terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Romance (a propósito de Os Maias)

Classificação do romance

Embora à primeira vista o pareça, não podemos considerar Os Maias propriamente aquilo que se chama um «romance de família». O «romance de família» estuda a evolução de sucessivas gerações ligadas pelos laços do sangue (Les Rougon-Macquart de Zola, Os Buddenbrook de Thomas Mann). Ora n'Os Maias a geração de Afonso e a de Pedro são abordadas muito superficialmente e só tanto quanto é preciso para justificar a razão de ser de Carlos, personagem central da obra a partir do capítulo 3º.

Parece-nos que devemos classificar Os Maias como um romance de acção, pois nele o romanesco intervém em larga escala, Eça não explorou em profundidade o realismo científico, monográfico, estudando um vício, uma paixão; preferiu inventar enredos, criar dramas, comédias até, mostrando os caracteres de modo indirecto através da acção.

Pela sua complexidade, a obra tem sido também considerada um romance polifónico ou, como dizem os franceses, um roman-fleuve. A multiplicidade de personagens e episódios convergem de todos os lados a agrupar-se num conjunto orgânico: o ambiente da Lisboa romântica da segunda metade do século XIX, onde os Maias, educados ou à portuguesa ou à inglesa, acabam por falhar, como que arrastados por uma fatalidade contra a qual não têm coragem de reagir.

Será a obra Os Maias um romance naturalista, realista mesmo no sentido rigoroso do termo?

É inegável que o realismo está ali bem patente sobretudo no envolvimento social das personagens, desde a educação que receberam até ao condicionamento criado à sua volta pelo putrefacto meio lisboeta que as sufoca. Mas o rigor científico de análise próprio do Naturalismo está ausente. De pequena projecção, sob o aspecto naturalista, são: uma ou outra alusão à hereditariedade (no cap. 1º, Afonso preocupado com o comportamento anormal de Pedro principalmente por ver que se parece com um avô materno, de quem havia um retrato em Benfica, que enlouquecera «e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira»; no mesmo capítulo, a insistência na má raça dos progenitores de Maria Monforte); o apontamento da inclinação inata do pequeno Carlos para a medicina (no cap. 4º, diz-se que o menino descobrira no sótão um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas, que passara dias a recortá-las, «pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil com o recheio à mostra»);o elogio da escola naturalista feito expressamente pelo narrador no capítulo 6º e por Ega no capítulo 12º.

O que dissemos no início do parágrafo anterior tem uma explicação. Quando Eça redigia Os Maias, já muita gente contestava o Positivismo, o Determinismo, a confiança fanática no Cientismo. Daí o descobrirmos no romance um claro desvio das técnicas naturalistas e até umas pinceladas retintas de feição simbólica (predominantes já n'O Mandarim, livro publicado oito anos antes d'Os Maias). Tais pinceladas podem ver-se, por exemplo:

1. Dâmaso, em casa de Maria Eduarda, concitando o ódio e o mal-estar da cadelinha Niniche, que lhe ladra raivosamente, enquanto se mostra regalada nos joelhos de Carlos (cap, 11º);

2. A «horrível cabeça» de S. João Baptista, decapitado por condenar um incesto, a sangrar numa tela do quarto de dormir da Toca, «painel antigo... onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida gelada, dentro de um prato de cobre»; e ainda outro objecto que decorava o mesmo quarto: «de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor... os seus dois olhos redondos e agoirentos» (cap. 13º);

3. O ambiente que envolveu a morte do velho Afonso: «em volta, nas folhas das camélias nas áleas areadas, refulgia, cor de ouro, o sol fino de Inverno. Por entre as conchas da cascata, o fio de água punha o seu choro lento» (cap. 17º).

Do que aqui fica exposto parece poder deduzir-se que a obra Os Maias nos apresenta, consoante as voltas que lhe dermos, aspectos realistas, naturalistas e simbólicos.

António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa




Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio: a cena no jornal A Tarde; e, sobretudo, o sarau literário. Basta ler isso, e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa.

Eça de Queirós, Obras Completas, vol. XIII, Lello & Irmão – Editores, Porto, 1948.



Os Maias, romance fundamental, representa de certo modo a plenitude do período realista da ficção portuguesa, mas ao mesmo tempo ultrapassa o processo realista pela complexidade das personagens e da própria estrutura do romance. De facto, se este romance é, aparentemente, sobretudo a história de uma família da aristocracia portuguesa em decadência, crónica social, cultural e política do fim-do-século lisboeta, ele é muito para além disso a história trágica de um incesto. E um incesto que, não obstante as suas aparências romanescas, tem raízes mais fundas na obscura, desesperada procura do ideal feminino por parte de um diletante do pensamento e do sentimento, Carlos da Maia. Paralelamente, Os Maias é sem dúvida o romance de toda uma geração, a Geração de 70 tornada a geração dos Vencidos da Vida.

Boletim Informativo da Fundação Calouste Gulbenkian, nº2, série V, 1979.

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