Realismo (1865-1890)
Nos anos seguintes a 1860, desencadeia-se uma profunda reviravolta na vida mental Portuguesa: o Romantismo, exausto, agonizante como estilo de vida e de arte, começa a sofrer os primeiros ataques por parte da nova geração que surge. Mais uma vez é Coimbra que serve de trincheira para os revolucionários, com a diferença de que o grito rebelde parte agora da massa estudantil, alvoroçada pelas ideias vanguardeiras dum Proudhon, dum Quinet, dum Taine, dum Renan...
Em 1861, Antero de Quental funda a Sociedade do Raio, uma associação secreta que congrega cerca de duzentos estudantes das várias faculdades de Coimbra, com o objectivo de instaurar a aventura do espírito no seio do convencionalismo académico. Em Outubro do ano seguinte, escolhido para saudar o Príncipe Humberto da Itália, Antero exalta a Itália livre e Garibaldi, então ferido em combate, num significativo gesto de audácia e rebeldia. A Sociedade do Raio ainda vai agir no ano seguinte, raptando o Reitor Basílio Alberto e obrigando-o a demitir-se. Empolgados pelas novas ideias revolucionárias, em 1864 Teófilo Braga publica dois volumes de versos, a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras, e em 1865, Antero edita as Odes Modernas: era a gota que faltava. Nesse ínterim, Pinheiro Chagas escreve o Poema da Mocidade e procura o amparo de Castilho, seu mestre nas Letras. Cheio de entusiasmo, o poeta das Cartas de Eco e Narciso remete uma longa carta ao editor da obra, a qual foi acrescentada em forma de posfácio na edição que dela se fez em 1865. Na missiva, ao mesmo tempo que se refere calorosamente ao fiel discípulo, dirige-se com desagrado aos moços de Coimbra, em especial Antero e Teófilo, aos quais acrescenta Vieira de Castro, afirmando que "muito há que me eu pergunto a mim donde proviria esta enfermidade que hoje grassa por tantos espíritos, de que até alguns dos mais robustos adoecem, que faz com que a literatura, e em particular a poesia, anda marasmada, com fastio de morte à verdade e à simplicidade, com o olhar desvairado e visionário, com os passos incertos, com as cores da saúde trocadas em carmins postiços", etc. Mais adiante, diz: "Lembra-me que uma das causas a que o mal se poderá atribuir será a falta de convivência mútua destes pobres mancebos, que, tendo sido pela natureza predestinados, se fazem precitos; que, talhados para resplandecerem no panteão daqueles génios, que os séculos ficam adorando, se condenam às Trevas próximas do limbo", etc. Dirigindo-se à poesia do tempo, Castilho pondera: "Se a afectação e a enfactuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar de coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear Havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas, ou o grau da doença dos escritores, constitui em resumo a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando", etc. E mais adiante: "Quem não vê que Veie tornando a contagiosa escola dos conceitos, das subtilezas, das unidades discretas, dos alambicamentos metafísicos, das bátegas de flores, de pérolas, de diamantes, das mariposas, das estrelas, das asas de anjos; a anarquia, o turbilhão enfim de todas quantas imagens mudas e miúdas há, e pode, e não pode haver, para usurparem o lugar devido aos pensamentos e aos afectos; a mascarada das figuras em suma, as saturnais da fantasia, a soltura das florais?" A insinuação vai por aí fora, até que o missivista passa a tratar directamente dos três moços de Coimbra, e por fim resume seu pensamento: "Deixando de parte, por agora, Braga e Quental, de que, pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal", etc.
Antero, líder do grupo a que Castilho se refere acremente, de pronto revida as alusões que lhe são dirigidas, num opúsculo que recebeu o nome de Bom-Senso e Bom Gosto, saído no mesmo ano de 1865. Falando em "escola de Coimbra", e à luz da boa fé, afirma: "eu hei de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Ex.a, dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incómodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de V. Ex a."
Assim, com a violência entusiasmada dos vinte e cinco anos, Antero faz a súmula do pensamento que orienta a sua geração: "combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde, às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual." O desagravo termina irreverentemente: "Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta anos de reflexão."
Estava armada a polémica, que passou a chamar-se pelo título do folheto anteriano, ou ainda pela de Questão Coimbrã. Em defesa do pai, sai a campo Júlio de Castilho, a que se seguem Teófilo Braga, com um folheto intitulado As Teocracias Literárias, e Antero, com A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais. Formam-se dois partidos, um, pró-Castilho e outro, pró-Antero, que vão engrossando durante os anos de 1865 e 1866, inclusive estendendo-se até o Brasil, com a adesão de D. Pedro II e Sílvio Romero. O número de opúsculos ascende a algumas dezenas entre as duas facções, integradas ainda por escritores como: Camilo, com o folheto Vaidades Irritadas e Irritantes, a favor da causa romântica, mas a pedido de Castilho; Ramalho Ortigão, com Literatura de Hoje, contra Antero, o que obriga este a desafiá-lo em duelo e com ele se bater em Fevereiro de 1866; Augusto Malheiro Dias, Amaro Mendes Gaveta, pseudónimo de Cunha Belém, Urbano Loureiro, Diogo Bernardes, Brito Aranha, Rui de Porto-Carrero, E. A. Salgado, Carlos Borges, Eduardo Augusto Vidal e tantos outros.
Com a Questão Coimbrã, estava definida a crise de cultura que inicia o Realismo em Portugal. A vitória, como era de esperar, sorri aos moços, mas vai ser preciso que voltem à carga mais adiante a fim de consolidar suas posições. É que a derrota de Castilho significava apenas o golpe de morte no Romantismo: nem era necessário tanto ruído para abater as modas envelhecidas; bastava aguardar os anos, mas é condição da juventude de sempre o gosto de por abaixo estrepitosamente os velhos ídolos e bonzos. Não obstante, Castilho continua pelos anos fora a exercer influência; mais ou menos clandestina, ou indirecta, como se pode observar na poesia de um Eugénio de Castro e de vários poetas do século XX.
Formados em Coimbra, os participantes da revolta anti-castilhista e anti-romântica, disper-sam-se e só tornam a reunir-se em Lisboa, em 1868, no grupo do Cenáculo. Em casa de Jai-me Batalha Reis (1847-1935), realizam encontros periódicos: Eça de Queirós, Antero, Olivei-ra Martins, Ramalho Ortigão, Salomão Sáraga, Santos Valente, Mariano Machado de Faria e Maia, José Eduardo Lobo da Costa, e outros que aparecem menos. Congrega-os uma "escan-dalosa fornalha de Revolução, de Metafísica, de Satanismo, de Anarquia, de Boémia feroz", como lembra Eça de Queirós no retrato que pintou de Antero numa página de rara beleza, intitulada Um génio que era um santo. Em 1871, os rapazes do Cenáçulo resolvem organizar uma série de conferências públicas com o fito de por em discussão franca os problemas e as questões de ordem ideológica que então interessavam a gente culta da Europa e da América do Norte. Para tanto, alugam o Casino Lisbonense, uma espécie de café-concerto onde se reúne a boémia áurea do tempo, para ver o can-can e ouvir cançonetas picantes. Situado a dois passos do Chiado, artéria elegante de Lisboa, era o lugar ideal para levar a efeito o cometimento.
Depois de anunciadas enfaticamente, sobretudo pelo jornal A Revolução de Setembro, a 16 de Maio de 1871 distribui-se o programa-plataforma das conferências, intituladas Conferências Democráticas Estabelecidas na Sala do Casino, Largo da Abegoaria. Mais tarde, passaram a chamar-se apenas de Conferências do Casino Lisbonense.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Casino Lisbonense
O Cenáculo e as Conferências Democráticas
O pequeno grupo coimbrão, de que faziam parte, além de Antero e Teófilo, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga, futuro presidente da República, Eça de Queirós e outros ainda, veio a encontrar-se de novo em Lisboa, restaurando a antiga fraternidade académica num Cenáculo com sede em casa de um deles. A estes agregaram-se novos elementos. A partir de 1871, Antero de Quental, regressando de viagens a França, América e à ilha de S. Miguel, tornara-se o mentor do grupo, a que se foram juntando, entre outros, Jaime Batalha Reis, futuro professor de Agronomia; Oliveira Martins, um autodidacta, então empregado comercial; Ramalho Ortigão, influenciado pela convivência com o seu ex-aluno Eça de Queirós; Adolfo Coelho, iniciador dos estudos de linguística em Portugal; Augusto Soromenho (ou Seromenho), professor no Curso Superior de Letras; Guilherme de Azevedo; Guerra Junqueiro.
Das discussões no Cenáculo, em que se aliavam a literatura e a boémia, tinham saído de começo obras de pura ficção, como as últimas Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e os "satânicos" Poemas de Macadam atribuídos a um imaginário Carlos Fradique Mendes; a chegada de Antero vem disciplinar as leituras e os interesses e dar um objectivo mais preciso ao grupo. O autor à volta do qual cristaliza a doutrina até então flutuante dos seus componentes é P. J. Proudhon (1809-1865) cuja influência na chamada Geração de 70 se intensifica nesta época. Foi neste círculo que nasceu a iniciativa das Conferências Democráticas no Casino Lisbonense .
O projecto das Conferências integra-se num largo, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa. O programa impresso para anunciar e evidenciar a sua realização, sublinhando que "não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo", resume as intenções capitais das conferências nestes ambiciosos termos:
"Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa."
Para compreender todo o alcance das Conferências, convém notar que se estava então num ano de grandes acontecimentos - 1871, remate da unificação de Itália, queda do II Império francês, guerra franco-prussiana, Comuna de Paris, que dois membros do Cenáculo (Antero e Guilherme de Azevedo) aplaudiram publicamente. No plano interno é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se estende a Portugal, com a cooperação de Antero. O principal promotor em Portugal desta organização, um empregado da Livraria Bertrand, José Fontana, tem contactos com o Cenáculo, e participa, como organizador administrativo, nas Conferências.
É fácil, desta maneira, compreender a importância que lhe dedicaram as autoridades; o seu encerramento foi imposto pelo ministro do Reino, António José de Ávila, após os ataques de jornais conservadores, que acusavam os conferencistas de intenções subversivas e de serem adeptos da Comuna. A motivação próxima da ordem de encerramento parece ter sido a de impedir a realização de uma conferência que ia pôr em causa a religião católica, constitucionalmente ligada ao Estado.
Das conferências produzidas, salientaram-se as de Antero, Eça de Queirós e Adolfo Coelho.
Antero, além da conferência inaugural, desenvolveu o tema das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, que eram, segundo ele, três: a reacção religiosa consumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais; um sistema económico de rapina guerreira que, atalhando o desenvolvimento da pequena burguesia, detivera, na Península, a evolução económica de parte da Europa. Antero limitava-se a sistematizar pontos de vista que tinham já sido sustentados em diversas ocasiões por Alexandre Herculano; a sua conferência causou profunda impressão, foi editada em folheto e suscitaria ainda em 1879 uma reflexão correctiva de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica .
Sob o título A Nova Literatura, Eça de Queirós versou o tema O Realismo como nova expressão da Arte:combinando sugestões de Taine e de Proudhon, defendeu uma teoria da arte que a considera condicionada por factores diversos, uns permanentes (o meio, o momento e a raça), outros acidentais ou históricos (ideais directores de cada sociedade); apontou-lhe uma missão social e moralizadora; criticou a literatura romântica por fugir à sua época; e indicou como missão histórica da nova literatura criticar a velha sociedade, abrindo caminho à Revolução - missão proposta à nova escola "realista", que Eça exemplificou na pintura com Courbet (que aliás não conhecia de modo directo) e na literatura com a Madame Bovary, de Flaubert. Eça não publicou o seu texto, que se reconstitui pelas notícias jornalísticas e seus posteriores comentários.
Adolfo Coelho, que viria a ser mais tarde o fundador da linguística em Portugal (Noções Elementares de Língua Portuguesa, 1880), segue na esteira hegeliana-proudhoniana, ao afirmar que na história "vê-se o espírito apropriar-se incessantemente da consciência de si, isto é, da sua natureza, da sua independência, do seu destino". Propõe a organização de um ensino totalmente científico, baseado na separação da Igreja e do Estado, e defende o desenvolvimento pedagógico das ciências sociais, históricas e filosóficas. Fez também uma cerrada crítica às instituições pedagógicas portuguesas, o que provocou violenta reacção, sobretudo universitária.
Houve ainda uma conferência de Augusto Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, sobre A Moderna Literatura, que aliás saía fora do pensamento do Cenáculo, pois se empenhava em exaltar o Romantismo à Chateaubriand, e estavam outras preparadas: sobre Os historiadores críticos de Jesus (Salomão Sáragga); O Socialismo (Batalha Reis); A República (Antero de Quental); A Instrução Primária (Adolfo Coelho); Dedução positiva da Ideia Democrática (Augusto Fuschini). Entre outros conferencistas convidados, contavam-se Teófilo Braga e Oliveira Martins. O encerramento deu-se no dia em que ia realizar-se a conferência sobre Os historiadores críticos de Jesus, onde o autor se propunha tratar dos trabalhos de Renan, com quem colaborara como perito, que era, de estudos hebraicos. Salomão Sáragga dirigirá a importante revista Os Dois Mundos, em português (Paris, 1877-81).
O encerramento provocou protestos de alguns jornais e de dois deputados no Parlamento. Herculano associou-se nos termos que já indicámos.
História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.
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