segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Almeida Garrett - Frei Luís de Sousa

I - Frei Luís de Sousa

Frei Luís de Sousa constitui um caso particular na produção de Garrett e na literatura dramática nacional. É geralmente apontado como obra-prima do teatro português romântico.



Frei Luís de Sousa, à semelhança dos anteriores dramas do autor, tem por base a História de Portugal. Não respeitando, no entanto, totalmente, a informação histórica. o autor de acusações se defenderá à partida na Memória ao Conservatório Real:

Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a «Arte de verificar as datas» na mão (...).

Entre 1835 e 1842 conhecem-se várias obras que têm como tema a vida «romanceada» de Manuel de Sousa Coutinho: Luís de Sousa, romance de Ferdinand Denis (1835), o Cativo de Fez, drama de Silva Abranches (em 1840 apreciado pelo Conservatório), um poema em verso heróico publicado numa revista do Porto por um «poeta obscuro» (1840), o «rimance em prosa» Manuel de Sousa Coutinho, por Paulo Midosi (1842).

Sabemos que Almeida Garrett conhecia, além destes textos, a biografia de Frei Luís de Sousa da responsabilidade de Frei António da Encarnação. Nem a quantidade de obras já existentes nem o conhecimento inevitável que o público teria da «história» impediram Almeida Garrett de se lançar ao trabalho e de terminar em treze dias a escrita de uma primeira versão de Frei Luís de Sousa. Parece, pois, que o interesse do autor em escrever um texto dramático com base na conhecida biografia de Manuel de Sousa Coutinho só podia justificar-se por motivos bem diferentes daqueles que o levaram antes a escrevei D. Filipa de Vilhena e O Alfageme de Santarém.

Daí a importância da Memória, texto que surge como anúncio, justificação e interpretação do Frei Luís de Sousa. As relações que existem entre ambos podem, talvez, levar-nos a compreender melhor o lugar que Frei Luís de Sousa ocupa na história do teatro.

Maria João Brilhante, apresentação crítica de Frei Luís de Sousa



II - Frei Luís de Sousa - síntese


Drama – O drama pressupões uma acção menos tensa que o da tragédia, menos concentrado numa crise, mais submetida à influência dos acontecimentos exteriores.

Tragédia – poema dramático que desenvolve uma acção séria e completa, tirado da história, entre personagens ilustres com o fim de provocar na alma dos espectadores o terror e a piedade dados através do espectáculo da paixões luares em luta entre si ou contra o destino


Elementos trágicos e dramáticos em Frei Luís de Sousa:

Trágicos:

Tema – ilegitimidade de Maria ( adultério )

Personagens – número reduzidos e nobres

Presságios – ( predestinação ) referida por parte de Maria e de Telmo em que irá acontecer uma tragédia

Coro – Frei Jorge e Telmo ( fatalismo/ Destino = Madalena ) representa o papel de uma pecadora arrependida, pois amou Manuel de Sousa Coutinho na presença de D. João de Portugal. Acredita que o destino trará uma tragédia . Qualquer acção será irremediável ( predestinação – fatalismo ).

Estrutura

Efeitos catárticos – piedade e terror

Drama:
A peça é escrita em prosa.

Espaço:
O espaço vai-se reduzindo.

África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio

Tempo:
O tempo vai-se reduzindo também, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.

1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece M. de Sousa.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João
1585 e 1599 – Madalena casa com M. de Sousa.
1598 a 1599 ( 1 ano ) – D. João é libertado dirige-se para Portugal
28 de julho a 4 de Agosto ( 8 dias ) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.
Agosto (3 dias ) – D. João apressa-se para chegar
4 de Agosto ( hoje ) – é um dia fatal para Madalena


Divisão da peça :
3 actos escritos em prosa:

1 acto - Do início até ao incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho.
2 acto – Até à chegada do Romeiro
3 acto – Até à morte de Maria

Personagens:
Manuel de Sousa Coutinho – Segundo marido de madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar ( ideia inconfessada ); que a saúde débil de sua filha progrida para uma doença grave ; decidido, patriota ( incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; sofre, sente remorsos ao pensar na cruel situação em que ficara a sua querida Maria; Amor paternal.

D . João de Portugal – Casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; austero; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente ( quando pensa, por momentos, que Madalena o ama ).

Dona Madalena – suporte viuva de D. João de Portugal; casa com Manuel de S. Coutinho; nasce Maria, filha de Manuel; Angustia em relação à situação insegura do seu casamento; remorso por ter gostado de Manuel de S. enquanto era ainda casada com D . João; Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; Insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher p/ lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão.

Maria de Noronha – Filha de D. Madalena e D. João; amor filial, curiosidade; sonho, fantasia, idealismo, filha fatal, adolescente fantasista, sebastianista por influência de Telmo, adivinhava " lia nos olhos e nas estrelas " ; sempre febril, cresceu de repente, criança precoce; gosto pela aventura, frágil, alta, magra, faces rosadas, patriota, intuitiva, inteligente.

Telmo Pais – escudeiro de família dos condes vimioso, sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua " menina " ; sofre porque é forçado a ver o seu velho amo como um intruso que nunca deveria ter vindo. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.


A crença do sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. Logo no início, Madalena afirma a Telmo "..mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade ! "

No sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzira a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será última no plano de salvação dos Homens.


Cena I à IV – localização das personagens no tempo

Acto 1 Cena V à VIII – preparação da acção para o que se ai passar a seguir

Cena IX à XII – o Incêndio

A obra de Frei Luís de Sousa é ambas tragédia e drama, é tragédia pelo conteúdo do texto e é drama pela forma.

Cena 1 – solução adoptada

Acto 3 até à 10º cena temos a preparação do desenlace.
Cena 11 até à 12º temos o desenlace com morte de Maria em palco

Acto 3:
Cena 1 – Manuel debate-se com um dilema enorme, a doença de filha, a ilegitimidade.
Maria ficava ilegítima cheia de infâmia tal e qual como Garret.


Sempre que alguém pergunta a D. João quem ele é, ele responde espontaneamente"ninguém", este ninguém significa que D. João de Portugal já não tinha Pátria, não tinha família, não tinha lugar na sociedade, não tinha o seu palácio, pois perdeu-o .


III - A tragédia clássica:

A todo o sistema de forças, que comprime e pesa sobre a liberdade individual, o cidadão, o homem opõe o seu vivo protesto e lança um desafio ( hybris ).

À hybris responde a vingança, a punição, o ressentimento, uma espécie de ciúme ferido pela corajosa atitude assumida pelo homem – a nemesis divina.

O coro actua como um trovão ao ímpeto libertário do indivíduo aconselhado a moderação, o comedimento, a serena contenção, e traduz as ideias e os sentimentos da média humana. Os acontecimentos desenrolam-se segundo as cotas das personagens e os logros do destino, de necessidade do fatum; encadeiam-se uns nos outro se, por vezes, precipitam a acção no seu curso através de peripécias ( acontecimentos ), que acabam por voltar o rumo do drama em sentido inesperado ( catástrofe ). Esta mudança brusca é muitas vezes levada a cabo por um reconhecimento ( agnórise ) de laços parentescos até então insuspeitos.

As consequências patéticas, avolumam-se num crescendo inquietante ( climax ), até se resolver numa reviravolta brusca e brutal dos acontecimentos – a catástrofe.


Espectador e acção dramática:
O agenciamento da acção dramática da tragédia visava a exibição das consequências ( pathos ) do descomedimento humano de modo a sugerir no espectador o temor religioso ou sua simpatia.

Sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. No sebastianismo, como ele é representado no frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzirá a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano de salvação dos Homens.


IV - Classificação de Frei Luís de Sousa

«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não é em verso, mas em prosa; não tem cinco actos; não respeita as unidades de tempo e de lugar; não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade, o número de personagens é diminuto;
Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);
contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
a crença no sebastianismo;
a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como o uso da prosa; a divisão em três actos; o estilo todo, do princípio ao fim, teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.»


Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II

V - Esta é uma verdadeira tragédia
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»

Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa

VI - Definição de Tragédia
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.

Aristóteles, Poética

VII - Frei Luís de Sousa

Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do conteúdo e características literárias do drama.

I – ARGUMENTO (macroanálise):

No primeiro e segundo actos trata-se de preparar o aparecimento de D João de Portugal; no terceiro, de resolver a situação difícil, que nasceu da sua chegada catastrófica. A progressão da intriga há-de fazer, dentro da verosimilhança e dramatismo psicológicos, aproximar o ausente que se teme como uma tremenda fatalidade, e conduzir os dois esposos ao convento, solução da sua desdita.

1º acto:

a) Conflito de D. Madalena e Telmo, que mostra os antecedentes do drama familiar e os caracteres de três personagens: um escudeiro velho, sebastianista de temperamento e por afeição ao primeiro amo, irrita D. Madalena, senhora nervosa, apreensiva, dominada pela ideia do que teme – começa a desenhar-se ao longe a sombra do ausente – repreende a Telmo porque impressiona demasiadamente, com suas 'histórias, o espírito precoce de Maria.

b) Notar um pequeno episódio que alivia a acção, concorrendo para ela: D. Madalena vai à janela indagar do bergantim que devia trazer o marido cuja ausência a preocupava; lufadas de maresia.

c) Apresentação do carácter de Maria, espírito vivíssimo, precoce, em corpo franzino. Hipersensibilidade nervosa, febricitante, mm sonhos e palpites, criança de olhos ardentes que tudo adivinham, que é por D. Sebastião e pelo Bandarra. Para logo se presume que a alma há-de consumir-lhe o corpo.

d) O episódio final do incêndio: revela o carácter íntegro de Manuel de Sousa, calmo nas grandes decisões, com a energia das pessoas bondosas e nobres; não compreende os vãos escrúpulos e temores de D. Madalena em ir habitar para o palácio do primeiro marido.

– Prepara naturalmente, a mudança de habitação para casa de D. João de Portugal. Ao mesmo tempo toma mais presente a sombra do primeiro marido e aproxima os esposos do convento em que hão-de professar.

Notar o empenho simbólico de D. Madalena em salvar das chamas o retrato do segundo marido.

2º acto.

a) Ligação da mudança dos palácios com a acção. O incêndio do retrato enche de agoiros D. Madalena. Um retrato de D. João de Portugal excita a curiosidade de Maria, para quem o incêndio fora um espectáculo sublime. Manuel de Sousa explica-lhe, magnanimamente, de quem era o retrato. Aproxima-se mais o ausente.

b) Afastamento de Manuel de Sousa e de Maria, para dar lugar ao Romeiro. Natural, pedido no pai, pelas consequências políticas do incêndio; e na filha, pela necessidade de acalmar-lhe a excitação. Vão visitar uma tia que, de comum acordo com o marido, professara, como ele, num convento. Sugestão do desfecho.

c) Aparecimento do Romeiro, em sua própria casa, e diante do próprio retrato. Naturalíssimo e como que pedido pela fatalidade das circunstâncias, e até por perguntas inconscientes de D. Madalena e Frei Jorge. Aquela, que antes era toda agoiros quando o perigo é real, então, é que se não dá conta dele. A revelação da desgraça não é total para ela, afim de se deixar uma possibilidade de entrecho no 3º acto, e por economia dramática do sentimento. D. Madalena não podia nem precisaria de ouvir mais.

3º acto:

a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste mm o movimento passional do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da solução a adoptar.

6 ) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. último adeus dos esposos, precedido do engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.

c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro, morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama romântico, no desencontro ,da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas seria mais sóbria noutras circunstâncias.


II – ANáLISE LITERáRIA (microanálise):

1. Drama...

a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes, e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.

b ) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.

c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma «anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a «catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.

2....romântico...

a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso, Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios. O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.

b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento.

Tema também do amor irremediável (a seguir virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução. Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.

c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a Joaninha das Viagens na Mina Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas, carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.

3....de Garrett

a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.

b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que Gartett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D. João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante, foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou sentido e acalmia.

c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa Assim, o Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real, como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por interposta pessoa.

E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo, ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para mais, golfando sangue sobre o peito do pai.


João Mendes, Literatura Portuguesa III,
Lisboa, Ed. Verbo, 1979, pp. 40-47.

VIII - Frei Luís de Sousa

O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).

A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)

Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:

O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.

Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.

IX - Frei Luís de Sousa

O relevo de que Garrett entre nós desfruta, como figura dominante do Romantismo, liga-se indissociavelmente à actividade política do autor; é o seu empenhamento na Revolução de Setembro que o leva a aprofundar a vocação dramática, não só como responsável pelas reformas então empreendidas, mas também como dramaturgo. Obras como Um Auto de Gil Vicente, D. Filipa de Vilhena, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa constituem não só o contributo garrettiano para a reforma do teatro português, mas também, por certo, dos poucos exemplos qualitativamente válidos que nos ficaram, como resultado desse impulso reformador-

O Frei Luís de Sousa ocupa aqui um lugar especial. Além de obra multifacetada, susceptível, por isso, de desencadear interpretações muito diversificadas, o Frei Luís de Sousa surge num momento propício para uma reflexão metaliterária directamente interessada na questão dos géneros e na função social do teatro. De facto, a «Memória ao Conservatório» é, antes de mais, um texto decorrente de uma concepção cívica e pedagógica da Literatura, num tempo propício à educação das mentalidades através das práticas culturais; ao mesmo tempo, Garrett equaciona, com uma desenvoltura que nele não é nova, a questão dos géneros, acabando por postular o hibridismo formal como decisiva opção artística: reclamando a condição de drama romântico, mas sem renunciar à memória da tragédia, o Frei Luís de Sousa inscreve-se, deste modo, na linha do pensamento estético de Victor Hugo, pioneiro de substanciais transformações na teoria e na criação literárias do Romantismo europeu.

Obra composta num estilo dotado de grande naturalidade e de formulação praticamente coloquial, tentando (e conseguindo, em grande parte) fugir à retórica esteriotipada do dramalhão romântico, o Frei Luís de Sousa desenvolve uma acção simples, enquadrada por um pano de fundo histórico – a derrota em Alcácer-Quibir e a ocupação filipina –, apenas desequilibrada com a cena final da morte de Maria, concessão melodramática que destoa da sobriedade dominante na obra; ao mesmo tempo, ao privilegiar um assunto histórico de claro recorte sebastianista, o Frei Luís de Sousa insiste na vertente nacionalista que caracteriza a produção literária garrettiana, sem, no entanto, incorrer no artificialismo da Literatura de temática histórica da segunda geração romântica.

Carlos Reis, Maria da Natividade Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa




Escrita de um jacto, em pouco mais de duas semanas, a obra teria a sua primeira apresentação pública numa leitura feita no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, perante um auditório escolhido e culto. Dado o êxito obtido, uma segunda leitura seria feita num salão lisboeta, e logo ali combinada a primeira representação, que se viria a efectuar algumas semanas depois num teatro particular na Quinta do Pinheiro, em Lisboa, sendo os papéis desempenhados por actores amadores, pessoas da sociedade amigas de Garrett, que aliás viria mesmo a assegurar o papel de Telmo Pais. É só em 1850 que o grande público terá acesso ao conhecimento integral da peça, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, depois de terminada a ditadura de Costa Cabral, cuja censura impedira que isso acontecesse mais cedo.

Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa

X - Frei Luís de Sousa



Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.

O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, a vida criada, vinga-se cruelmente da vida presente e em criação. Os vivos não têm culpa nenhuma disto. D. Madalena foi sempre uma esposa fiel; seu marido um exemplar português, admirador do suposto morto, e a filha de ambos um anjo. (...).

Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais. dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade. mesmo sem acontecimentos. Quando estes se começam a desencadear, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso. o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.

Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor. mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.

O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:

– Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.

A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.

António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa


XI - Frei Luís de Sousa

Manuel de Sousa Coutinho (tal o nome que teve no século este grande prosador) n. em Santarém cerca de 1555 e m. em 1632 [Lisboa]. (...) Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes (...). Prestou serviços a Filipe II de Espanha, que o recompensou, em 1592, com uma tença de 200$000; de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou, por 1584-86, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido em Alcácer-Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada, com o posto de coronel. Em 1600, sendo Lisboa assolada pela peste, os governadores do Reino quiseram instalar-se em Almada, numa casa de D. Manuel, que para impedir tal violência, lhe lançou fogo. Na origem deste episódio estão questões pessoais, que não hostilidade ao Rei castelhano. (...)

Em 1613, quando já lhes falecera uma filha única, D. Manuel e D. Madalena resolveram seguir o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica, ela no convento, dominicano também, do Sacramento. O primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, no prefácio da 2ª parte da História de S. Domingos, entre várias opiniões que corriam sobre aquele insólito facto, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim a vida em comum de D. Manuel e D. Madalena tornara-se impossível. Esta versão constitui o ponto de partida do Frei Luís de Sousa de Garrett. (...) No claustro deu exemplo de grande austeridade, desempenhou o cargo de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa – ao mesmo tempo que se consagrava a tarefas literárias de vulto.

Uma dessas tarefas foi elaborar os materiais deixados por Frei Luís de Cácegas, investigador da mesma Ordem, para a biografia de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, um dos mais ilustres domínicos, Arcebispo de Braga (1514-1590).


Jacinto do Prado Coelho, «Frei Luís de Sousa», em Dicionário de Literatura

XII - Processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade de Telmo

«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»

Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas

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