dramas do autor, tem por base a História de Portugal. Não respeitando, no entanto, totalmente, a informação histórica. o autor de acusações se defenderá à partida na Memória ao Conservatório Real:
Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a «Arte de verificar as datas» na mão (...).
Entre 1835 e 1842 conhecem-se várias obras que têm como tema a vida «romanceada» de Manuel de Sousa Coutinho: Luís de Sousa, romance de Ferdinand Denis (1835), o Cativo de Fez, drama de Silva Abranches (em 1840 apreciado pelo Conservatório), um poema em verso heróico publicado numa revista do Porto por um «poeta obscuro» (1840), o «rimance em prosa» Manuel de Sousa Coutinho, por Paulo Midosi (1842).
Sabemos que Almeida Garrett conhecia, além destes textos, a biografia de Frei Luís de Sousa da responsabilidade de Frei António da Encarnação. Nem a quantidade de obras já existentes nem o conhecimento inevitável que o público teria da «história» impediram Almeida Garrett de se lançar ao trabalho e de terminar em treze dias a escrita de uma primeira versão de Frei Luís de Sousa. Parece, pois, que o interesse do autor em escrever um texto dramático com base na conhecida biografia de Manuel de Sousa Coutinho só podia justificar-se por motivos bem diferentes daqueles que o levaram antes a escrevei D. Filipa de Vilhena e O Alfageme de Santarém.
Daí a importância da Memória, texto que surge como anúncio, justificação e interpretação do Frei Luís de Sousa. As relações que existem entre ambos podem, talvez, levar-nos a compreender melhor o lugar que Frei Luís de Sousa ocupa na história do teatro.
Maria João Brilhante, apresentação crítica de Frei Luís de Sousa
II - Frei Luís de Sousa - síntese
Drama – O drama pressupões uma acção menos tensa que o da tragédia, menos concentrado numa crise, mais submetida à influência dos acontecimentos exteriores.
Tragédia – poema dramático que desenvolve uma acção séria e completa, tirado da história, entre personagens ilustres com o fim de provocar na alma dos espectadores o terror e a piedade dados através do espectáculo da paixões luares em luta entre si ou contra o destino
Elementos trágicos e dramáticos em Frei Luís de Sousa:
Trágicos:
Tema – ilegitimidade de Maria ( adultério )
Personagens – número reduzidos e nobres
Presságios – ( predestinação ) referida por parte de Maria e de Telmo em que irá acontecer uma tragédia
Coro – Frei Jorge e Telmo ( fatalismo/ Destino = Madalena ) representa o papel de uma pecadora arrependida, pois amou Manuel de Sousa Coutinho na presença de D. João de Portugal. Acredita que o destino trará uma tragédia . Qualquer acção será irremediável ( predestinação – fatalismo ).
Estrutura
Efeitos catárticos – piedade e terror
Drama:
A peça é escrita em prosa.
Espaço:
O espaço vai-se reduzindo.
África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio
Tempo:
O tempo vai-se reduzindo também, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.
1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece M. de Sousa.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João
1585 e 1599 – Madalena casa com M. de Sousa.
1598 a 1599 ( 1 ano ) – D. João é libertado dirige-se para Portugal
28 de julho a 4 de Agosto ( 8 dias ) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.
Agosto (3 dias ) – D. João apressa-se para chegar
4 de Agosto ( hoje ) – é um dia fatal para Madalena
Divisão da peça :
3 actos escritos em prosa:
1 acto - Do início até ao incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho.
2 acto – Até à chegada do Romeiro
3 acto – Até à morte de Maria
Personagens:
Manuel de Sousa Coutinho – Segundo marido de madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar ( ideia inconfessada ); que a saúde débil de sua filha progrida para uma doença grave ; decidido, patriota ( incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; sofre, sente remorsos ao pensar na cruel situação em que ficara a sua querida Maria; Amor paternal.
D . João de Portugal – Casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; austero; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente ( quando pensa, por momentos, que Madalena o ama ).
Dona Madalena – suporte viuva de D. João de Portugal; casa com Manuel de S. Coutinho; nasce Maria, filha de Manuel; Angustia em relação à situação insegura do seu casamento; remorso por ter gostado de Manuel de S. enquanto era ainda casada com D . João; Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; Insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher p/ lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão.
Maria de Noronha – Filha de D. Madalena e D. João; amor filial, curiosidade; sonho, fantasia, idealismo, filha fatal, adolescente fantasista, sebastianista por influência de Telmo, adivinhava " lia nos olhos e nas estrelas " ; sempre febril, cresceu de repente, criança precoce; gosto pela aventura, frágil, alta, magra, faces rosadas, patriota, intuitiva, inteligente.
Telmo Pais – escudeiro de família dos condes vimioso, sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua " menina " ; sofre porque é forçado a ver o seu velho amo como um intruso que nunca deveria ter vindo. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.
A crença do sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. Logo no início, Madalena afirma a Telmo "..mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade ! "
No sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzira a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será última no plano de salvação dos Homens.
Cena I à IV – localização das personagens no tempo
Acto 1 Cena V à VIII – preparação da acção para o que se ai passar a seguir
Cena IX à XII – o Incêndio
A obra de Frei Luís de Sousa é ambas tragédia e drama, é tragédia pelo conteúdo do texto e é drama pela forma.
Cena 1 – solução adoptada
Acto 3 até à 10º cena temos a preparação do desenlace.
Cena 11 até à 12º temos o desenlace com morte de Maria em palco
Acto 3:
Cena 1 – Manuel debate-se com um dilema enorme, a doença de filha, a ilegitimidade.
Maria ficava ilegítima cheia de infâmia tal e qual como Garret.
Sempre que alguém pergunta a D. João quem ele é, ele responde espontaneamente"ninguém", este ninguém significa que D. João de Portugal já não tinha Pátria, não tinha família, não tinha lugar na sociedade, não tinha o seu palácio, pois perdeu-o .
III - A tragédia clássica:
A todo o sistema de forças, que comprime e pesa sobre a liberdade individual, o cidadão, o homem opõe o seu vivo protesto e lança um desafio ( hybris ).
À hybris responde a vingança, a punição, o ressentimento, uma espécie de ciúme ferido pela corajosa atitude assumida pelo homem – a nemesis divina.
O coro actua como um trovão ao ímpeto libertário do indivíduo aconselhado a moderação, o comedimento, a serena contenção, e traduz as ideias e os sentimentos da média humana. Os acontecimentos desenrolam-se segundo as cotas das personagens e os logros do destino, de necessidade do fatum; encadeiam-se uns nos outro se, por vezes, precipitam a acção no seu curso através de peripécias ( acontecimentos ), que acabam por voltar o rumo do drama em sentido inesperado ( catástrofe ). Esta mudança brusca é muitas vezes levada a cabo por um reconhecimento ( agnórise ) de laços parentescos até então insuspeitos.
As consequências patéticas, avolumam-se num crescendo inquietante ( climax ), até se resolver numa reviravolta brusca e brutal dos acontecimentos – a catástrofe.
Espectador e acção dramática:
O agenciamento da acção dramática da tragédia visava a exibição das consequências ( pathos ) do descomedimento humano de modo a sugerir no espectador o temor religioso ou sua simpatia.
Sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. No sebastianismo, como ele é representado no frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzirá a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano de salvação dos Homens.
IV - Classificação de Frei Luís de Sousa
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não é em verso, mas em prosa; não tem cinco actos; não respeita as unidades de tempo e de lugar; não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade, o número de personagens é diminuto;
Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);
contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
a crença no sebastianismo;
a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como o uso da prosa; a divisão em três actos; o estilo todo, do princípio ao fim, teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.»
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II
V - Esta é uma verdadeira tragédia
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa
VI - Definição de Tragédia
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética
VII - Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do conteúdo e características literárias do drama.
I – ARGUMENTO (macroanálise):
No primeiro e segundo actos trata-se de preparar o aparecimento de D João de Portugal; no terceiro, de resolver a situação difícil, que nasceu da sua chegada catastrófica. A progressão da intriga há-de fazer, dentro da verosimilhança e dramatismo psicológicos, aproximar o ausente que se teme como uma tremenda fatalidade, e conduzir os dois esposos ao convento, solução da sua desdita.
1º acto:
a) Conflito de D. Madalena e Telmo, que mostra os antecedentes do drama familiar e os caracteres de três personagens: um escudeiro velho, sebastianista de temperamento e por afeição ao primeiro amo, irrita D. Madalena, senhora nervosa, apreensiva, dominada pela ideia do que teme – começa a desenhar-se ao longe a sombra do ausente – repreende a Telmo porque impressiona demasiadamente, com suas 'histórias, o espírito precoce de Maria.
b) Notar um pequeno episódio que alivia a acção, concorrendo para ela: D. Madalena vai à janela indagar do bergantim que devia trazer o marido cuja ausência a preocupava; lufadas de maresia.
c) Apresentação do carácter de Maria, espírito vivíssimo, precoce, em corpo franzino. Hipersensibilidade nervosa, febricitante, mm sonhos e palpites, criança de olhos ardentes que tudo adivinham, que é por D. Sebastião e pelo Bandarra. Para logo se presume que a alma há-de consumir-lhe o corpo.
d) O episódio final do incêndio: revela o carácter íntegro de Manuel de Sousa, calmo nas grandes decisões, com a energia das pessoas bondosas e nobres; não compreende os vãos escrúpulos e temores de D. Madalena em ir habitar para o palácio do primeiro marido.
– Prepara naturalmente, a mudança de habitação para casa de D. João de Portugal. Ao mesmo tempo toma mais presente a sombra do primeiro marido e aproxima os esposos do convento em que hão-de professar.
Notar o empenho simbólico de D. Madalena em salvar das chamas o retrato do segundo marido.
2º acto.
a) Ligação da mudança dos palácios com a acção. O incêndio do retrato enche de agoiros D. Madalena. Um retrato de D. João de Portugal excita a curiosidade de Maria, para quem o incêndio fora um espectáculo sublime. Manuel de Sousa explica-lhe, magnanimamente, de quem era o retrato. Aproxima-se mais o ausente.
b) Afastamento de Manuel de Sousa e de Maria, para dar lugar ao Romeiro. Natural, pedido no pai, pelas consequências políticas do incêndio; e na filha, pela necessidade de acalmar-lhe a excitação. Vão visitar uma tia que, de comum acordo com o marido, professara, como ele, num convento. Sugestão do desfecho.
c) Aparecimento do Romeiro, em sua própria casa, e diante do próprio retrato. Naturalíssimo e como que pedido pela fatalidade das circunstâncias, e até por perguntas inconscientes de D. Madalena e Frei Jorge. Aquela, que antes era toda agoiros quando o perigo é real, então, é que se não dá conta dele. A revelação da desgraça não é total para ela, afim de se deixar uma possibilidade de entrecho no 3º acto, e por economia dramática do sentimento. D. Madalena não podia nem precisaria de ouvir mais.
3º acto:
a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste mm o movimento passional do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da solução a adoptar.
6 ) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. último adeus dos esposos, precedido do engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.
c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro, morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama romântico, no desencontro ,da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas seria mais sóbria noutras circunstâncias.
II – ANáLISE LITERáRIA (microanálise):
1. Drama...
a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes, e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.
b ) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.
c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma «anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a «catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.
2....romântico...
a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso, Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios. O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.
b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento.
Tema também do amor irremediável (a seguir virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução. Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.
c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a Joaninha das Viagens na Mina Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas, carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.
3....de Garrett
a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.
b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que Gartett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D. João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante, foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou sentido e acalmia.
c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa Assim, o Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real, como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por interposta pessoa.
E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo, ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para mais, golfando sangue sobre o peito do pai.
João Mendes, Literatura Portuguesa III,
Lisboa, Ed. Verbo, 1979, pp. 40-47.
VIII - Frei Luís de Sousa
O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).
A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)
Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:
O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.
Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.
IX - Frei Luís de Sousa
O relevo de que Garrett entre nós desfruta, como figura dominante do Romantismo, liga-se indissociavelmente à actividade política do autor; é o seu empenhamento na Revolução de Setembro que o leva a aprofundar a vocação dramática, não só como responsável pelas reformas então empreendidas, mas também como dramaturgo. Obras como Um Auto de Gil Vicente, D. Filipa de Vilhena, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa constituem não só o contributo garrettiano para a reforma do teatro português, mas também, por certo, dos poucos exemplos qualitativamente válidos que nos ficaram, como resultado desse impulso reformador-
O Frei Luís de Sousa ocupa aqui um lugar especial. Além de obra multifacetada, susceptível, por isso, de desencadear interpretações muito diversificadas, o Frei Luís de Sousa surge num momento propício para uma reflexão metaliterária directamente interessada na questão dos géneros e na função social do teatro. De facto, a «Memória ao Conservatório» é, antes de mais, um texto decorrente de uma concepção cívica e pedagógica da Literatura, num tempo propício à educação das mentalidades através das práticas culturais; ao mesmo tempo, Garrett equaciona, com uma desenvoltura que nele não é nova, a questão dos géneros, acabando por postular o hibridismo formal como decisiva opção artística: reclamando a condição de drama romântico, mas sem renunciar à memória da tragédia, o Frei Luís de Sousa inscreve-se, deste modo, na linha do pensamento estético de Victor Hugo, pioneiro de substanciais transformações na teoria e na criação literárias do Romantismo europeu.
Obra composta num estilo dotado de grande naturalidade e de formulação praticamente coloquial, tentando (e conseguindo, em grande parte) fugir à retórica esteriotipada do dramalhão romântico, o Frei Luís de Sousa desenvolve uma acção simples, enquadrada por um pano de fundo histórico – a derrota em Alcácer-Quibir e a ocupação filipina –, apenas desequilibrada com a cena final da morte de Maria, concessão melodramática que destoa da sobriedade dominante na obra; ao mesmo tempo, ao privilegiar um assunto histórico de claro recorte sebastianista, o Frei Luís de Sousa insiste na vertente nacionalista que caracteriza a produção literária garrettiana, sem, no entanto, incorrer no artificialismo da Literatura de temática histórica da segunda geração romântica.
Carlos Reis, Maria da Natividade Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa
Escrita de um jacto, em pouco mais de duas semanas, a obra teria a sua primeira apresentação pública numa leitura feita no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, perante um auditório escolhido e culto. Dado o êxito obtido, uma segunda leitura seria feita num salão lisboeta, e logo ali combinada a primeira representação, que se viria a efectuar algumas semanas depois num teatro particular na Quinta do Pinheiro, em Lisboa, sendo os papéis desempenhados por actores amadores, pessoas da sociedade amigas de Garrett, que aliás viria mesmo a assegurar o papel de Telmo Pais. É só em 1850 que o grande público terá acesso ao conhecimento integral da peça, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, depois de terminada a ditadura de Costa Cabral, cuja censura impedira que isso acontecesse mais cedo.
Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa
X - Frei Luís de Sousa
Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, a vida criada, vinga-se cruelmente da vida presente e em criação. Os vivos não têm culpa nenhuma disto. D. Madalena foi sempre uma esposa fiel; seu marido um exemplar português, admirador do suposto morto, e a filha de ambos um anjo. (...).
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais. dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade. mesmo sem acontecimentos. Quando estes se começam a desencadear, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso. o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor. mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
– Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.
António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa
XI - Frei Luís de Sousa
Manuel de Sousa Coutinho (tal o nome que teve no século este grande prosador) n. em Santarém cerca de 1555 e m. em 1632 [Lisboa]. (...) Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes (...). Prestou serviços a Filipe II de Espanha, que o recompensou, em 1592, com uma tença de 200$000; de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou, por 1584-86, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido em Alcácer-Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada, com o posto de coronel. Em 1600, sendo Lisboa assolada pela peste, os governadores do Reino quiseram instalar-se em Almada, numa casa de D. Manuel, que para impedir tal violência, lhe lançou fogo. Na origem deste episódio estão questões pessoais, que não hostilidade ao Rei castelhano. (...)
Em 1613, quando já lhes falecera uma filha única, D. Manuel e D. Madalena resolveram seguir o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica, ela no convento, dominicano também, do Sacramento. O primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, no prefácio da 2ª parte da História de S. Domingos, entre várias opiniões que corriam sobre aquele insólito facto, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim a vida em comum de D. Manuel e D. Madalena tornara-se impossível. Esta versão constitui o ponto de partida do Frei Luís de Sousa de Garrett. (...) No claustro deu exemplo de grande austeridade, desempenhou o cargo de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa – ao mesmo tempo que se consagrava a tarefas literárias de vulto.
Uma dessas tarefas foi elaborar os materiais deixados por Frei Luís de Cácegas, investigador da mesma Ordem, para a biografia de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, um dos mais ilustres domínicos, Arcebispo de Braga (1514-1590).
Jacinto do Prado Coelho, «Frei Luís de Sousa», em Dicionário de Literatura
XII - Processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade de Telmo
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»
Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas
Frei Luís de Sousa constitui um caso particular na produção de Garrett e na literatura dramática nacional. É geralmente apontado como obra-prima do teatro português romântico.
Frei Luís de Sousa, à semelhança dos anteriores dramas do autor, tem por base a História de Portugal. Não respeitando, no entanto, totalmente, a informação histórica. o autor de acusações se defenderá à partida na Memória ao Conservatório Real:
Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a «Arte de verificar as datas» na mão (...).
Entre 1835 e 1842 conhecem-se várias obras que têm como tema a vida «romanceada» de Manuel de Sousa Coutinho: Luís de Sousa, romance de Ferdinand Denis (1835), o Cativo de Fez, drama de Silva Abranches (em 1840 apreciado pelo Conservatório), um poema em verso heróico publicado numa revista do Porto por um «poeta obscuro» (1840), o «rimance em prosa» Manuel de Sousa Coutinho, por Paulo Midosi (1842).
Sabemos que Almeida Garrett conhecia, além destes textos, a biografia de Frei Luís de Sousa da responsabilidade de Frei António da Encarnação. Nem a quantidade de obras já existentes nem o conhecimento inevitável que o público teria da «história» impediram Almeida Garrett de se lançar ao trabalho e de terminar em treze dias a escrita de uma primeira versão de Frei Luís de Sousa. Parece, pois, que o interesse do autor em escrever um texto dramático com base na conhecida biografia de Manuel de Sousa Coutinho só podia justificar-se por motivos bem diferentes daqueles que o levaram antes a escrevei D. Filipa de Vilhena e O Alfageme de Santarém.
Daí a importância da Memória, texto que surge como anúncio, justificação e interpretação do Frei Luís de Sousa. As relações que existem entre ambos podem, talvez, levar-nos a compreender melhor o lugar que Frei Luís de Sousa ocupa na história do teatro.
Maria João Brilhante, apresentação crítica de Frei Luís de Sousa
II - Frei Luís de Sousa - síntese
Drama – O drama pressupões uma acção menos tensa que o da tragédia, menos concentrado numa crise, mais submetida à influência dos acontecimentos exteriores.
Tragédia – poema dramático que desenvolve uma acção séria e completa, tirado da história, entre personagens ilustres com o fim de provocar na alma dos espectadores o terror e a piedade dados através do espectáculo da paixões luares em luta entre si ou contra o destino
Elementos trágicos e dramáticos em Frei Luís de Sousa:
Trágicos:
Tema – ilegitimidade de Maria ( adultério )
Personagens – número reduzidos e nobres
Presságios – ( predestinação ) referida por parte de Maria e de Telmo em que irá acontecer uma tragédia
Coro – Frei Jorge e Telmo ( fatalismo/ Destino = Madalena ) representa o papel de uma pecadora arrependida, pois amou Manuel de Sousa Coutinho na presença de D. João de Portugal. Acredita que o destino trará uma tragédia . Qualquer acção será irremediável ( predestinação – fatalismo ).
Estrutura
Efeitos catárticos – piedade e terror
Drama:
A peça é escrita em prosa.
Espaço:
O espaço vai-se reduzindo.
África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio
Tempo:
O tempo vai-se reduzindo também, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.
1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece M. de Sousa.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João
1585 e 1599 – Madalena casa com M. de Sousa.
1598 a 1599 ( 1 ano ) – D. João é libertado dirige-se para Portugal
28 de julho a 4 de Agosto ( 8 dias ) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.
Agosto (3 dias ) – D. João apressa-se para chegar
4 de Agosto ( hoje ) – é um dia fatal para Madalena
Divisão da peça :
3 actos escritos em prosa:
1 acto - Do início até ao incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho.
2 acto – Até à chegada do Romeiro
3 acto – Até à morte de Maria
Personagens:
Manuel de Sousa Coutinho – Segundo marido de madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar ( ideia inconfessada ); que a saúde débil de sua filha progrida para uma doença grave ; decidido, patriota ( incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; sofre, sente remorsos ao pensar na cruel situação em que ficara a sua querida Maria; Amor paternal.
D . João de Portugal – Casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; austero; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente ( quando pensa, por momentos, que Madalena o ama ).
Dona Madalena – suporte viuva de D. João de Portugal; casa com Manuel de S. Coutinho; nasce Maria, filha de Manuel; Angustia em relação à situação insegura do seu casamento; remorso por ter gostado de Manuel de S. enquanto era ainda casada com D . João; Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; Insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher p/ lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão.
Maria de Noronha – Filha de D. Madalena e D. João; amor filial, curiosidade; sonho, fantasia, idealismo, filha fatal, adolescente fantasista, sebastianista por influência de Telmo, adivinhava " lia nos olhos e nas estrelas " ; sempre febril, cresceu de repente, criança precoce; gosto pela aventura, frágil, alta, magra, faces rosadas, patriota, intuitiva, inteligente.
Telmo Pais – escudeiro de família dos condes vimioso, sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua " menina " ; sofre porque é forçado a ver o seu velho amo como um intruso que nunca deveria ter vindo. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.
A crença do sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. Logo no início, Madalena afirma a Telmo "..mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade ! "
No sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzira a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será última no plano de salvação dos Homens.
Cena I à IV – localização das personagens no tempo
Acto 1 Cena V à VIII – preparação da acção para o que se ai passar a seguir
Cena IX à XII – o Incêndio
A obra de Frei Luís de Sousa é ambas tragédia e drama, é tragédia pelo conteúdo do texto e é drama pela forma.
Cena 1 – solução adoptada
Acto 3 até à 10º cena temos a preparação do desenlace.
Cena 11 até à 12º temos o desenlace com morte de Maria em palco
Acto 3:
Cena 1 – Manuel debate-se com um dilema enorme, a doença de filha, a ilegitimidade.
Maria ficava ilegítima cheia de infâmia tal e qual como Garret.
Sempre que alguém pergunta a D. João quem ele é, ele responde espontaneamente"ninguém", este ninguém significa que D. João de Portugal já não tinha Pátria, não tinha família, não tinha lugar na sociedade, não tinha o seu palácio, pois perdeu-o .
III - A tragédia clássica:
A todo o sistema de forças, que comprime e pesa sobre a liberdade individual, o cidadão, o homem opõe o seu vivo protesto e lança um desafio ( hybris ).
À hybris responde a vingança, a punição, o ressentimento, uma espécie de ciúme ferido pela corajosa atitude assumida pelo homem – a nemesis divina.
O coro actua como um trovão ao ímpeto libertário do indivíduo aconselhado a moderação, o comedimento, a serena contenção, e traduz as ideias e os sentimentos da média humana. Os acontecimentos desenrolam-se segundo as cotas das personagens e os logros do destino, de necessidade do fatum; encadeiam-se uns nos outro se, por vezes, precipitam a acção no seu curso através de peripécias ( acontecimentos ), que acabam por voltar o rumo do drama em sentido inesperado ( catástrofe ). Esta mudança brusca é muitas vezes levada a cabo por um reconhecimento ( agnórise ) de laços parentescos até então insuspeitos.
As consequências patéticas, avolumam-se num crescendo inquietante ( climax ), até se resolver numa reviravolta brusca e brutal dos acontecimentos – a catástrofe.
Espectador e acção dramática:
O agenciamento da acção dramática da tragédia visava a exibição das consequências ( pathos ) do descomedimento humano de modo a sugerir no espectador o temor religioso ou sua simpatia.
Sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. No sebastianismo, como ele é representado no frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzirá a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano de salvação dos Homens.
IV - Classificação de Frei Luís de Sousa
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não é em verso, mas em prosa; não tem cinco actos; não respeita as unidades de tempo e de lugar; não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade, o número de personagens é diminuto;
Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);
contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
a crença no sebastianismo;
a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como o uso da prosa; a divisão em três actos; o estilo todo, do princípio ao fim, teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.»
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II
V - Esta é uma verdadeira tragédia
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa
VI - Definição de Tragédia
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética
VII - Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do conteúdo e características literárias do drama.
I – ARGUMENTO (macroanálise):
No primeiro e segundo actos trata-se de preparar o aparecimento de D João de Portugal; no terceiro, de resolver a situação difícil, que nasceu da sua chegada catastrófica. A progressão da intriga há-de fazer, dentro da verosimilhança e dramatismo psicológicos, aproximar o ausente que se teme como uma tremenda fatalidade, e conduzir os dois esposos ao convento, solução da sua desdita.
1º acto:
a) Conflito de D. Madalena e Telmo, que mostra os antecedentes do drama familiar e os caracteres de três personagens: um escudeiro velho, sebastianista de temperamento e por afeição ao primeiro amo, irrita D. Madalena, senhora nervosa, apreensiva, dominada pela ideia do que teme – começa a desenhar-se ao longe a sombra do ausente – repreende a Telmo porque impressiona demasiadamente, com suas 'histórias, o espírito precoce de Maria.
b) Notar um pequeno episódio que alivia a acção, concorrendo para ela: D. Madalena vai à janela indagar do bergantim que devia trazer o marido cuja ausência a preocupava; lufadas de maresia.
c) Apresentação do carácter de Maria, espírito vivíssimo, precoce, em corpo franzino. Hipersensibilidade nervosa, febricitante, mm sonhos e palpites, criança de olhos ardentes que tudo adivinham, que é por D. Sebastião e pelo Bandarra. Para logo se presume que a alma há-de consumir-lhe o corpo.
d) O episódio final do incêndio: revela o carácter íntegro de Manuel de Sousa, calmo nas grandes decisões, com a energia das pessoas bondosas e nobres; não compreende os vãos escrúpulos e temores de D. Madalena em ir habitar para o palácio do primeiro marido.
– Prepara naturalmente, a mudança de habitação para casa de D. João de Portugal. Ao mesmo tempo toma mais presente a sombra do primeiro marido e aproxima os esposos do convento em que hão-de professar.
Notar o empenho simbólico de D. Madalena em salvar das chamas o retrato do segundo marido.
2º acto.
a) Ligação da mudança dos palácios com a acção. O incêndio do retrato enche de agoiros D. Madalena. Um retrato de D. João de Portugal excita a curiosidade de Maria, para quem o incêndio fora um espectáculo sublime. Manuel de Sousa explica-lhe, magnanimamente, de quem era o retrato. Aproxima-se mais o ausente.
b) Afastamento de Manuel de Sousa e de Maria, para dar lugar ao Romeiro. Natural, pedido no pai, pelas consequências políticas do incêndio; e na filha, pela necessidade de acalmar-lhe a excitação. Vão visitar uma tia que, de comum acordo com o marido, professara, como ele, num convento. Sugestão do desfecho.
c) Aparecimento do Romeiro, em sua própria casa, e diante do próprio retrato. Naturalíssimo e como que pedido pela fatalidade das circunstâncias, e até por perguntas inconscientes de D. Madalena e Frei Jorge. Aquela, que antes era toda agoiros quando o perigo é real, então, é que se não dá conta dele. A revelação da desgraça não é total para ela, afim de se deixar uma possibilidade de entrecho no 3º acto, e por economia dramática do sentimento. D. Madalena não podia nem precisaria de ouvir mais.
3º acto:
a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste mm o movimento passional do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da solução a adoptar.
6 ) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. último adeus dos esposos, precedido do engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.
c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro, morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama romântico, no desencontro ,da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas seria mais sóbria noutras circunstâncias.
II – ANáLISE LITERáRIA (microanálise):
1. Drama...
a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes, e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.
b ) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.
c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma «anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a «catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.
2....romântico...
a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso, Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios. O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.
b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento.
Tema também do amor irremediável (a seguir virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução. Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.
c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a Joaninha das Viagens na Mina Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas, carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.
3....de Garrett
a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.
b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que Gartett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D. João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante, foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou sentido e acalmia.
c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa Assim, o Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real, como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por interposta pessoa.
E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo, ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para mais, golfando sangue sobre o peito do pai.
João Mendes, Literatura Portuguesa III,
Lisboa, Ed. Verbo, 1979, pp. 40-47.
VIII - Frei Luís de Sousa
O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).
A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)
Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:
O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.
Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.
IX - Frei Luís de Sousa
O relevo de que Garrett entre nós desfruta, como figura dominante do Romantismo, liga-se indissociavelmente à actividade política do autor; é o seu empenhamento na Revolução de Setembro que o leva a aprofundar a vocação dramática, não só como responsável pelas reformas então empreendidas, mas também como dramaturgo. Obras como Um Auto de Gil Vicente, D. Filipa de Vilhena, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa constituem não só o contributo garrettiano para a reforma do teatro português, mas também, por certo, dos poucos exemplos qualitativamente válidos que nos ficaram, como resultado desse impulso reformador-
O Frei Luís de Sousa ocupa aqui um lugar especial. Além de obra multifacetada, susceptível, por isso, de desencadear interpretações muito diversificadas, o Frei Luís de Sousa surge num momento propício para uma reflexão metaliterária directamente interessada na questão dos géneros e na função social do teatro. De facto, a «Memória ao Conservatório» é, antes de mais, um texto decorrente de uma concepção cívica e pedagógica da Literatura, num tempo propício à educação das mentalidades através das práticas culturais; ao mesmo tempo, Garrett equaciona, com uma desenvoltura que nele não é nova, a questão dos géneros, acabando por postular o hibridismo formal como decisiva opção artística: reclamando a condição de drama romântico, mas sem renunciar à memória da tragédia, o Frei Luís de Sousa inscreve-se, deste modo, na linha do pensamento estético de Victor Hugo, pioneiro de substanciais transformações na teoria e na criação literárias do Romantismo europeu.
Obra composta num estilo dotado de grande naturalidade e de formulação praticamente coloquial, tentando (e conseguindo, em grande parte) fugir à retórica esteriotipada do dramalhão romântico, o Frei Luís de Sousa desenvolve uma acção simples, enquadrada por um pano de fundo histórico – a derrota em Alcácer-Quibir e a ocupação filipina –, apenas desequilibrada com a cena final da morte de Maria, concessão melodramática que destoa da sobriedade dominante na obra; ao mesmo tempo, ao privilegiar um assunto histórico de claro recorte sebastianista, o Frei Luís de Sousa insiste na vertente nacionalista que caracteriza a produção literária garrettiana, sem, no entanto, incorrer no artificialismo da Literatura de temática histórica da segunda geração romântica.
Carlos Reis, Maria da Natividade Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa
Escrita de um jacto, em pouco mais de duas semanas, a obra teria a sua primeira apresentação pública numa leitura feita no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, perante um auditório escolhido e culto. Dado o êxito obtido, uma segunda leitura seria feita num salão lisboeta, e logo ali combinada a primeira representação, que se viria a efectuar algumas semanas depois num teatro particular na Quinta do Pinheiro, em Lisboa, sendo os papéis desempenhados por actores amadores, pessoas da sociedade amigas de Garrett, que aliás viria mesmo a assegurar o papel de Telmo Pais. É só em 1850 que o grande público terá acesso ao conhecimento integral da peça, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, depois de terminada a ditadura de Costa Cabral, cuja censura impedira que isso acontecesse mais cedo.
Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa
X - Frei Luís de Sousa
Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, a vida criada, vinga-se cruelmente da vida presente e em criação. Os vivos não têm culpa nenhuma disto. D. Madalena foi sempre uma esposa fiel; seu marido um exemplar português, admirador do suposto morto, e a filha de ambos um anjo. (...).
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais. dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade. mesmo sem acontecimentos. Quando estes se começam a desencadear, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso. o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor. mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
– Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.
António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa
XI - Frei Luís de Sousa
Manuel de Sousa Coutinho (tal o nome que teve no século este grande prosador) n. em Santarém cerca de 1555 e m. em 1632 [Lisboa]. (...) Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes (...). Prestou serviços a Filipe II de Espanha, que o recompensou, em 1592, com uma tença de 200$000; de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou, por 1584-86, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido em Alcácer-Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada, com o posto de coronel. Em 1600, sendo Lisboa assolada pela peste, os governadores do Reino quiseram instalar-se em Almada, numa casa de D. Manuel, que para impedir tal violência, lhe lançou fogo. Na origem deste episódio estão questões pessoais, que não hostilidade ao Rei castelhano. (...)
Em 1613, quando já lhes falecera uma filha única, D. Manuel e D. Madalena resolveram seguir o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica, ela no convento, dominicano também, do Sacramento. O primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, no prefácio da 2ª parte da História de S. Domingos, entre várias opiniões que corriam sobre aquele insólito facto, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim a vida em comum de D. Manuel e D. Madalena tornara-se impossível. Esta versão constitui o ponto de partida do Frei Luís de Sousa de Garrett. (...) No claustro deu exemplo de grande austeridade, desempenhou o cargo de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa – ao mesmo tempo que se consagrava a tarefas literárias de vulto.
Uma dessas tarefas foi elaborar os materiais deixados por Frei Luís de Cácegas, investigador da mesma Ordem, para a biografia de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, um dos mais ilustres domínicos, Arcebispo de Braga (1514-1590).
Jacinto do Prado Coelho, «Frei Luís de Sousa», em Dicionário de Literatura
XII - Processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade de Telmo
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»
Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas
Padre António Vieira - Sermão de Santo António aos Peixes
I - Sermão de Santo António aos Peixes
Sermão de Santo António pregado na cidade do Maranhão, no ano de 1654, no dia 13 de Junho, dia de Santo António, (Véspera da partida de Padre António Vieira para Lisboa). Nesta época, Portugal tinha recuperado a Independência e o Padre António Vieira vem a Lisboa, junto do rei para apoiar a criação de leis que acabassem com a exploração dos colonos brancos para com os índios brasileiros.
O sermão está organizado em seis capítulos e três partes:
- o Exórdio, que contém o capitulo I;
- a exposição e confirmação, que contém os capítulos II, III, IV e V
- e a peroração que contém o capitulo VI.
No Exórdio, Padre António Vieira apresenta o conceito predicável, “Vós sois o sal da Terra”, e explica as razões pelas quais a terra está tão corrupta. Ou a culpa está no sal (pregadores), ou na terra (ouvintes). Se a culpa está no sal, é porque os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque dizem uma coisa e fazem outra ou porque se pregam a si e não a Cristo. Se a culpa está na terra, é porque os ouvintes não querem receber a doutrina, ou antes imitam os pregadores e não o que eles dizem, ou porque servem os seus apetites e não os de Cristo.
Ao apresentar o conceito predicável, Padre António Vieira, introduz o tema do sermão, mas apesar de tudo desvia-se do tema e preocupa-se apenas com a razão pela qual a terra está corrupta, partindo do principio de que a culpa é dos ouvintes. Consegue isto, uma vez que o sermão é proferido no dia de santo António, aproveitando assim o exemplo deste. Santo António não obtinha resultados da sua pregação e os homens até o quiseram matar, em vez de desistir resolveu pregar aos peixes. Assim se viu Padre António Viera, sem obter resultados, a terra continuava corrupta, resolvendo igualmente pregar aos peixes, seguido o exemplo de Sto António.
Em primeira parte, o orador vai louvar as virtudes dos peixes e em seguida repreende-los.
O capitulo II contempla os louvores aos peixes de carácter geral, recorrendo-se ao exemplo de Jonas para mostrar que os homens são muito piores que os peixes. Como suas qualidades temos:
- Bons ouvintes / obedientes
- Primeira criação de deus
- Melhores do que os homens
- Livres, puros, longe dos homens
Estas qualidades, são por antítese os defeitos dos homens.
Neste, como em todos os capítulos, há um exemplo prático de Sto António, para o louvar no seu dia.
O capítulo III é igualmente de louvor aos peixes, mas agora de carácter particular. Padre António Vieira utiliza quatro peixes para mostras a relação entre o homem e o divino, como os peixes se dão a estes cuidados e os homens não pensam em tais coisas.
Peixe de Tobias: Tem umas entranhas e um coração que expulsam os demónios e simboliza o poder purificador da palavra de Deus.
Rémora: Peixe que quando se agarra e um navio tem força suficiente para o conduzir sozinha. Simboliza o poder da palavra do pregador – guia das almas.
Torpedo: Produz descargas eléctricas que faz tremer o braço do pecador. Simboliza o poder da palavra de Deus, de fazer tremer os pecadores que pescam na terra tudo quanto encontram.
Quatro–olhos: Tem dois pares de olhos, uns para cima e outros para baixo. Simboliza o dever dos cristãos em tirar os olhos da vaidade terrena, olhando para o céu sem esquecer o inferno.
Todos estes louvores que Padre António Vieira faz aos peixes são antíteses aos defeitos dos homens, assim simbolizando os seus vícios.
Seguidamente parte-se para as repreensões aos peixes, primeiramente de carácter geral (Cap. IV) e depois de carácter particular (Cap. V).
No carácter geral, Padre António Vieira acusa os peixes de se comerem uns aos outros, recorrendo a um exemplo dos homens para explicar o que eles faziam. Assim, os homens praticam antropofagia social, ou seja exploração uns dos outros. O orador faz uma comparação entre a antropofagia ritual dos Tapuias (índios brasileiros) e a antropofagia social dos homens, considerando esta ultima mais grave que a anterior, porque muitas vezes procuram tanto a exploração que nem os mortos escapam. O mais grave de tudo é que são os grandes que comem os pequenos, ou seja são precisos muitos pequenos para alimentar um grande. Acusa-os igualmente de cegueira, vaidade e de terem a maldade.
Estas repreensões são feitas com o objectivo de mudarem os homens, ou pelo menos fazê-los pensar, mesmo que não haja uma mudança rápida.
Aqui, há também um exemplo prático de Sto António que nunca praticou antropofagia social e que trocou a riqueza pela simpleza.
De carácter particular, Padre António Vieira usa quatro exemplos de peixes que se referem a tipos comportamentais. O roncador que simboliza os arrogantes, o pegador, que simboliza os oportunistas, o voador, que simboliza os ambiciosos e o pior de todos, o polvo, que simboliza o traidor e o hipócrita. Este último, tem uma aparência de santo e manso e um ar inofensivo, mas na essência é traiçoeiro e maldoso, é hipócrita e faz-se de amigo dos outros e no fim “abraça-os”. Neste capítulo são usados os exemplos de São Pedro, Sto Ambrósio, São Basílio e o Gigante Golias.
Por fim, a despedida, no capitulo VI, onde o orador retoma os pregadores de que falava no conceito predicável, servindo-se dele próprio como exemplo alegando que não estava a cumprir a sua função. Alega também que ele (homens) e os peixes, nunca vão chegar ao sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito. Padre António Vieira diz que a irracionalidade, a inconsciência e o instinto dos peixes, são melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, a consciência, o entendimento e a vontade do homem.
Conclui-se assim, fazendo um apelo aos ouvintes e louvando-se a Deus, tornando esta última parte do sermão um pouco mais familiar, para que se estabeleça de novo a proximidade entre os ouvintes e o orador.
Este sermão teve como ouvintes os colonos do Maranhão e tem grande coesão e coerência textual graças à utilização de recursos estilísticos, articuladores do discurso e argumentos de autoridade e analógicos para validar e confirmar os testemunhos narrados. Todo o sermão é alegórico, uma vez que são utilizados os peixes como figuras concretas para a crítica aos homens.
II - Sermão de Santo António aos Peixes
Peça oratória de Padre António Vieira, proferida três dias antes do jesuíta partir para Lisboa, na cidade de São Luís do Maranhão (Brasil), em 1654, na sequência dos litígios entre jesuítas e colonos do Brasil, por causa da escravização dos índios.
Construindo o sermão sob a forma de alegoria, Vieira faz considerações sobre virtudes e vícios humanos. Esta oratória apresenta uma construção literária e argumentativa notáveis. Fina ironia e forte sátira percorrem o texto assim como uma exuberante linguagem barroca, rica de sugestões alegóricas e de recursos estilísticos.
As partes constituintes do sermão são o exórdio, a invocação, a exposição ou informação, a confirmação e a peroração.
No exórdio, Pe. António Vieira parte do conceito predicável "Vós sois o sal da terra". E, tal como Santo António, também ele dirige a sua palavra aos peixes, dado que não é ouvido pelos homens.
Segue-se a invocação à Virgem Maria.
Durante a exposição ou informação, Pe. António Vieira explica as propriedades do sal e, por paralelismo, a importância das pregações para salvar os homens. Louva depois as virtudes dos peixes e repreende, em seguida, os seus vícios.
Na confirmação, apresenta as qualidades dos peixes: o santo peixe de Tobias tem o dom de sarar da cegueira e repelir os demónios; a rémora tem força e poder; o torpedo possui a faculdade de electrizar; o quatro-olhos tem a capacidade de vigiar.
Na segunda parte da confirmação, Pe. António Vieira indica, primeiramente, numa visão de conjunto, os defeitos dos peixes. Em seguida, particulariza a crítica: os roncadores são convencidos e soberbos; os pegadores, parasitas e oportunistas; os voadores, ambiciosos e presunçosos; o polvo, hipócrita e traidor, contrapondo-se a Santo António, modelo de candura, sinceridade e verdade.
Na peroração ou epílogo, o pregador faz uma última advertência aos peixes. Exorta-os a sacrificarem a Deus o respeito e a reverência.
Antes de terminar o sermão, com um admirável hino de louvor, Pe. António Vieira confessa-se pecador, em oposição aos peixes.
Sermão de Santo António pregado na cidade do Maranhão, no ano de 1654, no dia 13 de Junho, dia de Santo António, (Véspera da partida de Padre António Vieira para Lisboa). Nesta época, Portugal tinha recuperado a Independência e o Padre António Vieira vem a Lisboa, junto do rei para apoiar a criação de leis que acabassem com a exploração dos colonos brancos para com os índios brasileiros.
O sermão está organizado em seis capítulos e três partes:
- o Exórdio, que contém o capitulo I;
- a exposição e confirmação, que contém os capítulos II, III, IV e V
- e a peroração que contém o capitulo VI.
No Exórdio, Padre António Vieira apresenta o conceito predicável, “Vós sois o sal da Terra”, e explica as razões pelas quais a terra está tão corrupta. Ou a culpa está no sal (pregadores), ou na terra (ouvintes). Se a culpa está no sal, é porque os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque dizem uma coisa e fazem outra ou porque se pregam a si e não a Cristo. Se a culpa está na terra, é porque os ouvintes não querem receber a doutrina, ou antes imitam os pregadores e não o que eles dizem, ou porque servem os seus apetites e não os de Cristo.
Ao apresentar o conceito predicável, Padre António Vieira, introduz o tema do sermão, mas apesar de tudo desvia-se do tema e preocupa-se apenas com a razão pela qual a terra está corrupta, partindo do principio de que a culpa é dos ouvintes. Consegue isto, uma vez que o sermão é proferido no dia de santo António, aproveitando assim o exemplo deste. Santo António não obtinha resultados da sua pregação e os homens até o quiseram matar, em vez de desistir resolveu pregar aos peixes. Assim se viu Padre António Viera, sem obter resultados, a terra continuava corrupta, resolvendo igualmente pregar aos peixes, seguido o exemplo de Sto António.
Em primeira parte, o orador vai louvar as virtudes dos peixes e em seguida repreende-los.
O capitulo II contempla os louvores aos peixes de carácter geral, recorrendo-se ao exemplo de Jonas para mostrar que os homens são muito piores que os peixes. Como suas qualidades temos:
- Bons ouvintes / obedientes
- Primeira criação de deus
- Melhores do que os homens
- Livres, puros, longe dos homens
Estas qualidades, são por antítese os defeitos dos homens.
Neste, como em todos os capítulos, há um exemplo prático de Sto António, para o louvar no seu dia.
O capítulo III é igualmente de louvor aos peixes, mas agora de carácter particular. Padre António Vieira utiliza quatro peixes para mostras a relação entre o homem e o divino, como os peixes se dão a estes cuidados e os homens não pensam em tais coisas.
Peixe de Tobias: Tem umas entranhas e um coração que expulsam os demónios e simboliza o poder purificador da palavra de Deus.
Rémora: Peixe que quando se agarra e um navio tem força suficiente para o conduzir sozinha. Simboliza o poder da palavra do pregador – guia das almas.
Torpedo: Produz descargas eléctricas que faz tremer o braço do pecador. Simboliza o poder da palavra de Deus, de fazer tremer os pecadores que pescam na terra tudo quanto encontram.
Quatro–olhos: Tem dois pares de olhos, uns para cima e outros para baixo. Simboliza o dever dos cristãos em tirar os olhos da vaidade terrena, olhando para o céu sem esquecer o inferno.
Todos estes louvores que Padre António Vieira faz aos peixes são antíteses aos defeitos dos homens, assim simbolizando os seus vícios.
Seguidamente parte-se para as repreensões aos peixes, primeiramente de carácter geral (Cap. IV) e depois de carácter particular (Cap. V).
No carácter geral, Padre António Vieira acusa os peixes de se comerem uns aos outros, recorrendo a um exemplo dos homens para explicar o que eles faziam. Assim, os homens praticam antropofagia social, ou seja exploração uns dos outros. O orador faz uma comparação entre a antropofagia ritual dos Tapuias (índios brasileiros) e a antropofagia social dos homens, considerando esta ultima mais grave que a anterior, porque muitas vezes procuram tanto a exploração que nem os mortos escapam. O mais grave de tudo é que são os grandes que comem os pequenos, ou seja são precisos muitos pequenos para alimentar um grande. Acusa-os igualmente de cegueira, vaidade e de terem a maldade.
Estas repreensões são feitas com o objectivo de mudarem os homens, ou pelo menos fazê-los pensar, mesmo que não haja uma mudança rápida.
Aqui, há também um exemplo prático de Sto António que nunca praticou antropofagia social e que trocou a riqueza pela simpleza.
De carácter particular, Padre António Vieira usa quatro exemplos de peixes que se referem a tipos comportamentais. O roncador que simboliza os arrogantes, o pegador, que simboliza os oportunistas, o voador, que simboliza os ambiciosos e o pior de todos, o polvo, que simboliza o traidor e o hipócrita. Este último, tem uma aparência de santo e manso e um ar inofensivo, mas na essência é traiçoeiro e maldoso, é hipócrita e faz-se de amigo dos outros e no fim “abraça-os”. Neste capítulo são usados os exemplos de São Pedro, Sto Ambrósio, São Basílio e o Gigante Golias.
Por fim, a despedida, no capitulo VI, onde o orador retoma os pregadores de que falava no conceito predicável, servindo-se dele próprio como exemplo alegando que não estava a cumprir a sua função. Alega também que ele (homens) e os peixes, nunca vão chegar ao sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito. Padre António Vieira diz que a irracionalidade, a inconsciência e o instinto dos peixes, são melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, a consciência, o entendimento e a vontade do homem.
Conclui-se assim, fazendo um apelo aos ouvintes e louvando-se a Deus, tornando esta última parte do sermão um pouco mais familiar, para que se estabeleça de novo a proximidade entre os ouvintes e o orador.
Este sermão teve como ouvintes os colonos do Maranhão e tem grande coesão e coerência textual graças à utilização de recursos estilísticos, articuladores do discurso e argumentos de autoridade e analógicos para validar e confirmar os testemunhos narrados. Todo o sermão é alegórico, uma vez que são utilizados os peixes como figuras concretas para a crítica aos homens.
II - Sermão de Santo António aos Peixes
Peça oratória de Padre António Vieira, proferida três dias antes do jesuíta partir para Lisboa, na cidade de São Luís do Maranhão (Brasil), em 1654, na sequência dos litígios entre jesuítas e colonos do Brasil, por causa da escravização dos índios.
Construindo o sermão sob a forma de alegoria, Vieira faz considerações sobre virtudes e vícios humanos. Esta oratória apresenta uma construção literária e argumentativa notáveis. Fina ironia e forte sátira percorrem o texto assim como uma exuberante linguagem barroca, rica de sugestões alegóricas e de recursos estilísticos.
As partes constituintes do sermão são o exórdio, a invocação, a exposição ou informação, a confirmação e a peroração.
No exórdio, Pe. António Vieira parte do conceito predicável "Vós sois o sal da terra". E, tal como Santo António, também ele dirige a sua palavra aos peixes, dado que não é ouvido pelos homens.
Segue-se a invocação à Virgem Maria.
Durante a exposição ou informação, Pe. António Vieira explica as propriedades do sal e, por paralelismo, a importância das pregações para salvar os homens. Louva depois as virtudes dos peixes e repreende, em seguida, os seus vícios.
Na confirmação, apresenta as qualidades dos peixes: o santo peixe de Tobias tem o dom de sarar da cegueira e repelir os demónios; a rémora tem força e poder; o torpedo possui a faculdade de electrizar; o quatro-olhos tem a capacidade de vigiar.
Na segunda parte da confirmação, Pe. António Vieira indica, primeiramente, numa visão de conjunto, os defeitos dos peixes. Em seguida, particulariza a crítica: os roncadores são convencidos e soberbos; os pegadores, parasitas e oportunistas; os voadores, ambiciosos e presunçosos; o polvo, hipócrita e traidor, contrapondo-se a Santo António, modelo de candura, sinceridade e verdade.
Na peroração ou epílogo, o pregador faz uma última advertência aos peixes. Exorta-os a sacrificarem a Deus o respeito e a reverência.
Antes de terminar o sermão, com um admirável hino de louvor, Pe. António Vieira confessa-se pecador, em oposição aos peixes.
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