Deixis
A deixis designa o conjunto de palavras ou expressões (expressões deícticas) que têm como função ‘apontar’ para o contexto situacional. Deste modo, essas palavras ou expressões, ao serem utilizadas num discurso, adquirem um novo significado, uma vez que o seu referente depende do contexto. Por outras palavras, a deixis pode ser definida como o conjunto de processos linguísticos que permitem inscrever no enunciado as marcas da sua enunciação, que é única e irrepetível. Assim, assinalam o sujeito que enuncia (locutor), o sujeito a quem se dirige (interlocutor), o tempo e o espaço da enunciação.
O sujeito da enunciação/locutor é o ponto central a partir do qual se estabelecem todas as coordenadas do contexto: eu é aquele que diz eu no momento em que fala; tu é a pessoa a quem o eu se dirige; agora é o momento em que o eu fala; aqui é o lugar em que o eu se encontra; isto é um objecto que se encontra perto do eu, os tempos verbais indicam um tempo anterior, simultâneo ou posterior ao momento da enunciação (ex.: escrevi, escrevo, escreverei). Com efeito, é o sistema de coordenadas referenciais (EU/TU—AQUI—AGORA) da enunciação que possibilita a atribuição de sentidos referenciais.
“A própria palavra deixis, pelo seu sentido etimológico, está associada ao gesto de “apontar”.
O diálogo que se segue apresenta a negrito os elementos deícticos:
Joana: Eu amanhã encontro-te aqui às 10h.
Pedro: Eu não estou disponível! Pode ser de tarde?
No primeiro enunciado, eu significa Joana, enquanto, no segundo, eu significa Pedro, tal como o pronome pessoal te do primeiro enunciado. Também o deíctico amanhã só pode ser correctamente interpretado com conhecimento do dia em que decorreu este diálogo, uma vez que significa sempre o dia seguinte ao da enunciação. Do mesmo modo, o advérbio aqui apenas pode ser definido conhecendo o local da enunciação. Finalmente, sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto e pessoa-número indicam, neste caso, simultaneamente a pessoa e o tempo verbal: o tempo utilizado (presente do indicativo) indica uma acção que decorrerá num futuro próximo ao do presente da enunciação.
Assim, a interpretação deste enunciado requer o conhecimento das coordenadas AGORA-AQUI, caso contrário, a comunicação revela-se ineficaz. O mesmo acontece em relação à coordenada temporal num cartaz em que se omitiu a data a que se refere hoje:
Hoje, greve geral dos ferroviários!
Os deícticos inserem-se em diversas categorias gramaticais, adquirindo sentido pleno apenas no contexto em que se emitem. Assim, pertencem à categoria dos deícticos:
— os pronomes pessoais;
— os pronomes e determinantes possessivos;
— os pronomes e determinantes demonstrativos;
— os artigos;
— os advérbios de lugar e de tempo;
— os tempos verbais;
— alguns vocábulos, como ir / vir (movimento de afastamento / aproximação em relação ao espaço em que se encontra o locutor e interlocutor, respectivamente).
Em função da sua natureza deíctica, é possível apresentar a seguinte classificação:
Deixis pessoal — indica as pessoas do discurso, permitindo seleccionar os participantes na interacção comunicativa. Integram este grupo os pronomes pessoais (ex.: tu, me, nós, etc.), determinantes e pronomes possessivos (ex.: o meu, o vosso, teu, etc.), sufixos flexionais de pessoa-número (ex.: falas, falamos, etc.), bem como vocativos. (Algumas formas verbais não apresentam um sufixo flexional específico de pessoa-número (ex.: falo, disse, fizer, etc.). Nestes casos, o sufixo inclui as informações relativas ao tempo-modo-aspecto e pessoa-número, tratando-se assim de uma amálgama).
Quanto eu disser não ouças,
quanto eu fizer não vejas;
e, se eu estender as mãos,
não me estendas as tuas.
Aceita que eu exista como os sonhos
que ninguém sonha,
as imagens malditas que no espelho
são noite irreflectida
Talvez que então
da pura solidão
eu desça à vida.
(J. Sena, Fidelidade)
Deixis espacial — assinala os elementos espaciais, tendo como ponto de referência o lugar em que decorre a enunciação. Ou seja, evidencia a relação de maior ou menor proximidade relativamente ao lugar ocupado pelo locutor. Cumprem esta função os advérbios ou locuções adverbiais de lugar (ex.: aqui, cá, além, acolá, aqui perto, lá de cima, etc.), os determinantes e pronomes demonstrativos (ex.: este, essa, aquilo, o outra, a mesma, etc.), bem como alguns verbos que indicam movimento (ex.: ir, partir; chegar; aproximar-se; afastar-se, entrar, sair, subir, descer, etc.).
— Vamos até ali... — convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.
— Ali, aonde? — perguntou ela, sem forças para resistir.
— Ali adiante...
(M. Torga, Novos Contos da Montanha)
Deixis temporal — localiza, no tempo, factos, tomando como ponto de referência o “agora” da enunciação. Desempenham esta função os advérbios, locuções adverbiais ou expressões de tempo (ex.: amanhã, ontem, na semana passada, no dia seguinte, etc.) e sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto (ex.: falarei; faláveis, etc.).
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
(…)
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã
(Á. Campos, Poesias)
Deixis social — assinala a relação hierárquica existente entre os participantes da interacção discursiva e os papéis por eles assumidos. Servem de suporte a esta função os elementos linguísticos pertencentes às chamadas formas de tratamento (ex.: o senhor, vossa excelência, senhor director, etc.).
Eu quero prevenir já o senhor doutor de que em minha casa um banho é um banho, quero dizer, é para uma pessoa se lavar. (V. Ferreira, Aparição)
Gramática da Língua Portuguesa, de Clara Amorim e Catarina Sousa (com supervisão científica de Mário Vilela e consultoria científica de Alina Villalva)
Um cantinho onde o Português, a Literatura, os vários discursos, os enunciados, as opiniões, as críticas... podem ser teus...
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Contra a falência da Língua Portuguesa
Poema da Ortografia
Há? À? Ás? Às?
HÁ ou À como é que escrevo?
Oh que grande problema!
Nunca sei fazê-lo bem,
Fico sempre num dilema.
Se quero dizer que EXISTE,
Sei que escrevo com Hagá:
HÁ bolachas e HÁ biscoitos
Esta não me faz gagá!
HÁ barulho! HÁ silêncio!
HÁ peixinho bem fresquinho!
HÁ pessoas na estrada.
HÁ castanhas e bom vinho!
A dificuldade aumenta
Se quero falar de tempo:
HÁ muitos dias atrás?
Ou À muitos dias? Tormento!!
Ora até esta questão
É bem fácil de explicar
Sempre que contarmos ‘tempo’
O hagá vai abancar:
HÁ quinze dias atrás;
Há dois meses, pois então!
HÁ anos! Há pouco tempo!
Bem ‘farcinho’, não é não?
E agora vem aí
Outra dúvida a valer:
O HÁ já eu sei escrever,
Então a outra? Posso saber?
O À com acento grave
Acompanha o feminino
Pois ele é preposição
Mais artigo definido.
Se eu puder trocar o À
Pela expressão «A UMA»
Então já posso dizer:
-Não tenho dúvida alguma!:
Vou À praia (A UMA praia);
À pergunta ele fugiu.
À menina respondi!
«A UMA» também surgiu.
Outro teste eficaz
Para saber distinguir,
É usar o MASCULINO
Numa frase a seguir:
Dei À mãe ou dei AO pai;
Vou À Festa ou AO cinema;
ÀS terças ou AOS feriados;
Deixa assim de ser problema.
E, agora, finalmente,
ÀS ou ÁS que confusão!
ÀS é plural de À;
ÁS é de campeão!
Só uso o Ás com as copas,
Com paus, espadas e ouros
Ou para dizer a alguém
És um Ás, mereces louros!
Espero que tenha ajudado
Toda a gente a perceber
Não HÁ coisa mais bonita
Do que saber escrever!
Paula Castelo Branco
Há? À? Ás? Às?
HÁ ou À como é que escrevo?
Oh que grande problema!
Nunca sei fazê-lo bem,
Fico sempre num dilema.
Se quero dizer que EXISTE,
Sei que escrevo com Hagá:
HÁ bolachas e HÁ biscoitos
Esta não me faz gagá!
HÁ barulho! HÁ silêncio!
HÁ peixinho bem fresquinho!
HÁ pessoas na estrada.
HÁ castanhas e bom vinho!
A dificuldade aumenta
Se quero falar de tempo:
HÁ muitos dias atrás?
Ou À muitos dias? Tormento!!
Ora até esta questão
É bem fácil de explicar
Sempre que contarmos ‘tempo’
O hagá vai abancar:
HÁ quinze dias atrás;
Há dois meses, pois então!
HÁ anos! Há pouco tempo!
Bem ‘farcinho’, não é não?
E agora vem aí
Outra dúvida a valer:
O HÁ já eu sei escrever,
Então a outra? Posso saber?
O À com acento grave
Acompanha o feminino
Pois ele é preposição
Mais artigo definido.
Se eu puder trocar o À
Pela expressão «A UMA»
Então já posso dizer:
-Não tenho dúvida alguma!:
Vou À praia (A UMA praia);
À pergunta ele fugiu.
À menina respondi!
«A UMA» também surgiu.
Outro teste eficaz
Para saber distinguir,
É usar o MASCULINO
Numa frase a seguir:
Dei À mãe ou dei AO pai;
Vou À Festa ou AO cinema;
ÀS terças ou AOS feriados;
Deixa assim de ser problema.
E, agora, finalmente,
ÀS ou ÁS que confusão!
ÀS é plural de À;
ÁS é de campeão!
Só uso o Ás com as copas,
Com paus, espadas e ouros
Ou para dizer a alguém
És um Ás, mereces louros!
Espero que tenha ajudado
Toda a gente a perceber
Não HÁ coisa mais bonita
Do que saber escrever!
Paula Castelo Branco
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
João de Deus - Poema O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.
E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.
Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus, in 'Campo de Flores'
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.
E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.
Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus, in 'Campo de Flores'
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
A AIA in CONTOS de Eça de Queirós
«Resumo da ação A Aia
Um rei moço e valente partira a batalhar por terras distantes, deixando só e triste a rainha e um filho pequeno. O rei perdeu a vida numa das batalhas e foi chorado pela rainha. Sendo herdeiro natural do trono, o bebé estava sujeito aos ataques de inimigos dos quais se destacava o seu tio, irmão bastardo do rei morto, que vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes e que queria tomar posse do reino, que agora estava fragilizado. O pequeno príncipe era amamentado por uma Aia, mãe de um bebé negro. A Aia alimentava os dois com igual carinho, pois um era seu filho e outro viria a ser seu rei. A escrava mostrava uma lealdade sem limites.
Uma noite, a aia pressentiu uma movimentação estranha, verificando a presença de homens no palácio. Rapidamente se apercebeu do que iria passar-se e trocou, sem hesitar, as crianças dos respetivos berços. Nesse instante, um homem enorme entrou na câmara, arrebatou do berço de marfim o pequeno corpo que ali descansava e partiu furiosamente. A rainha, que entretanto invadira a câmara, verifica desesperada o berço do principezinho vazio. A Aia mostra-lhe, então, que, no berço de verga, o jovem príncipe dormia.
Entretanto, o capitão dos guardas veio avisar que o bastardo havia sido vencido, mas infelizmente o corpo do príncipe tinha também perecido. A rainha mostrou, então, o bebé e, identificando a sua salvadora, abraçou-a e beijou-a, chamando-lhe irmã do seu coração. Todos a aclamaram, exigindo que fosse recompensada. A rainha levou-a ao tesouro real, para que pudesse escolher a jóia que mais lhe agradasse. A Aia, olhando o céu, onde decerto estava o seu menino, pegou num punhal e cravou-o no seu coração, dizendo que agora que tinha salvo o seu príncipe tinha de ir dar de mamar ao seu filho.
Estrutura da Ação
Introdução
(Primeiros parágrafos)
Apresentação do rei e do seu reino. Partida do rei para a guerra, deixando sozinhos a rainha, o filho e o reino.
Desenvolvimento
(de “A rainha chorou magnificamente o rei …” até ” Era um punhal de um velho rei (…) e que valia uma província.”)
Conclusão
( três últimos parágrafos)
Por amor ao filho, a Aia suicida-se.
Neste conto estamos perante uma narrativa fechada, pois apresenta um desenlace irreversível.
A articulação das sequências narrativas (momentos de avanço) faz-se por encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e interrompem, por vezes, a narração com descrições (espaço, objetos, personagens).
Personagens
Caracterização física das personagens
Rei – Moço, formoso.
Tio – Face escura, homem enorme.
Aia – Bela, robusta, olhos brilhantes.
Príncipe – Cabelo louro e fino, olhos reluzentes.
Escravo – Cabelo negro e crespo olhos reluzentes.
Caracterização psicológica das personagens
Rei – Valente, alegre, rico, poderoso, sonhador, ambicioso.
Rainha – Desventurosa, chorosa, solitária, triste, angustiada, grata surpreendida.
Tio – Mau, terrível, cruel, ambicioso, selvagem .
Aia – Leal, nobre, venerável, sofredora, dedicada, terna, perspicaz, decidida, corajosa.
Príncipe – Frágil, inseguro.
Escravo – Simples, seguro e livre.
Ao longo do texto, está presente o processo de caracterização directa, pois as informações são-nos dadas pelo narrador. No entanto, há também informações que são deduzidas a partir do comportamento das personagens (caracterização indireta).
A Aia, personagem principal, torna-se uma personagem modelada no fim do conto, porque adquire uma densidade psicológica significativa. Mulher dedicada ao filho, ao príncipe e aos reis prova, com o gesto da troca das crianças, uma grandeza de alma que não pode ser compreendida por nenhum humano e que, por consequência, não tem nenhuma recompensa ou pagamento material. A crença espiritual que alimenta o seu gesto demonstra uma simplicidade de pensamento que coloca o dever acima de tudo: o dever de escrava e o dever de mãe. O desejo da aia de provar que a cobiça e a ambição podem estar arredadas de um coração leal, fez com que ela escolhesse um punhal para pôr termo à sua vida. Trata-se de um objeto pequeno, certeiro que remete para o carácter decidido da personagem e que era o maior tesouro que aquela mulher ambicionava, pois, esse objeto lhe abriria caminho para o encontro com o seu filho, para cumprir o seu dever de mãe, dando-lhe de mamar.
O rei, a rainha, o tio, o príncipe e o escravo são personagens secundárias e planas. Não são identificadas por um nome próprio uma vez que remetem para a intemporalidade da história.
As crianças estão, no conto, marcadas pela sua posição social: uma dorme em berço de ouro entre brocados, a outra, num berço pobre e de verga. À hora da morte é por essa marca que o inimigo vai identificar o futuro rei. O príncipe não intervém diretamente na acção, mas é o centro das atenções de todas as personagens. A personagem escravo existe para salvar a vida do príncipe.
Tempo
Não há referências a datas ou locais que permitam localizar a ação no tempo. Há apenas algumas expressões referentes ao tempo: « lua cheia », «começava a minguar»,«noite de Verão», «noite de silêncio», «luz da madrugada».
É à noite que acontecem os principais acontecimentos desta história como: a morte do rei, o nascimento do príncipe e do escravo, o ataque ao palácio, a troca das crianças, as mortes do escravo, do tio e da sua horda. No entanto, a ação fecha com a morte da Aia, de madrugada.
O núcleo central da ação centra-se numa noite. A condensação de um tempo da história tão longo, numa narrativa curta (conto) implica a utilização de sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história); de elipses (eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da história).
Quanto à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela sequência cronológica.
Espaço
A ação localiza-se num reino grande e rico « abundante em cidades e searas». , e decorre num palácio. Toda ação decorre nesse espaço, sendo que alguns recantos do palácio são sobrevalorizados por oposição a outros, por exemplo, a câmara onde o príncipe e o filho da escrava dormiam e a câmara dos tesouros.
No entanto, alguns espaços exteriores adquirem alguma importância. O espaço onde o rei é derrotado e consequentemente morto - o que vai deixar a rainha viúva, o filho órfão e o povo sem rei; O espaço que caracteriza o Tio Bastardo: « vivia num castelo, à maneira de um lobo, que entre a sua alcateia, espera a presa». Através desta apresentação, o leitor fica na expetativa do que irá acontecer, visto que ela é indicadora de confrontação e de tragédia (índice). ìndice este que é também determinante no clima que se vive no palácio, que denota temor e insegurança.
O espaço é descrito do geral para o particular, do exterior para o interior. Primeiramente, é-nos apresentado «um reino abundante em cidades e searas», onde se situa um palácio, habitado por um príncipe que fica órfão e que vai ser protegido no seu berço pela sua Aia. À medida que se desenrolam os acontecimentos, o espaço vai-se concentrando cada vez mais, (à volta do palácio / palácio /dentro do palácio), acabando a Aia por se suicidar na câmara dos tesouros:
No exterior, no alto, encontramos um «castelo sobre os montes», « o cimo das serras», povoado pelo tio bastardo e a sua horda, que vigiam a presa – o príncipe que vivia no palácio. Mais abaixo, «na planície, às portas da cidade» existe um palácio, onde a população e o príncipe estão desprotegidos e são presa fácil. No interior da «casa real» há uma câmara com um berço, um pátio, a galeria de mármore, a câmara dos tesouros, onde estão a rainha, a aia, o príncipe e o escravo.
Quanto ao espaço social temos a descrição de um ambiente da corte – palácio, rei, rainha, aias, guardas.»
Um rei moço e valente partira a batalhar por terras distantes, deixando só e triste a rainha e um filho pequeno. O rei perdeu a vida numa das batalhas e foi chorado pela rainha. Sendo herdeiro natural do trono, o bebé estava sujeito aos ataques de inimigos dos quais se destacava o seu tio, irmão bastardo do rei morto, que vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes e que queria tomar posse do reino, que agora estava fragilizado. O pequeno príncipe era amamentado por uma Aia, mãe de um bebé negro. A Aia alimentava os dois com igual carinho, pois um era seu filho e outro viria a ser seu rei. A escrava mostrava uma lealdade sem limites.
Uma noite, a aia pressentiu uma movimentação estranha, verificando a presença de homens no palácio. Rapidamente se apercebeu do que iria passar-se e trocou, sem hesitar, as crianças dos respetivos berços. Nesse instante, um homem enorme entrou na câmara, arrebatou do berço de marfim o pequeno corpo que ali descansava e partiu furiosamente. A rainha, que entretanto invadira a câmara, verifica desesperada o berço do principezinho vazio. A Aia mostra-lhe, então, que, no berço de verga, o jovem príncipe dormia.
Entretanto, o capitão dos guardas veio avisar que o bastardo havia sido vencido, mas infelizmente o corpo do príncipe tinha também perecido. A rainha mostrou, então, o bebé e, identificando a sua salvadora, abraçou-a e beijou-a, chamando-lhe irmã do seu coração. Todos a aclamaram, exigindo que fosse recompensada. A rainha levou-a ao tesouro real, para que pudesse escolher a jóia que mais lhe agradasse. A Aia, olhando o céu, onde decerto estava o seu menino, pegou num punhal e cravou-o no seu coração, dizendo que agora que tinha salvo o seu príncipe tinha de ir dar de mamar ao seu filho.
Estrutura da Ação
Introdução
(Primeiros parágrafos)
Apresentação do rei e do seu reino. Partida do rei para a guerra, deixando sozinhos a rainha, o filho e o reino.
Desenvolvimento
(de “A rainha chorou magnificamente o rei …” até ” Era um punhal de um velho rei (…) e que valia uma província.”)
Conclusão
( três últimos parágrafos)
Por amor ao filho, a Aia suicida-se.
Neste conto estamos perante uma narrativa fechada, pois apresenta um desenlace irreversível.
A articulação das sequências narrativas (momentos de avanço) faz-se por encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e interrompem, por vezes, a narração com descrições (espaço, objetos, personagens).
Personagens
Caracterização física das personagens
Rei – Moço, formoso.
Tio – Face escura, homem enorme.
Aia – Bela, robusta, olhos brilhantes.
Príncipe – Cabelo louro e fino, olhos reluzentes.
Escravo – Cabelo negro e crespo olhos reluzentes.
Caracterização psicológica das personagens
Rei – Valente, alegre, rico, poderoso, sonhador, ambicioso.
Rainha – Desventurosa, chorosa, solitária, triste, angustiada, grata surpreendida.
Tio – Mau, terrível, cruel, ambicioso, selvagem .
Aia – Leal, nobre, venerável, sofredora, dedicada, terna, perspicaz, decidida, corajosa.
Príncipe – Frágil, inseguro.
Escravo – Simples, seguro e livre.
Ao longo do texto, está presente o processo de caracterização directa, pois as informações são-nos dadas pelo narrador. No entanto, há também informações que são deduzidas a partir do comportamento das personagens (caracterização indireta).
A Aia, personagem principal, torna-se uma personagem modelada no fim do conto, porque adquire uma densidade psicológica significativa. Mulher dedicada ao filho, ao príncipe e aos reis prova, com o gesto da troca das crianças, uma grandeza de alma que não pode ser compreendida por nenhum humano e que, por consequência, não tem nenhuma recompensa ou pagamento material. A crença espiritual que alimenta o seu gesto demonstra uma simplicidade de pensamento que coloca o dever acima de tudo: o dever de escrava e o dever de mãe. O desejo da aia de provar que a cobiça e a ambição podem estar arredadas de um coração leal, fez com que ela escolhesse um punhal para pôr termo à sua vida. Trata-se de um objeto pequeno, certeiro que remete para o carácter decidido da personagem e que era o maior tesouro que aquela mulher ambicionava, pois, esse objeto lhe abriria caminho para o encontro com o seu filho, para cumprir o seu dever de mãe, dando-lhe de mamar.
O rei, a rainha, o tio, o príncipe e o escravo são personagens secundárias e planas. Não são identificadas por um nome próprio uma vez que remetem para a intemporalidade da história.
As crianças estão, no conto, marcadas pela sua posição social: uma dorme em berço de ouro entre brocados, a outra, num berço pobre e de verga. À hora da morte é por essa marca que o inimigo vai identificar o futuro rei. O príncipe não intervém diretamente na acção, mas é o centro das atenções de todas as personagens. A personagem escravo existe para salvar a vida do príncipe.
Tempo
Não há referências a datas ou locais que permitam localizar a ação no tempo. Há apenas algumas expressões referentes ao tempo: « lua cheia », «começava a minguar»,«noite de Verão», «noite de silêncio», «luz da madrugada».
É à noite que acontecem os principais acontecimentos desta história como: a morte do rei, o nascimento do príncipe e do escravo, o ataque ao palácio, a troca das crianças, as mortes do escravo, do tio e da sua horda. No entanto, a ação fecha com a morte da Aia, de madrugada.
O núcleo central da ação centra-se numa noite. A condensação de um tempo da história tão longo, numa narrativa curta (conto) implica a utilização de sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história); de elipses (eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da história).
Quanto à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela sequência cronológica.
Espaço
A ação localiza-se num reino grande e rico « abundante em cidades e searas». , e decorre num palácio. Toda ação decorre nesse espaço, sendo que alguns recantos do palácio são sobrevalorizados por oposição a outros, por exemplo, a câmara onde o príncipe e o filho da escrava dormiam e a câmara dos tesouros.
No entanto, alguns espaços exteriores adquirem alguma importância. O espaço onde o rei é derrotado e consequentemente morto - o que vai deixar a rainha viúva, o filho órfão e o povo sem rei; O espaço que caracteriza o Tio Bastardo: « vivia num castelo, à maneira de um lobo, que entre a sua alcateia, espera a presa». Através desta apresentação, o leitor fica na expetativa do que irá acontecer, visto que ela é indicadora de confrontação e de tragédia (índice). ìndice este que é também determinante no clima que se vive no palácio, que denota temor e insegurança.
O espaço é descrito do geral para o particular, do exterior para o interior. Primeiramente, é-nos apresentado «um reino abundante em cidades e searas», onde se situa um palácio, habitado por um príncipe que fica órfão e que vai ser protegido no seu berço pela sua Aia. À medida que se desenrolam os acontecimentos, o espaço vai-se concentrando cada vez mais, (à volta do palácio / palácio /dentro do palácio), acabando a Aia por se suicidar na câmara dos tesouros:
No exterior, no alto, encontramos um «castelo sobre os montes», « o cimo das serras», povoado pelo tio bastardo e a sua horda, que vigiam a presa – o príncipe que vivia no palácio. Mais abaixo, «na planície, às portas da cidade» existe um palácio, onde a população e o príncipe estão desprotegidos e são presa fácil. No interior da «casa real» há uma câmara com um berço, um pátio, a galeria de mármore, a câmara dos tesouros, onde estão a rainha, a aia, o príncipe e o escravo.
Quanto ao espaço social temos a descrição de um ambiente da corte – palácio, rei, rainha, aias, guardas.»
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa - aspetos da sua obra
«Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.
Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.
Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu superar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.
Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.
Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.
Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bourgeois, um rumo autêntico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "intersecionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."
Com base nesses postulados - e nos demais, que seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligencia construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relatividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relatividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desintegração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.
Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.
Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relatividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.
Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heterónimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.
Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heterónimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:
Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê, / Nem ver quando se pensa".
Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."
Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".
Além desses heterónimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que considerar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lírico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.
Em qualquer hipótese, seja qual for o heterónimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estática em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.
Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no consagrar harmónico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.
Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".
Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.
Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em clichés, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.
Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.
Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
«Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.
Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.
Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu superar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.
Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.
Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.
Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bourgeois, um rumo autêntico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "intersecionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."
Com base nesses postulados - e nos demais, que seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligencia construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relatividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relatividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desintegração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.
Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.
Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relatividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.
Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heterónimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.
Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heterónimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:
Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê, / Nem ver quando se pensa".
Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."
Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".
Além desses heterónimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que considerar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lírico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.
Em qualquer hipótese, seja qual for o heterónimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estática em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.
Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no consagrar harmónico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.
Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".
Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.
Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em clichés, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.
Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.
Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Os Lusíadas // a Mensagem
D' Os Lusíadas à Mensagem
«Os poemas de Camões e de Fernando Pessoa sobre Portugal situam-se respectivamente no início e na fase terminal do longo processo de dissolução do império. Daí notáveis diferenças, a par de afinidades sensíveis. Ao gizar a Mensagem, não só Fernando Pessoa tinha Os Lusíadas no âmbito das suas referências culturais como nele desembocavam os rios subterrâneos duma Weltanschauung e duma mitologia colectivas vindas de Camões e do humanismo quinhentista.
Ambos se mostram impregnados duma concepção mística e missionária da História portuguesa (talvez seja melhor dizer missionante, para evitar equívocos). D. Sebastião, n'Os Lusíadas, é um enviado de Deus incumbido de alargar a Cristandade: «Vós, Ó novo temor da Mama lança, / Maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Para do mundo a Deus dar parte grande» (1,6).
Na Mensagem, Portugal é um instrumento de Deus, a História pátria obedece a um plano oculto, os heróis cumprem um destino que os ultrapassa: «Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal / A mão que ergueu o facho que luziu, / Foi Deus a alma e o corpo Portugal /Da mão que o conduziu».
Se, n'Os Lusíadas, o nosso país é «qual cume da cabeça / Da Europa», na Mensagem, em descrição semelhante, Portugal é o seu rosto, e a diferença reside na personificação da Europa, figura feminina, de «olhos negros», «românticos cabelos», o rosto apoiado na mão direita, atitude estática, pensativa. [...]
Tanto Camões como Pessoa, cantores da pátria, são poetas da ausência. Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser. Dum amor que ou se refugia na memória ou, revigorado, se traduz na vibração dum apelo. Mas as situações divergem, um intervalo multissecular tinha de separá-los.
No Camões épico predomina o elemento viril – a viagem, a aventura, o risco. Tradicionalmente, a mulher é a que fica, esperando, imóvel, na felicidade e no sonho do regresso: como Pessoa e as figuras em que se desdobra, de olhos fitos no indefinido. Homem de acção, e não só de inteligência, Camões ainda conheceu o império no concreto da sua grandeza e das suas misérias, era-lhe fácil ainda ter esperança, o D. Sebastião a quem se dirige é um jovem de carne e osso, vale a pena mostrar-se, exibir os seus préstimos, para que o Rei o distinga, confie nele, se lance na conquista do Norte de África levando-o consigo. Outro império terreno ainda parece possível, «como a pressaga mente vaticina», o próprio Velho do Restelo sanciona a aventura, e Camões prepara-se para cantar a nova empresa. O D. Sebastião da Mensagem, elaborado longa mente pelo sebastianismo e pela humilhação, esse é o Encoberto, o Desejado, uma sombra, um mito. [...]
Em Camões, põem-se no mesmo plano a memória e a esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a utopia, e daí uma concepção diferente de heroísmo. [...]
Se continuássemos à procura de pontos de contacto entre Camões e Fernando Pessoa, ainda poderíamos registar a sua capacidade e preocupação arquitectónicas. Jorge de Sena valorizou «o extraordinário equilíbrio construtivo que, em Os Lusíadas, encontramos, seja qual for o aspecto por que examinemos o poema». Por seu turno, os textos que compõem a Mensagem distribuem-se em grupos e subgrupos, obedecendo a um plano cuidadosamente estabelecido. Aqui a diferença está no facto de Os Lusíadas serem, pela forma, que não só pela substância, uma epopeia clássica, narração onde enlaçam a viagem de Vasco da Gama, a comédia dos deuses e a História de Portugal, mediante alternâncias e discursos dentro do discurso, uns retrospectivos, outros prospectivos, enquanto a Mensagem integra, como se sabe, 44 poesias breves, datadas de várias épocas e arrumadas em três partes principais: «Brasão», «Mar Português» e «O Encoberto». A primeira e a terceira partes ainda estão subdivididas: a primeira em «Os Campos», «Os Castelos» «As Quinas», «A Coroa» e «O Timbre», reproduzindo assim os elementos da bandeira nacional; a terceira os «Símbolos», «Os Avisos» e «Os Tempos». Da face interna, emblemática, desta arquitectura, aliás de sentido ocultista, [...] infere-se um carácter menos narrativo e mais interpretativo, mais cerebral, que o d'Os Lusíadas. [...]
[Pessoa] possui aquilo a que Cesare Pavese chamava «o senso heráldico», isto é, a faculdade de ver símbolos em tudo. Os heróis da galeria da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos, elos duma trajectória cujo sentido Pessoa se propõe desvelar até onde o permite o olhar visionário.
O assunto da Mensagem não é os portugueses ou eventos concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão por cumprir. Em fragmento recolhido nas Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Pessoa censurava a Os Lusíadas a falta dum pensamento. Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna, espectraliza as personagens da História nacional.
Tanto Camões como Pessoa usaram o processo da descrição sucessiva, fragmentária, de figuras-padrão. Nos discursos esta técnica verifica-se quer na «explicação» das bandeiras por Paulo da Gama perante o Catual, quer no relato da História de Portugal feito por Vasco da Gama destinado ao Rei de Melinde. Os retratos (por vezes auto-retratos) morais da Mensagem filiam-se no epigrama ou inscrição tumular dos clássicos. [...]
Em Camões, temos tão-só a descrição laudatória; em Pessoa, Viriato não é já um herói confinado no seu tempo, encarna um momento da vida duma nação, o momento da gestação latente; prefigura o que havia de vir, é o sinal dum plano que tinha de cumprir-se. O indivíduo apaga-se em favor do ente metafísico chamado Portugal. Os elementos descritivos e narrativos ficam obliterados.
Algo semelhante ocorre no tratamento doutra personagem: o Rei D. Dinis. Camões narra, em três oitavas, o que nós hoje aprendemos na escola: o seu reinado foi pacífico e próspero, fundou a Universidade, que depois transferiu para Coimbra, promulgou novas leis, reformou o país «Com edifícios grandes e altos muros» (III, 96-98). Falta qualquer alusão a ter mandado semear o pinhal de Leiria. Pelo contrário, na Mensagem é este o facto posto em relevo pelo seu valor simbólico: D. Dinis surge como «plantador de naus a haver»; encarna outro momento da História secreta de Portugal, é também o instrumento duma vontade transcendente, prepara de longe o Império, ouve, de noite, enquanto escreve um cantar, «o rumor dos pinhais que, como um trigo / De império, ondulam sem se poder ver».
Sem dúvida, na segunda parte da Mensagem, «Mar Português», perpassa um sopro épico, exalta-se o esforço heróico dos Portugueses no domínio dos mares, Pessoa dá, por vezes, a réplica a Os Lusíadas. «O Mostrengo», do mesmo modo que o Adamastor, opõe à hostilidade bravia da Natureza a energia indómita dos Portugueses: «Sou um povo que quer o mar que é teu» – diz ao Mostrengo o homem do leme. Na Mensagem retoma-se, embora noutro registo, o tópico da vantagem que levam os Portugueses aos navegadores da Antiguidade: «Que o mar com fim será grego ou romano; / O mar sem fim é português». E, como n' Os Lusíadas, não se esconde que o reverso da vitória é as lágrimas: a épica integra em claro-escuro a história trágico-marítima: a Mensagem é também um livro-síntese:
«Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!» Mas a perspectiva mudou. Austero, absorto, Pessoa não canta a expansão terrena, menos ainda a guerra contra os
Infiéis. Não é católica apostólica romana a sua inspiração. O emprego do singular Deus, com maiúscula, imposto pela matéria da obra, não vale mais, como prova de convicção pessoal, que o emprego do plural deuses em Ricardo Reis. A atitude típica dos heróis da Mensagem é contemplativa e expectante: olham o indefinido, concentram-se na febre do além que o poeta encarna nos versos admiráveis de «A Noite»: «Com fixos olhos rasos de ânsia / Fitando a proibida azul distância». Depressa esta atitude significa uma ânsia metafísica, a busca duma Índia que não há. A primeira grande missão cometida por Deus a Portugal, desvendar o mundo, chegou ao seu termo: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez» – diz Pessoa em «O Infante». Então qual o destino nacional que vem anunciar? Que sentido tem o verso «Senhor, falta cumprir-se Portugal»?
A inspiração da Mensagem, como foi lembrado, é ocultista, e o Império entrevisto no futuro uma aventura do espírito, viagem sem fronteiras ou limitações movida pelo amor do diverso e uma constante inquietação. Quando muito (a fala sibilina deixa supô-lo) um império da língua portuguesa, superior por natureza ao império terreno, «obscuro e carnal anterremedo» que o tempo destruiu. Na terceira parte do livro, o lema «Pax in excelsis» e a despedida, «Valete, Fratres», sugerem um projecto de fraternidade universal entre os homens. Talvez o que se aponta seja, na verdade, a utopia, e por isso o elogio do herói, ao contrário do que sucede n'Os Lusíadas, redunda no elogio da «loucura» – essa loucura de sinal positivo sem a qual o homem não passa de «besta sadia», essa loucura que nos salva da «metade de nada» em que viver é morrer.
Em contraste com o realismo d'Os Lusíadas (ou do que realista em Camões se pretende), a Mensagem reage pela altiva rejeição a um «real» oco, absurdo, intolerável, propondo-nos em seu lugar a única coisa que vale a pena: o imaginário. Quem não soube – ou não quis – entender a Mensagem ignorou esta diferença essencial; nem soube captar a ironia imanente no intertexto pessoano (compare-se o optimismo voluntário do poema, incluso na profecia, embora marginada pela dúvida, com o pessimismo total da «Elegia na Sombra», escrita uns seis meses depois da publicação do livro, precisamente em 2-VI-1935). Uma vez mais, o poeta se contra-disse, ou disse o que estava latente no não-dito. Resta saber até que ponto o imaginário é susceptível de transformar o leitor enquanto homem e «lusíada, coitado» e em que medida o projecto de Pessoa, vate, cantor de mitos, visava além do simples, conquanto nobre e apaixonado, divertimento estético. Porque esta é, em certa perspectiva, a dupla face de Pessoa.»
Jacinto do Prado Coelho, Camões e Pessoa,
Poetas da Utopia, Lisboa, Europa-América, 1983
«Os poemas de Camões e de Fernando Pessoa sobre Portugal situam-se respectivamente no início e na fase terminal do longo processo de dissolução do império. Daí notáveis diferenças, a par de afinidades sensíveis. Ao gizar a Mensagem, não só Fernando Pessoa tinha Os Lusíadas no âmbito das suas referências culturais como nele desembocavam os rios subterrâneos duma Weltanschauung e duma mitologia colectivas vindas de Camões e do humanismo quinhentista.
Ambos se mostram impregnados duma concepção mística e missionária da História portuguesa (talvez seja melhor dizer missionante, para evitar equívocos). D. Sebastião, n'Os Lusíadas, é um enviado de Deus incumbido de alargar a Cristandade: «Vós, Ó novo temor da Mama lança, / Maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Para do mundo a Deus dar parte grande» (1,6).
Na Mensagem, Portugal é um instrumento de Deus, a História pátria obedece a um plano oculto, os heróis cumprem um destino que os ultrapassa: «Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal / A mão que ergueu o facho que luziu, / Foi Deus a alma e o corpo Portugal /Da mão que o conduziu».
Se, n'Os Lusíadas, o nosso país é «qual cume da cabeça / Da Europa», na Mensagem, em descrição semelhante, Portugal é o seu rosto, e a diferença reside na personificação da Europa, figura feminina, de «olhos negros», «românticos cabelos», o rosto apoiado na mão direita, atitude estática, pensativa. [...]
Tanto Camões como Pessoa, cantores da pátria, são poetas da ausência. Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser. Dum amor que ou se refugia na memória ou, revigorado, se traduz na vibração dum apelo. Mas as situações divergem, um intervalo multissecular tinha de separá-los.
No Camões épico predomina o elemento viril – a viagem, a aventura, o risco. Tradicionalmente, a mulher é a que fica, esperando, imóvel, na felicidade e no sonho do regresso: como Pessoa e as figuras em que se desdobra, de olhos fitos no indefinido. Homem de acção, e não só de inteligência, Camões ainda conheceu o império no concreto da sua grandeza e das suas misérias, era-lhe fácil ainda ter esperança, o D. Sebastião a quem se dirige é um jovem de carne e osso, vale a pena mostrar-se, exibir os seus préstimos, para que o Rei o distinga, confie nele, se lance na conquista do Norte de África levando-o consigo. Outro império terreno ainda parece possível, «como a pressaga mente vaticina», o próprio Velho do Restelo sanciona a aventura, e Camões prepara-se para cantar a nova empresa. O D. Sebastião da Mensagem, elaborado longa mente pelo sebastianismo e pela humilhação, esse é o Encoberto, o Desejado, uma sombra, um mito. [...]
Em Camões, põem-se no mesmo plano a memória e a esperança. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a utopia, e daí uma concepção diferente de heroísmo. [...]
Se continuássemos à procura de pontos de contacto entre Camões e Fernando Pessoa, ainda poderíamos registar a sua capacidade e preocupação arquitectónicas. Jorge de Sena valorizou «o extraordinário equilíbrio construtivo que, em Os Lusíadas, encontramos, seja qual for o aspecto por que examinemos o poema». Por seu turno, os textos que compõem a Mensagem distribuem-se em grupos e subgrupos, obedecendo a um plano cuidadosamente estabelecido. Aqui a diferença está no facto de Os Lusíadas serem, pela forma, que não só pela substância, uma epopeia clássica, narração onde enlaçam a viagem de Vasco da Gama, a comédia dos deuses e a História de Portugal, mediante alternâncias e discursos dentro do discurso, uns retrospectivos, outros prospectivos, enquanto a Mensagem integra, como se sabe, 44 poesias breves, datadas de várias épocas e arrumadas em três partes principais: «Brasão», «Mar Português» e «O Encoberto». A primeira e a terceira partes ainda estão subdivididas: a primeira em «Os Campos», «Os Castelos» «As Quinas», «A Coroa» e «O Timbre», reproduzindo assim os elementos da bandeira nacional; a terceira os «Símbolos», «Os Avisos» e «Os Tempos». Da face interna, emblemática, desta arquitectura, aliás de sentido ocultista, [...] infere-se um carácter menos narrativo e mais interpretativo, mais cerebral, que o d'Os Lusíadas. [...]
[Pessoa] possui aquilo a que Cesare Pavese chamava «o senso heráldico», isto é, a faculdade de ver símbolos em tudo. Os heróis da galeria da Mensagem funcionam, com efeito, como símbolos, elos duma trajectória cujo sentido Pessoa se propõe desvelar até onde o permite o olhar visionário.
O assunto da Mensagem não é os portugueses ou eventos concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão por cumprir. Em fragmento recolhido nas Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Pessoa censurava a Os Lusíadas a falta dum pensamento. Pois na Mensagem é a redução a um pensamento que descarna, espectraliza as personagens da História nacional.
Tanto Camões como Pessoa usaram o processo da descrição sucessiva, fragmentária, de figuras-padrão. Nos discursos esta técnica verifica-se quer na «explicação» das bandeiras por Paulo da Gama perante o Catual, quer no relato da História de Portugal feito por Vasco da Gama destinado ao Rei de Melinde. Os retratos (por vezes auto-retratos) morais da Mensagem filiam-se no epigrama ou inscrição tumular dos clássicos. [...]
Em Camões, temos tão-só a descrição laudatória; em Pessoa, Viriato não é já um herói confinado no seu tempo, encarna um momento da vida duma nação, o momento da gestação latente; prefigura o que havia de vir, é o sinal dum plano que tinha de cumprir-se. O indivíduo apaga-se em favor do ente metafísico chamado Portugal. Os elementos descritivos e narrativos ficam obliterados.
Algo semelhante ocorre no tratamento doutra personagem: o Rei D. Dinis. Camões narra, em três oitavas, o que nós hoje aprendemos na escola: o seu reinado foi pacífico e próspero, fundou a Universidade, que depois transferiu para Coimbra, promulgou novas leis, reformou o país «Com edifícios grandes e altos muros» (III, 96-98). Falta qualquer alusão a ter mandado semear o pinhal de Leiria. Pelo contrário, na Mensagem é este o facto posto em relevo pelo seu valor simbólico: D. Dinis surge como «plantador de naus a haver»; encarna outro momento da História secreta de Portugal, é também o instrumento duma vontade transcendente, prepara de longe o Império, ouve, de noite, enquanto escreve um cantar, «o rumor dos pinhais que, como um trigo / De império, ondulam sem se poder ver».
Sem dúvida, na segunda parte da Mensagem, «Mar Português», perpassa um sopro épico, exalta-se o esforço heróico dos Portugueses no domínio dos mares, Pessoa dá, por vezes, a réplica a Os Lusíadas. «O Mostrengo», do mesmo modo que o Adamastor, opõe à hostilidade bravia da Natureza a energia indómita dos Portugueses: «Sou um povo que quer o mar que é teu» – diz ao Mostrengo o homem do leme. Na Mensagem retoma-se, embora noutro registo, o tópico da vantagem que levam os Portugueses aos navegadores da Antiguidade: «Que o mar com fim será grego ou romano; / O mar sem fim é português». E, como n' Os Lusíadas, não se esconde que o reverso da vitória é as lágrimas: a épica integra em claro-escuro a história trágico-marítima: a Mensagem é também um livro-síntese:
«Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!» Mas a perspectiva mudou. Austero, absorto, Pessoa não canta a expansão terrena, menos ainda a guerra contra os
Infiéis. Não é católica apostólica romana a sua inspiração. O emprego do singular Deus, com maiúscula, imposto pela matéria da obra, não vale mais, como prova de convicção pessoal, que o emprego do plural deuses em Ricardo Reis. A atitude típica dos heróis da Mensagem é contemplativa e expectante: olham o indefinido, concentram-se na febre do além que o poeta encarna nos versos admiráveis de «A Noite»: «Com fixos olhos rasos de ânsia / Fitando a proibida azul distância». Depressa esta atitude significa uma ânsia metafísica, a busca duma Índia que não há. A primeira grande missão cometida por Deus a Portugal, desvendar o mundo, chegou ao seu termo: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez» – diz Pessoa em «O Infante». Então qual o destino nacional que vem anunciar? Que sentido tem o verso «Senhor, falta cumprir-se Portugal»?
A inspiração da Mensagem, como foi lembrado, é ocultista, e o Império entrevisto no futuro uma aventura do espírito, viagem sem fronteiras ou limitações movida pelo amor do diverso e uma constante inquietação. Quando muito (a fala sibilina deixa supô-lo) um império da língua portuguesa, superior por natureza ao império terreno, «obscuro e carnal anterremedo» que o tempo destruiu. Na terceira parte do livro, o lema «Pax in excelsis» e a despedida, «Valete, Fratres», sugerem um projecto de fraternidade universal entre os homens. Talvez o que se aponta seja, na verdade, a utopia, e por isso o elogio do herói, ao contrário do que sucede n'Os Lusíadas, redunda no elogio da «loucura» – essa loucura de sinal positivo sem a qual o homem não passa de «besta sadia», essa loucura que nos salva da «metade de nada» em que viver é morrer.
Em contraste com o realismo d'Os Lusíadas (ou do que realista em Camões se pretende), a Mensagem reage pela altiva rejeição a um «real» oco, absurdo, intolerável, propondo-nos em seu lugar a única coisa que vale a pena: o imaginário. Quem não soube – ou não quis – entender a Mensagem ignorou esta diferença essencial; nem soube captar a ironia imanente no intertexto pessoano (compare-se o optimismo voluntário do poema, incluso na profecia, embora marginada pela dúvida, com o pessimismo total da «Elegia na Sombra», escrita uns seis meses depois da publicação do livro, precisamente em 2-VI-1935). Uma vez mais, o poeta se contra-disse, ou disse o que estava latente no não-dito. Resta saber até que ponto o imaginário é susceptível de transformar o leitor enquanto homem e «lusíada, coitado» e em que medida o projecto de Pessoa, vate, cantor de mitos, visava além do simples, conquanto nobre e apaixonado, divertimento estético. Porque esta é, em certa perspectiva, a dupla face de Pessoa.»
Jacinto do Prado Coelho, Camões e Pessoa,
Poetas da Utopia, Lisboa, Europa-América, 1983
Memorial do Convento - apontamentos
Estrutura do Memorial do Convento
Estrutura externa
A obra é composta por 25 capítulos
Para além da sua divisão em capítulos, da obra destacam-se ainda 3 planos:
Plano da história
Portugal no século XVIII
Reinado de D. João V
Construção do Convento
Inquisição, autos de fé, casamento dos infantes
Plano da ficção da História
O narrador molda as personagens históricas, transformando-as
D. João e D. Ana caricaturados
Plano do fantástico
Construção da Passarola
Dom de Blimunda
⇒ Romance histórico - oferece uma descrição minuciosa da sociedade portuguesa da época.
Nesta obra, o ponto de vista do narrador altera o ponto de vista histórico e, como tal, a classificação de Memorial do convento como romance histórico não é consensual.
⇒ Romance social - preocupa-se com a realidade social fazendo sobressair o povo oprimido.
⇒ Romance de intervenção - visa denunciar a história repressiva portuguesa da 1ªmetade do século XX.
⇒ Romance de espaço - traduz não só o ambiente histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano.
..............................
O narrador em Memorial do Convento
Homodiegético
Fala na 1ªpessoa, dialoga com outras personagens
Ex : o fidalgo do cortejo do casamento dos príncipes (que explica a João Elvas o que se vai passando) e Manuel Milho
Heterodiegético
Está fora da história que narra
Fala na 3ª pessoa
Descreve, sentencia, profetiza
⇒ Em Memorial do Convento, o narrador conta a história com apartes e comentários:
com uma voz distanciada e impessoal
com uma voz intemporal, comentando os acontecimentos do passado à luz do presente
apresentando marcas da oralidade
como se estivesse dentro e fora das personagens (omnisciente)
.............................
Estilo e linguagem no Memorial do Convento
Discurso
tom coloquial e dialogante
marcas da oralidade
frases parentéticas e apartes
diálogos e monólogos
predomínio do presente e do futuro, em detrimento das frases no pretérito como é comum na narrativa
presença de discurso argumentativo e reflexivo
Recursos estilísticos
trocadilhos e ironia
adjetivação
hiperbole
metáfora
onomatopeia
enumeração
visualismo - o narrador guia o nosso olhar através de expressões como : "primeiro", "último" , " ou/ou" e enumerações
hipálage
anacronismo - faz a ligação entre o tempo da narração e o futuro através de comentários
.......................
A ação em Memorial do Convento
A obra Memorial do Convento divide-se em 4 linhas de ação (linhas estas anunciadas no paratexto da contra capa com " Era uma vez...".
Assim temos:
1. " Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um Convento em Mafra."
• A promessa
- Rei D. João (1689 - 1750) ordena a construcção do Convento que se inicia após o nascimento da princesa Maria Barbara, em cumprimento da promessa.
2. " Era uma vez a gente que construiu esse Convento. "
• " A gente "
- povo anómimo
- personagem coletiva que trabalha e sofre às mãos do rei
- hulmide e trabalhador o povo, que constrói o Convento, é enaltecido pelo narrador, que tenta individualizá-lo.
3. " Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. "
• Baltazar Mateus
- perdeu a mão esquerda trespassada por uma bala na Guerra da Sucessão Espanhola
- conhece Blimunda num auto-de fé no Rossio
- participa na construção da Passarola
- trabalha na construção do Convento
• Blimunda
- partilha com Baltazar um amor espontâneo, verdadeiro
- é vidente, em jejum consegue olhar por dentro das pessoas e das coisas
- recolhe as "vontades" que fazem voar a Passarola
4. " Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido."
• Padre Bartolomeu
- orienta Baltazar e Blimunda na construção da Passarola
- realiza o seu sonho, voando na Passarola
- é perseguido pelo Santo Oficio
- morre louco em Toledo
⇒ o último "Era uma vez" da contracapa abre a porta a todas as possíveis interpretações dos leitores.
..........................
As personagens em Memorial do Convento
Rei D. João V
Rei vaidoso, egocêntrico, megalómano e libertino
Rico e poderoso - não sabe o que fazer com tanta riqueza
Arrogante - a vontade do rei é divina
Tem " medo de morrer"
É ridicularizado pelo narrador que recorre à caricatura e ao tom irónico na sua descrição
Baltazar
Homem do povo nascido em Mafra
Não tem a mão esquerda
Tem a alcunha de Sete Sóis
Apaixonado por Blimunda
Sonhador, constrói a Passarola
Morre queimado num auto-de fé (54 anos)
Blimunda
Mulher misteriosa, fiel, intuitiva e inabalável no amor
Possui o dom da vidência, vê o interior dos corpos
Tem a alcunha de Sete Luas
Tem uma sabedoria muito própria, é inteligente
Padre Bartolomeu de Gusmão
Sonhador, visionário e culto
Capelão na corte e amigo de D. João V
Nascido no Brasil
Possui uma visão muito própria da religião pois:
- abençoa a relação de Baltazar e Blimunda
- aceita o dom de Blimunda
- é muito ligado à ciência
Possui um espírito cientifico que o vai afastando da igreja progressivamente
O seu conhecimento e estudos levam-no a interrogar-se acerca dos dogmas católicos
Tem medo da Inquisição, pois está consciente de que fez coisas condenadas pelo Santo Oficio como, a construção da Passarola
Morre louco em Toledo
Domenico Scarlatti
Músico italiano, nascido em Nápoles
Talentoso, culto e sonhador
Professor de D. Maria Bárbara
Trava amizade com o Padre Bartolomeu na corte do rei
Tem conhecimento da existência da Passarola e interessa-se pelo engenho
A sua música possui um poder curativo e inebriante
O povo
Populares anónimos, analfabetos e oprimidos
Trabalhadores humildes
Sacrificados e sujeitos à exploração dos poderosos
Elevados a herói pelo narrador
.......................
O amor em Memorial do Convento
Baltazar e Blimunda - casal transgressor dos códigos oficiais e sociais
integração mútua e perfeita
partilham o amor sem limites
não procriam - entregam-se um ao outro por amor, não olhando a limites, lugares ou datas
o silêncio é o canal de comunicação - amor intuitivo, natural
entendem-se através do olhar
Conhecem-se a 26 de Junho de 1711
Baltazar morre e 18 de Outubro de 1739 ⇒ 28 anos sem que o seu amor enfraquecesse
Rei e rainha
casamento de conveniência, sem amor
obrigações, datas marcadas
traições do rei
⇒ Ao longo do romance, o narrador opõe a vivência amorosa destes 2 casais: Blimunda e Baltazar e D. João com D. Maria Ana. As diferenças entre ambos são evidentes e tornam-se ainda mais acentuadas com a caricatura e tom irónico usado pelo narrador na descrição do casal real.
Enquanto Baltazar e Blimunda partilham um amor perfeito, entregando-se um ao outro sem olhar a datas ou lugares, o rei e a rainha encontram-se unidos por um casamento de conveniência que tem como objetivo a obtenção de herdeiros para a coroa portuguesa. Na relação dos monarcas tudo é assumido como um compromisso e, até as relações sexuais, são para o rei uma obrigação que ele cumpre em datas previamente definidas.
Outro aspeto que distingue os dois casais é a fidelidade. O facto de Baltazar apenas se dar a Blimunda opõe-se às constantes traições praticadas por D. João V.
Estrutura externa
A obra é composta por 25 capítulos
Para além da sua divisão em capítulos, da obra destacam-se ainda 3 planos:
Plano da história
Portugal no século XVIII
Reinado de D. João V
Construção do Convento
Inquisição, autos de fé, casamento dos infantes
Plano da ficção da História
O narrador molda as personagens históricas, transformando-as
D. João e D. Ana caricaturados
Plano do fantástico
Construção da Passarola
Dom de Blimunda
⇒ Romance histórico - oferece uma descrição minuciosa da sociedade portuguesa da época.
Nesta obra, o ponto de vista do narrador altera o ponto de vista histórico e, como tal, a classificação de Memorial do convento como romance histórico não é consensual.
⇒ Romance social - preocupa-se com a realidade social fazendo sobressair o povo oprimido.
⇒ Romance de intervenção - visa denunciar a história repressiva portuguesa da 1ªmetade do século XX.
⇒ Romance de espaço - traduz não só o ambiente histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano.
..............................
O narrador em Memorial do Convento
Homodiegético
Fala na 1ªpessoa, dialoga com outras personagens
Ex : o fidalgo do cortejo do casamento dos príncipes (que explica a João Elvas o que se vai passando) e Manuel Milho
Heterodiegético
Está fora da história que narra
Fala na 3ª pessoa
Descreve, sentencia, profetiza
⇒ Em Memorial do Convento, o narrador conta a história com apartes e comentários:
com uma voz distanciada e impessoal
com uma voz intemporal, comentando os acontecimentos do passado à luz do presente
apresentando marcas da oralidade
como se estivesse dentro e fora das personagens (omnisciente)
.............................
Estilo e linguagem no Memorial do Convento
Discurso
tom coloquial e dialogante
marcas da oralidade
frases parentéticas e apartes
diálogos e monólogos
predomínio do presente e do futuro, em detrimento das frases no pretérito como é comum na narrativa
presença de discurso argumentativo e reflexivo
Recursos estilísticos
trocadilhos e ironia
adjetivação
hiperbole
metáfora
onomatopeia
enumeração
visualismo - o narrador guia o nosso olhar através de expressões como : "primeiro", "último" , " ou/ou" e enumerações
hipálage
anacronismo - faz a ligação entre o tempo da narração e o futuro através de comentários
.......................
A ação em Memorial do Convento
A obra Memorial do Convento divide-se em 4 linhas de ação (linhas estas anunciadas no paratexto da contra capa com " Era uma vez...".
Assim temos:
1. " Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um Convento em Mafra."
• A promessa
- Rei D. João (1689 - 1750) ordena a construcção do Convento que se inicia após o nascimento da princesa Maria Barbara, em cumprimento da promessa.
2. " Era uma vez a gente que construiu esse Convento. "
• " A gente "
- povo anómimo
- personagem coletiva que trabalha e sofre às mãos do rei
- hulmide e trabalhador o povo, que constrói o Convento, é enaltecido pelo narrador, que tenta individualizá-lo.
3. " Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. "
• Baltazar Mateus
- perdeu a mão esquerda trespassada por uma bala na Guerra da Sucessão Espanhola
- conhece Blimunda num auto-de fé no Rossio
- participa na construção da Passarola
- trabalha na construção do Convento
• Blimunda
- partilha com Baltazar um amor espontâneo, verdadeiro
- é vidente, em jejum consegue olhar por dentro das pessoas e das coisas
- recolhe as "vontades" que fazem voar a Passarola
4. " Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido."
• Padre Bartolomeu
- orienta Baltazar e Blimunda na construção da Passarola
- realiza o seu sonho, voando na Passarola
- é perseguido pelo Santo Oficio
- morre louco em Toledo
⇒ o último "Era uma vez" da contracapa abre a porta a todas as possíveis interpretações dos leitores.
..........................
As personagens em Memorial do Convento
Rei D. João V
Rei vaidoso, egocêntrico, megalómano e libertino
Rico e poderoso - não sabe o que fazer com tanta riqueza
Arrogante - a vontade do rei é divina
Tem " medo de morrer"
É ridicularizado pelo narrador que recorre à caricatura e ao tom irónico na sua descrição
Baltazar
Homem do povo nascido em Mafra
Não tem a mão esquerda
Tem a alcunha de Sete Sóis
Apaixonado por Blimunda
Sonhador, constrói a Passarola
Morre queimado num auto-de fé (54 anos)
Blimunda
Mulher misteriosa, fiel, intuitiva e inabalável no amor
Possui o dom da vidência, vê o interior dos corpos
Tem a alcunha de Sete Luas
Tem uma sabedoria muito própria, é inteligente
Padre Bartolomeu de Gusmão
Sonhador, visionário e culto
Capelão na corte e amigo de D. João V
Nascido no Brasil
Possui uma visão muito própria da religião pois:
- abençoa a relação de Baltazar e Blimunda
- aceita o dom de Blimunda
- é muito ligado à ciência
Possui um espírito cientifico que o vai afastando da igreja progressivamente
O seu conhecimento e estudos levam-no a interrogar-se acerca dos dogmas católicos
Tem medo da Inquisição, pois está consciente de que fez coisas condenadas pelo Santo Oficio como, a construção da Passarola
Morre louco em Toledo
Domenico Scarlatti
Músico italiano, nascido em Nápoles
Talentoso, culto e sonhador
Professor de D. Maria Bárbara
Trava amizade com o Padre Bartolomeu na corte do rei
Tem conhecimento da existência da Passarola e interessa-se pelo engenho
A sua música possui um poder curativo e inebriante
O povo
Populares anónimos, analfabetos e oprimidos
Trabalhadores humildes
Sacrificados e sujeitos à exploração dos poderosos
Elevados a herói pelo narrador
.......................
O amor em Memorial do Convento
Baltazar e Blimunda - casal transgressor dos códigos oficiais e sociais
integração mútua e perfeita
partilham o amor sem limites
não procriam - entregam-se um ao outro por amor, não olhando a limites, lugares ou datas
o silêncio é o canal de comunicação - amor intuitivo, natural
entendem-se através do olhar
Conhecem-se a 26 de Junho de 1711
Baltazar morre e 18 de Outubro de 1739 ⇒ 28 anos sem que o seu amor enfraquecesse
Rei e rainha
casamento de conveniência, sem amor
obrigações, datas marcadas
traições do rei
⇒ Ao longo do romance, o narrador opõe a vivência amorosa destes 2 casais: Blimunda e Baltazar e D. João com D. Maria Ana. As diferenças entre ambos são evidentes e tornam-se ainda mais acentuadas com a caricatura e tom irónico usado pelo narrador na descrição do casal real.
Enquanto Baltazar e Blimunda partilham um amor perfeito, entregando-se um ao outro sem olhar a datas ou lugares, o rei e a rainha encontram-se unidos por um casamento de conveniência que tem como objetivo a obtenção de herdeiros para a coroa portuguesa. Na relação dos monarcas tudo é assumido como um compromisso e, até as relações sexuais, são para o rei uma obrigação que ele cumpre em datas previamente definidas.
Outro aspeto que distingue os dois casais é a fidelidade. O facto de Baltazar apenas se dar a Blimunda opõe-se às constantes traições praticadas por D. João V.
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
A arquitectura d' Os Maias
Em esquema, a arquitectura d'Os Maias poderia, portanto, representar-se assim:
A arquitectura d'Os Maias
Chave:
1 - Introdução (5 pp.): marco inicial da acção; o Ramalhete; Afonso.
2 - Preparação (cerca de 85 pp.):
* a) juventude de Afonso;
* b) infância de Pedro;
* c) juventude, amores e suicídio de Pedro;
* d) infância e educação de Carlos;
* e) Carlos estudante em Coimbra;
* f) primeira viagem de Carlos
3 - Acção (cerca de 590 pp.).
4 - Epílogo (cerca de 27 pp.):
* a) viagem de Carlos e do Ega (1877-78);
* b) cenas da estada de Carlos em Lisboa, oito anos depois (1887).
Setas ascendentes: indicam a cronologia do narrado.
Curvas a tracejado: indicam (de modo impreciso) analepses completivas e repetitivas, ou sejam, respectivamente, de acordo com Gérard Genette, «segmentos retrospectivos que vêm preencher lacunas anteriores da narrativa» e «alusões da narrativa ao seu próprio passado». Nestas últimas, evocam-se em atitude nostálgica, reflexiva, figuras ou situações já conhecidas não só das personagens como do leitor.
Nas suas três partes fundamentais, o romance está organizado, como se vê, em torno da acção, para servir a acção, que é, tomado à letra, um caso individual (a paixão de Carlos pela irmã); e a acção, que é a parte central, constitui mais de quatro quintos do texto. Só secundariamente, portanto, serão Os Maias um roman fleuve; o autor teve entretanto a ambição de enquadrar o caso de Carlos (na sua dupla face: alvo dum destino caprichoso e cruel; membro típico duma sociedade à deriva) num conjunto mais vasto, surpreendido na sua dimensão histórica: o Portugal do século XIX, o Portugal romântico.
Jacinto do Prado Coelho, «Para a compreensão d'Os Maias, como um todo orgânico»,
em Ao contrário de Penélope, Amadora, Bertrand, 1976, pp. 169-170.
A arquitectura d'Os Maias
Chave:
1 - Introdução (5 pp.): marco inicial da acção; o Ramalhete; Afonso.
2 - Preparação (cerca de 85 pp.):
* a) juventude de Afonso;
* b) infância de Pedro;
* c) juventude, amores e suicídio de Pedro;
* d) infância e educação de Carlos;
* e) Carlos estudante em Coimbra;
* f) primeira viagem de Carlos
3 - Acção (cerca de 590 pp.).
4 - Epílogo (cerca de 27 pp.):
* a) viagem de Carlos e do Ega (1877-78);
* b) cenas da estada de Carlos em Lisboa, oito anos depois (1887).
Setas ascendentes: indicam a cronologia do narrado.
Curvas a tracejado: indicam (de modo impreciso) analepses completivas e repetitivas, ou sejam, respectivamente, de acordo com Gérard Genette, «segmentos retrospectivos que vêm preencher lacunas anteriores da narrativa» e «alusões da narrativa ao seu próprio passado». Nestas últimas, evocam-se em atitude nostálgica, reflexiva, figuras ou situações já conhecidas não só das personagens como do leitor.
Nas suas três partes fundamentais, o romance está organizado, como se vê, em torno da acção, para servir a acção, que é, tomado à letra, um caso individual (a paixão de Carlos pela irmã); e a acção, que é a parte central, constitui mais de quatro quintos do texto. Só secundariamente, portanto, serão Os Maias um roman fleuve; o autor teve entretanto a ambição de enquadrar o caso de Carlos (na sua dupla face: alvo dum destino caprichoso e cruel; membro típico duma sociedade à deriva) num conjunto mais vasto, surpreendido na sua dimensão histórica: o Portugal do século XIX, o Portugal romântico.
Jacinto do Prado Coelho, «Para a compreensão d'Os Maias, como um todo orgânico»,
em Ao contrário de Penélope, Amadora, Bertrand, 1976, pp. 169-170.
Portugal no tempo de «Os Maias»
Portugal no tempo de «Os Maias»
Os Vencidos da Vida
É muito importante, para a interpretação ideológica das correntes literárias que vão suceder no segundo romantismo análise do conteúdo político e doutrinário das facções que se envolveram na guerra civil de 1847. A derrota do setembrismo explica a dissolução da mensagem progressista da pequena burguesia; que tivera os seus representantes máximos em Garrett e Herculano.
(...) A Regeneração (que chegou a iludir Herculano, Garrett e José Estêvão) dilui as energias da burguesia descontente na espera pacífica da lenta evolução das estruturas económicas, na promessa demagógica duma nova era de fomento, de "bem-estar para todos". No plano nacional, a Regeneração inicia uma situação ambígua, ao mesmo tempo que consolida e legaliza a corrupção administrativa e empreende a sofisticação dos ideais de 1789. Perdido (ou recolhido à toca da subjectividade) o idealismo dos heróis do Mindelo, transformada a classe média em clientela de súbditos subservientes, iniciados nos clãs dos compadres, à babugem dos restos palacianos de barões com vela acesa no paço e no governo, ordenada para buzinar na charanga de bacharéis, comerciantes, agrários, industriais especuladores, financeiros e funcionários superiores da administração, fica em campo uma classe nova, activa e empreendedora: operariado. Classe que é uma ilha no meio de uma nação esmagadoramente agrária, fortemente vinculada a uma economia de sobrevivências feudais.
O partido ordeiro, onde se recrutam os intelectuais que exploram o sentimentalismo barato do segundo romantismo, substitui praticamente as formações políticas da esquerda burguesa.
(...) Aos escritores ordeiros serão oferecidas oportunidades ordeiras: excelentes empregos nas secretarias do Estado, nas cadeiras do Parlamento, nas Embaixadas, nas Academias, no topo dos Ministérios... O regime parlamentar torna-se um mero ' aparato de discursos magros de ideias ou de habilidosos jogos de palavras. Os senhores deputados, divididos em dois grandes partidos constitucionais, ignorarão comodamente os factos. Recrutados, como esclarece Teófilo Braga, entre "doutores, engenheiros, professores e bacharéis, pois são esses que melhor sabem esgrimir com os vocábulos da língua e embair a representação nacional com banalidades campanudas", contribuem para a centralização política e administrativa depondo nos punhos da autoridade a discussão e resolução dos problemas que deveriam ser tratados pelas comunidades produtoras ou no seio das autarquias municipais.
(...) A Regeneração foi a fórmula política mais eficaz para, sob o aparato o legalidade constitucional, iludir a vontade geral que a burguesia vintista procurara ingenuamente implantar representação parlamentar.
(...) Os homens que sustentaram, tanto no plano da cultura como no plano social, o constitucionalismo foram os responsáveis da versatilidade artística, da anarquia moral, da carência de convicções profundas e divagação intelectual que, no seu conjunto, caracterizam a arte e a literatura que os jovens de Coimbra irão castigar na famosa polémica do Bom Senso e Bom Gosto.
Instalara-se a pedantocracia na sociedade portuguesa. Em breve triunfa a mediocridade: os literatos da "ordem asnática" no sarcástico dizer de Garrett, disfarçam a ausência de ideias com a retórica clássica, num zelo linguístico sem função reflexiva, num jornalismo fácil, mimando grotescamente o antigo ideal iluminista, ou em efusões líricas sem energia moral nem fundamento filosófico. Coloca-se a carreira literária acima das convicções e o artista requer comendas, títulos, lugares.
Alberto Ferreira, Perspectiva do Romantismo Português.
Os Vencidos da Vida
É muito importante, para a interpretação ideológica das correntes literárias que vão suceder no segundo romantismo análise do conteúdo político e doutrinário das facções que se envolveram na guerra civil de 1847. A derrota do setembrismo explica a dissolução da mensagem progressista da pequena burguesia; que tivera os seus representantes máximos em Garrett e Herculano.
(...) A Regeneração (que chegou a iludir Herculano, Garrett e José Estêvão) dilui as energias da burguesia descontente na espera pacífica da lenta evolução das estruturas económicas, na promessa demagógica duma nova era de fomento, de "bem-estar para todos". No plano nacional, a Regeneração inicia uma situação ambígua, ao mesmo tempo que consolida e legaliza a corrupção administrativa e empreende a sofisticação dos ideais de 1789. Perdido (ou recolhido à toca da subjectividade) o idealismo dos heróis do Mindelo, transformada a classe média em clientela de súbditos subservientes, iniciados nos clãs dos compadres, à babugem dos restos palacianos de barões com vela acesa no paço e no governo, ordenada para buzinar na charanga de bacharéis, comerciantes, agrários, industriais especuladores, financeiros e funcionários superiores da administração, fica em campo uma classe nova, activa e empreendedora: operariado. Classe que é uma ilha no meio de uma nação esmagadoramente agrária, fortemente vinculada a uma economia de sobrevivências feudais.
O partido ordeiro, onde se recrutam os intelectuais que exploram o sentimentalismo barato do segundo romantismo, substitui praticamente as formações políticas da esquerda burguesa.
(...) Aos escritores ordeiros serão oferecidas oportunidades ordeiras: excelentes empregos nas secretarias do Estado, nas cadeiras do Parlamento, nas Embaixadas, nas Academias, no topo dos Ministérios... O regime parlamentar torna-se um mero ' aparato de discursos magros de ideias ou de habilidosos jogos de palavras. Os senhores deputados, divididos em dois grandes partidos constitucionais, ignorarão comodamente os factos. Recrutados, como esclarece Teófilo Braga, entre "doutores, engenheiros, professores e bacharéis, pois são esses que melhor sabem esgrimir com os vocábulos da língua e embair a representação nacional com banalidades campanudas", contribuem para a centralização política e administrativa depondo nos punhos da autoridade a discussão e resolução dos problemas que deveriam ser tratados pelas comunidades produtoras ou no seio das autarquias municipais.
(...) A Regeneração foi a fórmula política mais eficaz para, sob o aparato o legalidade constitucional, iludir a vontade geral que a burguesia vintista procurara ingenuamente implantar representação parlamentar.
(...) Os homens que sustentaram, tanto no plano da cultura como no plano social, o constitucionalismo foram os responsáveis da versatilidade artística, da anarquia moral, da carência de convicções profundas e divagação intelectual que, no seu conjunto, caracterizam a arte e a literatura que os jovens de Coimbra irão castigar na famosa polémica do Bom Senso e Bom Gosto.
Instalara-se a pedantocracia na sociedade portuguesa. Em breve triunfa a mediocridade: os literatos da "ordem asnática" no sarcástico dizer de Garrett, disfarçam a ausência de ideias com a retórica clássica, num zelo linguístico sem função reflexiva, num jornalismo fácil, mimando grotescamente o antigo ideal iluminista, ou em efusões líricas sem energia moral nem fundamento filosófico. Coloca-se a carreira literária acima das convicções e o artista requer comendas, títulos, lugares.
Alberto Ferreira, Perspectiva do Romantismo Português.
O Romance (a propósito de Os Maias)
Classificação do romance
Embora à primeira vista o pareça, não podemos considerar Os Maias propriamente aquilo que se chama um «romance de família». O «romance de família» estuda a evolução de sucessivas gerações ligadas pelos laços do sangue (Les Rougon-Macquart de Zola, Os Buddenbrook de Thomas Mann). Ora n'Os Maias a geração de Afonso e a de Pedro são abordadas muito superficialmente e só tanto quanto é preciso para justificar a razão de ser de Carlos, personagem central da obra a partir do capítulo 3º.
Parece-nos que devemos classificar Os Maias como um romance de acção, pois nele o romanesco intervém em larga escala, Eça não explorou em profundidade o realismo científico, monográfico, estudando um vício, uma paixão; preferiu inventar enredos, criar dramas, comédias até, mostrando os caracteres de modo indirecto através da acção.
Pela sua complexidade, a obra tem sido também considerada um romance polifónico ou, como dizem os franceses, um roman-fleuve. A multiplicidade de personagens e episódios convergem de todos os lados a agrupar-se num conjunto orgânico: o ambiente da Lisboa romântica da segunda metade do século XIX, onde os Maias, educados ou à portuguesa ou à inglesa, acabam por falhar, como que arrastados por uma fatalidade contra a qual não têm coragem de reagir.
Será a obra Os Maias um romance naturalista, realista mesmo no sentido rigoroso do termo?
É inegável que o realismo está ali bem patente sobretudo no envolvimento social das personagens, desde a educação que receberam até ao condicionamento criado à sua volta pelo putrefacto meio lisboeta que as sufoca. Mas o rigor científico de análise próprio do Naturalismo está ausente. De pequena projecção, sob o aspecto naturalista, são: uma ou outra alusão à hereditariedade (no cap. 1º, Afonso preocupado com o comportamento anormal de Pedro principalmente por ver que se parece com um avô materno, de quem havia um retrato em Benfica, que enlouquecera «e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira»; no mesmo capítulo, a insistência na má raça dos progenitores de Maria Monforte); o apontamento da inclinação inata do pequeno Carlos para a medicina (no cap. 4º, diz-se que o menino descobrira no sótão um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas, que passara dias a recortá-las, «pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil com o recheio à mostra»);o elogio da escola naturalista feito expressamente pelo narrador no capítulo 6º e por Ega no capítulo 12º.
O que dissemos no início do parágrafo anterior tem uma explicação. Quando Eça redigia Os Maias, já muita gente contestava o Positivismo, o Determinismo, a confiança fanática no Cientismo. Daí o descobrirmos no romance um claro desvio das técnicas naturalistas e até umas pinceladas retintas de feição simbólica (predominantes já n'O Mandarim, livro publicado oito anos antes d'Os Maias). Tais pinceladas podem ver-se, por exemplo:
1. Dâmaso, em casa de Maria Eduarda, concitando o ódio e o mal-estar da cadelinha Niniche, que lhe ladra raivosamente, enquanto se mostra regalada nos joelhos de Carlos (cap, 11º);
2. A «horrível cabeça» de S. João Baptista, decapitado por condenar um incesto, a sangrar numa tela do quarto de dormir da Toca, «painel antigo... onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida gelada, dentro de um prato de cobre»; e ainda outro objecto que decorava o mesmo quarto: «de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor... os seus dois olhos redondos e agoirentos» (cap. 13º);
3. O ambiente que envolveu a morte do velho Afonso: «em volta, nas folhas das camélias nas áleas areadas, refulgia, cor de ouro, o sol fino de Inverno. Por entre as conchas da cascata, o fio de água punha o seu choro lento» (cap. 17º).
Do que aqui fica exposto parece poder deduzir-se que a obra Os Maias nos apresenta, consoante as voltas que lhe dermos, aspectos realistas, naturalistas e simbólicos.
António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa
Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio: a cena no jornal A Tarde; e, sobretudo, o sarau literário. Basta ler isso, e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa.
Eça de Queirós, Obras Completas, vol. XIII, Lello & Irmão – Editores, Porto, 1948.
Os Maias, romance fundamental, representa de certo modo a plenitude do período realista da ficção portuguesa, mas ao mesmo tempo ultrapassa o processo realista pela complexidade das personagens e da própria estrutura do romance. De facto, se este romance é, aparentemente, sobretudo a história de uma família da aristocracia portuguesa em decadência, crónica social, cultural e política do fim-do-século lisboeta, ele é muito para além disso a história trágica de um incesto. E um incesto que, não obstante as suas aparências romanescas, tem raízes mais fundas na obscura, desesperada procura do ideal feminino por parte de um diletante do pensamento e do sentimento, Carlos da Maia. Paralelamente, Os Maias é sem dúvida o romance de toda uma geração, a Geração de 70 tornada a geração dos Vencidos da Vida.
Boletim Informativo da Fundação Calouste Gulbenkian, nº2, série V, 1979.
Embora à primeira vista o pareça, não podemos considerar Os Maias propriamente aquilo que se chama um «romance de família». O «romance de família» estuda a evolução de sucessivas gerações ligadas pelos laços do sangue (Les Rougon-Macquart de Zola, Os Buddenbrook de Thomas Mann). Ora n'Os Maias a geração de Afonso e a de Pedro são abordadas muito superficialmente e só tanto quanto é preciso para justificar a razão de ser de Carlos, personagem central da obra a partir do capítulo 3º.
Parece-nos que devemos classificar Os Maias como um romance de acção, pois nele o romanesco intervém em larga escala, Eça não explorou em profundidade o realismo científico, monográfico, estudando um vício, uma paixão; preferiu inventar enredos, criar dramas, comédias até, mostrando os caracteres de modo indirecto através da acção.
Pela sua complexidade, a obra tem sido também considerada um romance polifónico ou, como dizem os franceses, um roman-fleuve. A multiplicidade de personagens e episódios convergem de todos os lados a agrupar-se num conjunto orgânico: o ambiente da Lisboa romântica da segunda metade do século XIX, onde os Maias, educados ou à portuguesa ou à inglesa, acabam por falhar, como que arrastados por uma fatalidade contra a qual não têm coragem de reagir.
Será a obra Os Maias um romance naturalista, realista mesmo no sentido rigoroso do termo?
É inegável que o realismo está ali bem patente sobretudo no envolvimento social das personagens, desde a educação que receberam até ao condicionamento criado à sua volta pelo putrefacto meio lisboeta que as sufoca. Mas o rigor científico de análise próprio do Naturalismo está ausente. De pequena projecção, sob o aspecto naturalista, são: uma ou outra alusão à hereditariedade (no cap. 1º, Afonso preocupado com o comportamento anormal de Pedro principalmente por ver que se parece com um avô materno, de quem havia um retrato em Benfica, que enlouquecera «e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira»; no mesmo capítulo, a insistência na má raça dos progenitores de Maria Monforte); o apontamento da inclinação inata do pequeno Carlos para a medicina (no cap. 4º, diz-se que o menino descobrira no sótão um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas, que passara dias a recortá-las, «pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil com o recheio à mostra»);o elogio da escola naturalista feito expressamente pelo narrador no capítulo 6º e por Ega no capítulo 12º.
O que dissemos no início do parágrafo anterior tem uma explicação. Quando Eça redigia Os Maias, já muita gente contestava o Positivismo, o Determinismo, a confiança fanática no Cientismo. Daí o descobrirmos no romance um claro desvio das técnicas naturalistas e até umas pinceladas retintas de feição simbólica (predominantes já n'O Mandarim, livro publicado oito anos antes d'Os Maias). Tais pinceladas podem ver-se, por exemplo:
1. Dâmaso, em casa de Maria Eduarda, concitando o ódio e o mal-estar da cadelinha Niniche, que lhe ladra raivosamente, enquanto se mostra regalada nos joelhos de Carlos (cap, 11º);
2. A «horrível cabeça» de S. João Baptista, decapitado por condenar um incesto, a sangrar numa tela do quarto de dormir da Toca, «painel antigo... onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, lívida gelada, dentro de um prato de cobre»; e ainda outro objecto que decorava o mesmo quarto: «de cima de uma coluna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito de amor... os seus dois olhos redondos e agoirentos» (cap. 13º);
3. O ambiente que envolveu a morte do velho Afonso: «em volta, nas folhas das camélias nas áleas areadas, refulgia, cor de ouro, o sol fino de Inverno. Por entre as conchas da cascata, o fio de água punha o seu choro lento» (cap. 17º).
Do que aqui fica exposto parece poder deduzir-se que a obra Os Maias nos apresenta, consoante as voltas que lhe dermos, aspectos realistas, naturalistas e simbólicos.
António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa
Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio: a cena no jornal A Tarde; e, sobretudo, o sarau literário. Basta ler isso, e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa.
Eça de Queirós, Obras Completas, vol. XIII, Lello & Irmão – Editores, Porto, 1948.
Os Maias, romance fundamental, representa de certo modo a plenitude do período realista da ficção portuguesa, mas ao mesmo tempo ultrapassa o processo realista pela complexidade das personagens e da própria estrutura do romance. De facto, se este romance é, aparentemente, sobretudo a história de uma família da aristocracia portuguesa em decadência, crónica social, cultural e política do fim-do-século lisboeta, ele é muito para além disso a história trágica de um incesto. E um incesto que, não obstante as suas aparências romanescas, tem raízes mais fundas na obscura, desesperada procura do ideal feminino por parte de um diletante do pensamento e do sentimento, Carlos da Maia. Paralelamente, Os Maias é sem dúvida o romance de toda uma geração, a Geração de 70 tornada a geração dos Vencidos da Vida.
Boletim Informativo da Fundação Calouste Gulbenkian, nº2, série V, 1979.
Conferências do Casino
Realismo (1865-1890)
Nos anos seguintes a 1860, desencadeia-se uma profunda reviravolta na vida mental Portuguesa: o Romantismo, exausto, agonizante como estilo de vida e de arte, começa a sofrer os primeiros ataques por parte da nova geração que surge. Mais uma vez é Coimbra que serve de trincheira para os revolucionários, com a diferença de que o grito rebelde parte agora da massa estudantil, alvoroçada pelas ideias vanguardeiras dum Proudhon, dum Quinet, dum Taine, dum Renan...
Em 1861, Antero de Quental funda a Sociedade do Raio, uma associação secreta que congrega cerca de duzentos estudantes das várias faculdades de Coimbra, com o objectivo de instaurar a aventura do espírito no seio do convencionalismo académico. Em Outubro do ano seguinte, escolhido para saudar o Príncipe Humberto da Itália, Antero exalta a Itália livre e Garibaldi, então ferido em combate, num significativo gesto de audácia e rebeldia. A Sociedade do Raio ainda vai agir no ano seguinte, raptando o Reitor Basílio Alberto e obrigando-o a demitir-se. Empolgados pelas novas ideias revolucionárias, em 1864 Teófilo Braga publica dois volumes de versos, a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras, e em 1865, Antero edita as Odes Modernas: era a gota que faltava. Nesse ínterim, Pinheiro Chagas escreve o Poema da Mocidade e procura o amparo de Castilho, seu mestre nas Letras. Cheio de entusiasmo, o poeta das Cartas de Eco e Narciso remete uma longa carta ao editor da obra, a qual foi acrescentada em forma de posfácio na edição que dela se fez em 1865. Na missiva, ao mesmo tempo que se refere calorosamente ao fiel discípulo, dirige-se com desagrado aos moços de Coimbra, em especial Antero e Teófilo, aos quais acrescenta Vieira de Castro, afirmando que "muito há que me eu pergunto a mim donde proviria esta enfermidade que hoje grassa por tantos espíritos, de que até alguns dos mais robustos adoecem, que faz com que a literatura, e em particular a poesia, anda marasmada, com fastio de morte à verdade e à simplicidade, com o olhar desvairado e visionário, com os passos incertos, com as cores da saúde trocadas em carmins postiços", etc. Mais adiante, diz: "Lembra-me que uma das causas a que o mal se poderá atribuir será a falta de convivência mútua destes pobres mancebos, que, tendo sido pela natureza predestinados, se fazem precitos; que, talhados para resplandecerem no panteão daqueles génios, que os séculos ficam adorando, se condenam às Trevas próximas do limbo", etc. Dirigindo-se à poesia do tempo, Castilho pondera: "Se a afectação e a enfactuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar de coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear Havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas, ou o grau da doença dos escritores, constitui em resumo a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando", etc. E mais adiante: "Quem não vê que Veie tornando a contagiosa escola dos conceitos, das subtilezas, das unidades discretas, dos alambicamentos metafísicos, das bátegas de flores, de pérolas, de diamantes, das mariposas, das estrelas, das asas de anjos; a anarquia, o turbilhão enfim de todas quantas imagens mudas e miúdas há, e pode, e não pode haver, para usurparem o lugar devido aos pensamentos e aos afectos; a mascarada das figuras em suma, as saturnais da fantasia, a soltura das florais?" A insinuação vai por aí fora, até que o missivista passa a tratar directamente dos três moços de Coimbra, e por fim resume seu pensamento: "Deixando de parte, por agora, Braga e Quental, de que, pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal", etc.
Antero, líder do grupo a que Castilho se refere acremente, de pronto revida as alusões que lhe são dirigidas, num opúsculo que recebeu o nome de Bom-Senso e Bom Gosto, saído no mesmo ano de 1865. Falando em "escola de Coimbra", e à luz da boa fé, afirma: "eu hei de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Ex.a, dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incómodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de V. Ex a."
Assim, com a violência entusiasmada dos vinte e cinco anos, Antero faz a súmula do pensamento que orienta a sua geração: "combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde, às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual." O desagravo termina irreverentemente: "Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta anos de reflexão."
Estava armada a polémica, que passou a chamar-se pelo título do folheto anteriano, ou ainda pela de Questão Coimbrã. Em defesa do pai, sai a campo Júlio de Castilho, a que se seguem Teófilo Braga, com um folheto intitulado As Teocracias Literárias, e Antero, com A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais. Formam-se dois partidos, um, pró-Castilho e outro, pró-Antero, que vão engrossando durante os anos de 1865 e 1866, inclusive estendendo-se até o Brasil, com a adesão de D. Pedro II e Sílvio Romero. O número de opúsculos ascende a algumas dezenas entre as duas facções, integradas ainda por escritores como: Camilo, com o folheto Vaidades Irritadas e Irritantes, a favor da causa romântica, mas a pedido de Castilho; Ramalho Ortigão, com Literatura de Hoje, contra Antero, o que obriga este a desafiá-lo em duelo e com ele se bater em Fevereiro de 1866; Augusto Malheiro Dias, Amaro Mendes Gaveta, pseudónimo de Cunha Belém, Urbano Loureiro, Diogo Bernardes, Brito Aranha, Rui de Porto-Carrero, E. A. Salgado, Carlos Borges, Eduardo Augusto Vidal e tantos outros.
Com a Questão Coimbrã, estava definida a crise de cultura que inicia o Realismo em Portugal. A vitória, como era de esperar, sorri aos moços, mas vai ser preciso que voltem à carga mais adiante a fim de consolidar suas posições. É que a derrota de Castilho significava apenas o golpe de morte no Romantismo: nem era necessário tanto ruído para abater as modas envelhecidas; bastava aguardar os anos, mas é condição da juventude de sempre o gosto de por abaixo estrepitosamente os velhos ídolos e bonzos. Não obstante, Castilho continua pelos anos fora a exercer influência; mais ou menos clandestina, ou indirecta, como se pode observar na poesia de um Eugénio de Castro e de vários poetas do século XX.
Formados em Coimbra, os participantes da revolta anti-castilhista e anti-romântica, disper-sam-se e só tornam a reunir-se em Lisboa, em 1868, no grupo do Cenáculo. Em casa de Jai-me Batalha Reis (1847-1935), realizam encontros periódicos: Eça de Queirós, Antero, Olivei-ra Martins, Ramalho Ortigão, Salomão Sáraga, Santos Valente, Mariano Machado de Faria e Maia, José Eduardo Lobo da Costa, e outros que aparecem menos. Congrega-os uma "escan-dalosa fornalha de Revolução, de Metafísica, de Satanismo, de Anarquia, de Boémia feroz", como lembra Eça de Queirós no retrato que pintou de Antero numa página de rara beleza, intitulada Um génio que era um santo. Em 1871, os rapazes do Cenáçulo resolvem organizar uma série de conferências públicas com o fito de por em discussão franca os problemas e as questões de ordem ideológica que então interessavam a gente culta da Europa e da América do Norte. Para tanto, alugam o Casino Lisbonense, uma espécie de café-concerto onde se reúne a boémia áurea do tempo, para ver o can-can e ouvir cançonetas picantes. Situado a dois passos do Chiado, artéria elegante de Lisboa, era o lugar ideal para levar a efeito o cometimento.
Depois de anunciadas enfaticamente, sobretudo pelo jornal A Revolução de Setembro, a 16 de Maio de 1871 distribui-se o programa-plataforma das conferências, intituladas Conferências Democráticas Estabelecidas na Sala do Casino, Largo da Abegoaria. Mais tarde, passaram a chamar-se apenas de Conferências do Casino Lisbonense.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Casino Lisbonense
O Cenáculo e as Conferências Democráticas
O pequeno grupo coimbrão, de que faziam parte, além de Antero e Teófilo, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga, futuro presidente da República, Eça de Queirós e outros ainda, veio a encontrar-se de novo em Lisboa, restaurando a antiga fraternidade académica num Cenáculo com sede em casa de um deles. A estes agregaram-se novos elementos. A partir de 1871, Antero de Quental, regressando de viagens a França, América e à ilha de S. Miguel, tornara-se o mentor do grupo, a que se foram juntando, entre outros, Jaime Batalha Reis, futuro professor de Agronomia; Oliveira Martins, um autodidacta, então empregado comercial; Ramalho Ortigão, influenciado pela convivência com o seu ex-aluno Eça de Queirós; Adolfo Coelho, iniciador dos estudos de linguística em Portugal; Augusto Soromenho (ou Seromenho), professor no Curso Superior de Letras; Guilherme de Azevedo; Guerra Junqueiro.
Das discussões no Cenáculo, em que se aliavam a literatura e a boémia, tinham saído de começo obras de pura ficção, como as últimas Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e os "satânicos" Poemas de Macadam atribuídos a um imaginário Carlos Fradique Mendes; a chegada de Antero vem disciplinar as leituras e os interesses e dar um objectivo mais preciso ao grupo. O autor à volta do qual cristaliza a doutrina até então flutuante dos seus componentes é P. J. Proudhon (1809-1865) cuja influência na chamada Geração de 70 se intensifica nesta época. Foi neste círculo que nasceu a iniciativa das Conferências Democráticas no Casino Lisbonense .
O projecto das Conferências integra-se num largo, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa. O programa impresso para anunciar e evidenciar a sua realização, sublinhando que "não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo", resume as intenções capitais das conferências nestes ambiciosos termos:
"Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa."
Para compreender todo o alcance das Conferências, convém notar que se estava então num ano de grandes acontecimentos - 1871, remate da unificação de Itália, queda do II Império francês, guerra franco-prussiana, Comuna de Paris, que dois membros do Cenáculo (Antero e Guilherme de Azevedo) aplaudiram publicamente. No plano interno é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se estende a Portugal, com a cooperação de Antero. O principal promotor em Portugal desta organização, um empregado da Livraria Bertrand, José Fontana, tem contactos com o Cenáculo, e participa, como organizador administrativo, nas Conferências.
É fácil, desta maneira, compreender a importância que lhe dedicaram as autoridades; o seu encerramento foi imposto pelo ministro do Reino, António José de Ávila, após os ataques de jornais conservadores, que acusavam os conferencistas de intenções subversivas e de serem adeptos da Comuna. A motivação próxima da ordem de encerramento parece ter sido a de impedir a realização de uma conferência que ia pôr em causa a religião católica, constitucionalmente ligada ao Estado.
Das conferências produzidas, salientaram-se as de Antero, Eça de Queirós e Adolfo Coelho.
Antero, além da conferência inaugural, desenvolveu o tema das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, que eram, segundo ele, três: a reacção religiosa consumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais; um sistema económico de rapina guerreira que, atalhando o desenvolvimento da pequena burguesia, detivera, na Península, a evolução económica de parte da Europa. Antero limitava-se a sistematizar pontos de vista que tinham já sido sustentados em diversas ocasiões por Alexandre Herculano; a sua conferência causou profunda impressão, foi editada em folheto e suscitaria ainda em 1879 uma reflexão correctiva de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica .
Sob o título A Nova Literatura, Eça de Queirós versou o tema O Realismo como nova expressão da Arte:combinando sugestões de Taine e de Proudhon, defendeu uma teoria da arte que a considera condicionada por factores diversos, uns permanentes (o meio, o momento e a raça), outros acidentais ou históricos (ideais directores de cada sociedade); apontou-lhe uma missão social e moralizadora; criticou a literatura romântica por fugir à sua época; e indicou como missão histórica da nova literatura criticar a velha sociedade, abrindo caminho à Revolução - missão proposta à nova escola "realista", que Eça exemplificou na pintura com Courbet (que aliás não conhecia de modo directo) e na literatura com a Madame Bovary, de Flaubert. Eça não publicou o seu texto, que se reconstitui pelas notícias jornalísticas e seus posteriores comentários.
Adolfo Coelho, que viria a ser mais tarde o fundador da linguística em Portugal (Noções Elementares de Língua Portuguesa, 1880), segue na esteira hegeliana-proudhoniana, ao afirmar que na história "vê-se o espírito apropriar-se incessantemente da consciência de si, isto é, da sua natureza, da sua independência, do seu destino". Propõe a organização de um ensino totalmente científico, baseado na separação da Igreja e do Estado, e defende o desenvolvimento pedagógico das ciências sociais, históricas e filosóficas. Fez também uma cerrada crítica às instituições pedagógicas portuguesas, o que provocou violenta reacção, sobretudo universitária.
Houve ainda uma conferência de Augusto Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, sobre A Moderna Literatura, que aliás saía fora do pensamento do Cenáculo, pois se empenhava em exaltar o Romantismo à Chateaubriand, e estavam outras preparadas: sobre Os historiadores críticos de Jesus (Salomão Sáragga); O Socialismo (Batalha Reis); A República (Antero de Quental); A Instrução Primária (Adolfo Coelho); Dedução positiva da Ideia Democrática (Augusto Fuschini). Entre outros conferencistas convidados, contavam-se Teófilo Braga e Oliveira Martins. O encerramento deu-se no dia em que ia realizar-se a conferência sobre Os historiadores críticos de Jesus, onde o autor se propunha tratar dos trabalhos de Renan, com quem colaborara como perito, que era, de estudos hebraicos. Salomão Sáragga dirigirá a importante revista Os Dois Mundos, em português (Paris, 1877-81).
O encerramento provocou protestos de alguns jornais e de dois deputados no Parlamento. Herculano associou-se nos termos que já indicámos.
História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.
Nos anos seguintes a 1860, desencadeia-se uma profunda reviravolta na vida mental Portuguesa: o Romantismo, exausto, agonizante como estilo de vida e de arte, começa a sofrer os primeiros ataques por parte da nova geração que surge. Mais uma vez é Coimbra que serve de trincheira para os revolucionários, com a diferença de que o grito rebelde parte agora da massa estudantil, alvoroçada pelas ideias vanguardeiras dum Proudhon, dum Quinet, dum Taine, dum Renan...
Em 1861, Antero de Quental funda a Sociedade do Raio, uma associação secreta que congrega cerca de duzentos estudantes das várias faculdades de Coimbra, com o objectivo de instaurar a aventura do espírito no seio do convencionalismo académico. Em Outubro do ano seguinte, escolhido para saudar o Príncipe Humberto da Itália, Antero exalta a Itália livre e Garibaldi, então ferido em combate, num significativo gesto de audácia e rebeldia. A Sociedade do Raio ainda vai agir no ano seguinte, raptando o Reitor Basílio Alberto e obrigando-o a demitir-se. Empolgados pelas novas ideias revolucionárias, em 1864 Teófilo Braga publica dois volumes de versos, a Visão dos Tempos e as Tempestades Sonoras, e em 1865, Antero edita as Odes Modernas: era a gota que faltava. Nesse ínterim, Pinheiro Chagas escreve o Poema da Mocidade e procura o amparo de Castilho, seu mestre nas Letras. Cheio de entusiasmo, o poeta das Cartas de Eco e Narciso remete uma longa carta ao editor da obra, a qual foi acrescentada em forma de posfácio na edição que dela se fez em 1865. Na missiva, ao mesmo tempo que se refere calorosamente ao fiel discípulo, dirige-se com desagrado aos moços de Coimbra, em especial Antero e Teófilo, aos quais acrescenta Vieira de Castro, afirmando que "muito há que me eu pergunto a mim donde proviria esta enfermidade que hoje grassa por tantos espíritos, de que até alguns dos mais robustos adoecem, que faz com que a literatura, e em particular a poesia, anda marasmada, com fastio de morte à verdade e à simplicidade, com o olhar desvairado e visionário, com os passos incertos, com as cores da saúde trocadas em carmins postiços", etc. Mais adiante, diz: "Lembra-me que uma das causas a que o mal se poderá atribuir será a falta de convivência mútua destes pobres mancebos, que, tendo sido pela natureza predestinados, se fazem precitos; que, talhados para resplandecerem no panteão daqueles génios, que os séculos ficam adorando, se condenam às Trevas próximas do limbo", etc. Dirigindo-se à poesia do tempo, Castilho pondera: "Se a afectação e a enfactuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar de coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear Havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas, ou o grau da doença dos escritores, constitui em resumo a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando", etc. E mais adiante: "Quem não vê que Veie tornando a contagiosa escola dos conceitos, das subtilezas, das unidades discretas, dos alambicamentos metafísicos, das bátegas de flores, de pérolas, de diamantes, das mariposas, das estrelas, das asas de anjos; a anarquia, o turbilhão enfim de todas quantas imagens mudas e miúdas há, e pode, e não pode haver, para usurparem o lugar devido aos pensamentos e aos afectos; a mascarada das figuras em suma, as saturnais da fantasia, a soltura das florais?" A insinuação vai por aí fora, até que o missivista passa a tratar directamente dos três moços de Coimbra, e por fim resume seu pensamento: "Deixando de parte, por agora, Braga e Quental, de que, pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal", etc.
Antero, líder do grupo a que Castilho se refere acremente, de pronto revida as alusões que lhe são dirigidas, num opúsculo que recebeu o nome de Bom-Senso e Bom Gosto, saído no mesmo ano de 1865. Falando em "escola de Coimbra", e à luz da boa fé, afirma: "eu hei de sempre ver uma péssima acção, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Ex.a, dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incómodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta acção de V. Ex a."
Assim, com a violência entusiasmada dos vinte e cinco anos, Antero faz a súmula do pensamento que orienta a sua geração: "combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde, às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual." O desagravo termina irreverentemente: "Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Ex.a passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele confesso não merecerem, nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. Ex.a precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta anos de reflexão."
Estava armada a polémica, que passou a chamar-se pelo título do folheto anteriano, ou ainda pela de Questão Coimbrã. Em defesa do pai, sai a campo Júlio de Castilho, a que se seguem Teófilo Braga, com um folheto intitulado As Teocracias Literárias, e Antero, com A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais. Formam-se dois partidos, um, pró-Castilho e outro, pró-Antero, que vão engrossando durante os anos de 1865 e 1866, inclusive estendendo-se até o Brasil, com a adesão de D. Pedro II e Sílvio Romero. O número de opúsculos ascende a algumas dezenas entre as duas facções, integradas ainda por escritores como: Camilo, com o folheto Vaidades Irritadas e Irritantes, a favor da causa romântica, mas a pedido de Castilho; Ramalho Ortigão, com Literatura de Hoje, contra Antero, o que obriga este a desafiá-lo em duelo e com ele se bater em Fevereiro de 1866; Augusto Malheiro Dias, Amaro Mendes Gaveta, pseudónimo de Cunha Belém, Urbano Loureiro, Diogo Bernardes, Brito Aranha, Rui de Porto-Carrero, E. A. Salgado, Carlos Borges, Eduardo Augusto Vidal e tantos outros.
Com a Questão Coimbrã, estava definida a crise de cultura que inicia o Realismo em Portugal. A vitória, como era de esperar, sorri aos moços, mas vai ser preciso que voltem à carga mais adiante a fim de consolidar suas posições. É que a derrota de Castilho significava apenas o golpe de morte no Romantismo: nem era necessário tanto ruído para abater as modas envelhecidas; bastava aguardar os anos, mas é condição da juventude de sempre o gosto de por abaixo estrepitosamente os velhos ídolos e bonzos. Não obstante, Castilho continua pelos anos fora a exercer influência; mais ou menos clandestina, ou indirecta, como se pode observar na poesia de um Eugénio de Castro e de vários poetas do século XX.
Formados em Coimbra, os participantes da revolta anti-castilhista e anti-romântica, disper-sam-se e só tornam a reunir-se em Lisboa, em 1868, no grupo do Cenáculo. Em casa de Jai-me Batalha Reis (1847-1935), realizam encontros periódicos: Eça de Queirós, Antero, Olivei-ra Martins, Ramalho Ortigão, Salomão Sáraga, Santos Valente, Mariano Machado de Faria e Maia, José Eduardo Lobo da Costa, e outros que aparecem menos. Congrega-os uma "escan-dalosa fornalha de Revolução, de Metafísica, de Satanismo, de Anarquia, de Boémia feroz", como lembra Eça de Queirós no retrato que pintou de Antero numa página de rara beleza, intitulada Um génio que era um santo. Em 1871, os rapazes do Cenáçulo resolvem organizar uma série de conferências públicas com o fito de por em discussão franca os problemas e as questões de ordem ideológica que então interessavam a gente culta da Europa e da América do Norte. Para tanto, alugam o Casino Lisbonense, uma espécie de café-concerto onde se reúne a boémia áurea do tempo, para ver o can-can e ouvir cançonetas picantes. Situado a dois passos do Chiado, artéria elegante de Lisboa, era o lugar ideal para levar a efeito o cometimento.
Depois de anunciadas enfaticamente, sobretudo pelo jornal A Revolução de Setembro, a 16 de Maio de 1871 distribui-se o programa-plataforma das conferências, intituladas Conferências Democráticas Estabelecidas na Sala do Casino, Largo da Abegoaria. Mais tarde, passaram a chamar-se apenas de Conferências do Casino Lisbonense.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
Casino Lisbonense
O Cenáculo e as Conferências Democráticas
O pequeno grupo coimbrão, de que faziam parte, além de Antero e Teófilo, João Augusto Machado de Faria e Maia, Manuel de Arriaga, futuro presidente da República, Eça de Queirós e outros ainda, veio a encontrar-se de novo em Lisboa, restaurando a antiga fraternidade académica num Cenáculo com sede em casa de um deles. A estes agregaram-se novos elementos. A partir de 1871, Antero de Quental, regressando de viagens a França, América e à ilha de S. Miguel, tornara-se o mentor do grupo, a que se foram juntando, entre outros, Jaime Batalha Reis, futuro professor de Agronomia; Oliveira Martins, um autodidacta, então empregado comercial; Ramalho Ortigão, influenciado pela convivência com o seu ex-aluno Eça de Queirós; Adolfo Coelho, iniciador dos estudos de linguística em Portugal; Augusto Soromenho (ou Seromenho), professor no Curso Superior de Letras; Guilherme de Azevedo; Guerra Junqueiro.
Das discussões no Cenáculo, em que se aliavam a literatura e a boémia, tinham saído de começo obras de pura ficção, como as últimas Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e os "satânicos" Poemas de Macadam atribuídos a um imaginário Carlos Fradique Mendes; a chegada de Antero vem disciplinar as leituras e os interesses e dar um objectivo mais preciso ao grupo. O autor à volta do qual cristaliza a doutrina até então flutuante dos seus componentes é P. J. Proudhon (1809-1865) cuja influência na chamada Geração de 70 se intensifica nesta época. Foi neste círculo que nasceu a iniciativa das Conferências Democráticas no Casino Lisbonense .
O projecto das Conferências integra-se num largo, embora vago, plano de reforma da sociedade portuguesa. O programa impresso para anunciar e evidenciar a sua realização, sublinhando que "não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo", resume as intenções capitais das conferências nestes ambiciosos termos:
"Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa."
Para compreender todo o alcance das Conferências, convém notar que se estava então num ano de grandes acontecimentos - 1871, remate da unificação de Itália, queda do II Império francês, guerra franco-prussiana, Comuna de Paris, que dois membros do Cenáculo (Antero e Guilherme de Azevedo) aplaudiram publicamente. No plano interno é o ano em que a Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se estende a Portugal, com a cooperação de Antero. O principal promotor em Portugal desta organização, um empregado da Livraria Bertrand, José Fontana, tem contactos com o Cenáculo, e participa, como organizador administrativo, nas Conferências.
É fácil, desta maneira, compreender a importância que lhe dedicaram as autoridades; o seu encerramento foi imposto pelo ministro do Reino, António José de Ávila, após os ataques de jornais conservadores, que acusavam os conferencistas de intenções subversivas e de serem adeptos da Comuna. A motivação próxima da ordem de encerramento parece ter sido a de impedir a realização de uma conferência que ia pôr em causa a religião católica, constitucionalmente ligada ao Estado.
Das conferências produzidas, salientaram-se as de Antero, Eça de Queirós e Adolfo Coelho.
Antero, além da conferência inaugural, desenvolveu o tema das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, que eram, segundo ele, três: a reacção religiosa consumada pelo Concílio de Trento; a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais; um sistema económico de rapina guerreira que, atalhando o desenvolvimento da pequena burguesia, detivera, na Península, a evolução económica de parte da Europa. Antero limitava-se a sistematizar pontos de vista que tinham já sido sustentados em diversas ocasiões por Alexandre Herculano; a sua conferência causou profunda impressão, foi editada em folheto e suscitaria ainda em 1879 uma reflexão correctiva de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica .
Sob o título A Nova Literatura, Eça de Queirós versou o tema O Realismo como nova expressão da Arte:combinando sugestões de Taine e de Proudhon, defendeu uma teoria da arte que a considera condicionada por factores diversos, uns permanentes (o meio, o momento e a raça), outros acidentais ou históricos (ideais directores de cada sociedade); apontou-lhe uma missão social e moralizadora; criticou a literatura romântica por fugir à sua época; e indicou como missão histórica da nova literatura criticar a velha sociedade, abrindo caminho à Revolução - missão proposta à nova escola "realista", que Eça exemplificou na pintura com Courbet (que aliás não conhecia de modo directo) e na literatura com a Madame Bovary, de Flaubert. Eça não publicou o seu texto, que se reconstitui pelas notícias jornalísticas e seus posteriores comentários.
Adolfo Coelho, que viria a ser mais tarde o fundador da linguística em Portugal (Noções Elementares de Língua Portuguesa, 1880), segue na esteira hegeliana-proudhoniana, ao afirmar que na história "vê-se o espírito apropriar-se incessantemente da consciência de si, isto é, da sua natureza, da sua independência, do seu destino". Propõe a organização de um ensino totalmente científico, baseado na separação da Igreja e do Estado, e defende o desenvolvimento pedagógico das ciências sociais, históricas e filosóficas. Fez também uma cerrada crítica às instituições pedagógicas portuguesas, o que provocou violenta reacção, sobretudo universitária.
Houve ainda uma conferência de Augusto Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, sobre A Moderna Literatura, que aliás saía fora do pensamento do Cenáculo, pois se empenhava em exaltar o Romantismo à Chateaubriand, e estavam outras preparadas: sobre Os historiadores críticos de Jesus (Salomão Sáragga); O Socialismo (Batalha Reis); A República (Antero de Quental); A Instrução Primária (Adolfo Coelho); Dedução positiva da Ideia Democrática (Augusto Fuschini). Entre outros conferencistas convidados, contavam-se Teófilo Braga e Oliveira Martins. O encerramento deu-se no dia em que ia realizar-se a conferência sobre Os historiadores críticos de Jesus, onde o autor se propunha tratar dos trabalhos de Renan, com quem colaborara como perito, que era, de estudos hebraicos. Salomão Sáragga dirigirá a importante revista Os Dois Mundos, em português (Paris, 1877-81).
O encerramento provocou protestos de alguns jornais e de dois deputados no Parlamento. Herculano associou-se nos termos que já indicámos.
História da Literatura Portuguesa (DVD)
2002 Porto Editora, Lda.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
Almeida Garrett - Frei Luís de Sousa
I - Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa constitui um caso particular na produção de Garrett e na literatura dramática nacional. É geralmente apontado como obra-prima do teatro português romântico.
Frei Luís de Sousa, à semelhança dos anteriores dramas do autor, tem por base a História de Portugal. Não respeitando, no entanto, totalmente, a informação histórica. o autor de acusações se defenderá à partida na Memória ao Conservatório Real:
Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a «Arte de verificar as datas» na mão (...).
Entre 1835 e 1842 conhecem-se várias obras que têm como tema a vida «romanceada» de Manuel de Sousa Coutinho: Luís de Sousa, romance de Ferdinand Denis (1835), o Cativo de Fez, drama de Silva Abranches (em 1840 apreciado pelo Conservatório), um poema em verso heróico publicado numa revista do Porto por um «poeta obscuro» (1840), o «rimance em prosa» Manuel de Sousa Coutinho, por Paulo Midosi (1842).
Sabemos que Almeida Garrett conhecia, além destes textos, a biografia de Frei Luís de Sousa da responsabilidade de Frei António da Encarnação. Nem a quantidade de obras já existentes nem o conhecimento inevitável que o público teria da «história» impediram Almeida Garrett de se lançar ao trabalho e de terminar em treze dias a escrita de uma primeira versão de Frei Luís de Sousa. Parece, pois, que o interesse do autor em escrever um texto dramático com base na conhecida biografia de Manuel de Sousa Coutinho só podia justificar-se por motivos bem diferentes daqueles que o levaram antes a escrevei D. Filipa de Vilhena e O Alfageme de Santarém.
Daí a importância da Memória, texto que surge como anúncio, justificação e interpretação do Frei Luís de Sousa. As relações que existem entre ambos podem, talvez, levar-nos a compreender melhor o lugar que Frei Luís de Sousa ocupa na história do teatro.
Maria João Brilhante, apresentação crítica de Frei Luís de Sousa
II - Frei Luís de Sousa - síntese
Drama – O drama pressupões uma acção menos tensa que o da tragédia, menos concentrado numa crise, mais submetida à influência dos acontecimentos exteriores.
Tragédia – poema dramático que desenvolve uma acção séria e completa, tirado da história, entre personagens ilustres com o fim de provocar na alma dos espectadores o terror e a piedade dados através do espectáculo da paixões luares em luta entre si ou contra o destino
Elementos trágicos e dramáticos em Frei Luís de Sousa:
Trágicos:
Tema – ilegitimidade de Maria ( adultério )
Personagens – número reduzidos e nobres
Presságios – ( predestinação ) referida por parte de Maria e de Telmo em que irá acontecer uma tragédia
Coro – Frei Jorge e Telmo ( fatalismo/ Destino = Madalena ) representa o papel de uma pecadora arrependida, pois amou Manuel de Sousa Coutinho na presença de D. João de Portugal. Acredita que o destino trará uma tragédia . Qualquer acção será irremediável ( predestinação – fatalismo ).
Estrutura
Efeitos catárticos – piedade e terror
Drama:
A peça é escrita em prosa.
Espaço:
O espaço vai-se reduzindo.
África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio
Tempo:
O tempo vai-se reduzindo também, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.
1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece M. de Sousa.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João
1585 e 1599 – Madalena casa com M. de Sousa.
1598 a 1599 ( 1 ano ) – D. João é libertado dirige-se para Portugal
28 de julho a 4 de Agosto ( 8 dias ) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.
Agosto (3 dias ) – D. João apressa-se para chegar
4 de Agosto ( hoje ) – é um dia fatal para Madalena
Divisão da peça :
3 actos escritos em prosa:
1 acto - Do início até ao incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho.
2 acto – Até à chegada do Romeiro
3 acto – Até à morte de Maria
Personagens:
Manuel de Sousa Coutinho – Segundo marido de madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar ( ideia inconfessada ); que a saúde débil de sua filha progrida para uma doença grave ; decidido, patriota ( incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; sofre, sente remorsos ao pensar na cruel situação em que ficara a sua querida Maria; Amor paternal.
D . João de Portugal – Casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; austero; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente ( quando pensa, por momentos, que Madalena o ama ).
Dona Madalena – suporte viuva de D. João de Portugal; casa com Manuel de S. Coutinho; nasce Maria, filha de Manuel; Angustia em relação à situação insegura do seu casamento; remorso por ter gostado de Manuel de S. enquanto era ainda casada com D . João; Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; Insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher p/ lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão.
Maria de Noronha – Filha de D. Madalena e D. João; amor filial, curiosidade; sonho, fantasia, idealismo, filha fatal, adolescente fantasista, sebastianista por influência de Telmo, adivinhava " lia nos olhos e nas estrelas " ; sempre febril, cresceu de repente, criança precoce; gosto pela aventura, frágil, alta, magra, faces rosadas, patriota, intuitiva, inteligente.
Telmo Pais – escudeiro de família dos condes vimioso, sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua " menina " ; sofre porque é forçado a ver o seu velho amo como um intruso que nunca deveria ter vindo. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.
A crença do sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. Logo no início, Madalena afirma a Telmo "..mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade ! "
No sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzira a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será última no plano de salvação dos Homens.
Cena I à IV – localização das personagens no tempo
Acto 1 Cena V à VIII – preparação da acção para o que se ai passar a seguir
Cena IX à XII – o Incêndio
A obra de Frei Luís de Sousa é ambas tragédia e drama, é tragédia pelo conteúdo do texto e é drama pela forma.
Cena 1 – solução adoptada
Acto 3 até à 10º cena temos a preparação do desenlace.
Cena 11 até à 12º temos o desenlace com morte de Maria em palco
Acto 3:
Cena 1 – Manuel debate-se com um dilema enorme, a doença de filha, a ilegitimidade.
Maria ficava ilegítima cheia de infâmia tal e qual como Garret.
Sempre que alguém pergunta a D. João quem ele é, ele responde espontaneamente"ninguém", este ninguém significa que D. João de Portugal já não tinha Pátria, não tinha família, não tinha lugar na sociedade, não tinha o seu palácio, pois perdeu-o .
III - A tragédia clássica:
A todo o sistema de forças, que comprime e pesa sobre a liberdade individual, o cidadão, o homem opõe o seu vivo protesto e lança um desafio ( hybris ).
À hybris responde a vingança, a punição, o ressentimento, uma espécie de ciúme ferido pela corajosa atitude assumida pelo homem – a nemesis divina.
O coro actua como um trovão ao ímpeto libertário do indivíduo aconselhado a moderação, o comedimento, a serena contenção, e traduz as ideias e os sentimentos da média humana. Os acontecimentos desenrolam-se segundo as cotas das personagens e os logros do destino, de necessidade do fatum; encadeiam-se uns nos outro se, por vezes, precipitam a acção no seu curso através de peripécias ( acontecimentos ), que acabam por voltar o rumo do drama em sentido inesperado ( catástrofe ). Esta mudança brusca é muitas vezes levada a cabo por um reconhecimento ( agnórise ) de laços parentescos até então insuspeitos.
As consequências patéticas, avolumam-se num crescendo inquietante ( climax ), até se resolver numa reviravolta brusca e brutal dos acontecimentos – a catástrofe.
Espectador e acção dramática:
O agenciamento da acção dramática da tragédia visava a exibição das consequências ( pathos ) do descomedimento humano de modo a sugerir no espectador o temor religioso ou sua simpatia.
Sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. No sebastianismo, como ele é representado no frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzirá a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano de salvação dos Homens.
IV - Classificação de Frei Luís de Sousa
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não é em verso, mas em prosa; não tem cinco actos; não respeita as unidades de tempo e de lugar; não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade, o número de personagens é diminuto;
Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);
contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
a crença no sebastianismo;
a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como o uso da prosa; a divisão em três actos; o estilo todo, do princípio ao fim, teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.»
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II
V - Esta é uma verdadeira tragédia
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa
VI - Definição de Tragédia
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética
VII - Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do conteúdo e características literárias do drama.
I – ARGUMENTO (macroanálise):
No primeiro e segundo actos trata-se de preparar o aparecimento de D João de Portugal; no terceiro, de resolver a situação difícil, que nasceu da sua chegada catastrófica. A progressão da intriga há-de fazer, dentro da verosimilhança e dramatismo psicológicos, aproximar o ausente que se teme como uma tremenda fatalidade, e conduzir os dois esposos ao convento, solução da sua desdita.
1º acto:
a) Conflito de D. Madalena e Telmo, que mostra os antecedentes do drama familiar e os caracteres de três personagens: um escudeiro velho, sebastianista de temperamento e por afeição ao primeiro amo, irrita D. Madalena, senhora nervosa, apreensiva, dominada pela ideia do que teme – começa a desenhar-se ao longe a sombra do ausente – repreende a Telmo porque impressiona demasiadamente, com suas 'histórias, o espírito precoce de Maria.
b) Notar um pequeno episódio que alivia a acção, concorrendo para ela: D. Madalena vai à janela indagar do bergantim que devia trazer o marido cuja ausência a preocupava; lufadas de maresia.
c) Apresentação do carácter de Maria, espírito vivíssimo, precoce, em corpo franzino. Hipersensibilidade nervosa, febricitante, mm sonhos e palpites, criança de olhos ardentes que tudo adivinham, que é por D. Sebastião e pelo Bandarra. Para logo se presume que a alma há-de consumir-lhe o corpo.
d) O episódio final do incêndio: revela o carácter íntegro de Manuel de Sousa, calmo nas grandes decisões, com a energia das pessoas bondosas e nobres; não compreende os vãos escrúpulos e temores de D. Madalena em ir habitar para o palácio do primeiro marido.
– Prepara naturalmente, a mudança de habitação para casa de D. João de Portugal. Ao mesmo tempo toma mais presente a sombra do primeiro marido e aproxima os esposos do convento em que hão-de professar.
Notar o empenho simbólico de D. Madalena em salvar das chamas o retrato do segundo marido.
2º acto.
a) Ligação da mudança dos palácios com a acção. O incêndio do retrato enche de agoiros D. Madalena. Um retrato de D. João de Portugal excita a curiosidade de Maria, para quem o incêndio fora um espectáculo sublime. Manuel de Sousa explica-lhe, magnanimamente, de quem era o retrato. Aproxima-se mais o ausente.
b) Afastamento de Manuel de Sousa e de Maria, para dar lugar ao Romeiro. Natural, pedido no pai, pelas consequências políticas do incêndio; e na filha, pela necessidade de acalmar-lhe a excitação. Vão visitar uma tia que, de comum acordo com o marido, professara, como ele, num convento. Sugestão do desfecho.
c) Aparecimento do Romeiro, em sua própria casa, e diante do próprio retrato. Naturalíssimo e como que pedido pela fatalidade das circunstâncias, e até por perguntas inconscientes de D. Madalena e Frei Jorge. Aquela, que antes era toda agoiros quando o perigo é real, então, é que se não dá conta dele. A revelação da desgraça não é total para ela, afim de se deixar uma possibilidade de entrecho no 3º acto, e por economia dramática do sentimento. D. Madalena não podia nem precisaria de ouvir mais.
3º acto:
a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste mm o movimento passional do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da solução a adoptar.
6 ) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. último adeus dos esposos, precedido do engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.
c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro, morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama romântico, no desencontro ,da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas seria mais sóbria noutras circunstâncias.
II – ANáLISE LITERáRIA (microanálise):
1. Drama...
a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes, e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.
b ) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.
c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma «anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a «catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.
2....romântico...
a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso, Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios. O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.
b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento.
Tema também do amor irremediável (a seguir virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução. Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.
c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a Joaninha das Viagens na Mina Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas, carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.
3....de Garrett
a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.
b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que Gartett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D. João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante, foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou sentido e acalmia.
c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa Assim, o Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real, como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por interposta pessoa.
E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo, ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para mais, golfando sangue sobre o peito do pai.
João Mendes, Literatura Portuguesa III,
Lisboa, Ed. Verbo, 1979, pp. 40-47.
VIII - Frei Luís de Sousa
O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).
A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)
Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:
O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.
Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.
IX - Frei Luís de Sousa
O relevo de que Garrett entre nós desfruta, como figura dominante do Romantismo, liga-se indissociavelmente à actividade política do autor; é o seu empenhamento na Revolução de Setembro que o leva a aprofundar a vocação dramática, não só como responsável pelas reformas então empreendidas, mas também como dramaturgo. Obras como Um Auto de Gil Vicente, D. Filipa de Vilhena, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa constituem não só o contributo garrettiano para a reforma do teatro português, mas também, por certo, dos poucos exemplos qualitativamente válidos que nos ficaram, como resultado desse impulso reformador-
O Frei Luís de Sousa ocupa aqui um lugar especial. Além de obra multifacetada, susceptível, por isso, de desencadear interpretações muito diversificadas, o Frei Luís de Sousa surge num momento propício para uma reflexão metaliterária directamente interessada na questão dos géneros e na função social do teatro. De facto, a «Memória ao Conservatório» é, antes de mais, um texto decorrente de uma concepção cívica e pedagógica da Literatura, num tempo propício à educação das mentalidades através das práticas culturais; ao mesmo tempo, Garrett equaciona, com uma desenvoltura que nele não é nova, a questão dos géneros, acabando por postular o hibridismo formal como decisiva opção artística: reclamando a condição de drama romântico, mas sem renunciar à memória da tragédia, o Frei Luís de Sousa inscreve-se, deste modo, na linha do pensamento estético de Victor Hugo, pioneiro de substanciais transformações na teoria e na criação literárias do Romantismo europeu.
Obra composta num estilo dotado de grande naturalidade e de formulação praticamente coloquial, tentando (e conseguindo, em grande parte) fugir à retórica esteriotipada do dramalhão romântico, o Frei Luís de Sousa desenvolve uma acção simples, enquadrada por um pano de fundo histórico – a derrota em Alcácer-Quibir e a ocupação filipina –, apenas desequilibrada com a cena final da morte de Maria, concessão melodramática que destoa da sobriedade dominante na obra; ao mesmo tempo, ao privilegiar um assunto histórico de claro recorte sebastianista, o Frei Luís de Sousa insiste na vertente nacionalista que caracteriza a produção literária garrettiana, sem, no entanto, incorrer no artificialismo da Literatura de temática histórica da segunda geração romântica.
Carlos Reis, Maria da Natividade Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa
Escrita de um jacto, em pouco mais de duas semanas, a obra teria a sua primeira apresentação pública numa leitura feita no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, perante um auditório escolhido e culto. Dado o êxito obtido, uma segunda leitura seria feita num salão lisboeta, e logo ali combinada a primeira representação, que se viria a efectuar algumas semanas depois num teatro particular na Quinta do Pinheiro, em Lisboa, sendo os papéis desempenhados por actores amadores, pessoas da sociedade amigas de Garrett, que aliás viria mesmo a assegurar o papel de Telmo Pais. É só em 1850 que o grande público terá acesso ao conhecimento integral da peça, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, depois de terminada a ditadura de Costa Cabral, cuja censura impedira que isso acontecesse mais cedo.
Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa
X - Frei Luís de Sousa
Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, a vida criada, vinga-se cruelmente da vida presente e em criação. Os vivos não têm culpa nenhuma disto. D. Madalena foi sempre uma esposa fiel; seu marido um exemplar português, admirador do suposto morto, e a filha de ambos um anjo. (...).
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais. dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade. mesmo sem acontecimentos. Quando estes se começam a desencadear, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso. o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor. mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
– Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.
António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa
XI - Frei Luís de Sousa
Manuel de Sousa Coutinho (tal o nome que teve no século este grande prosador) n. em Santarém cerca de 1555 e m. em 1632 [Lisboa]. (...) Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes (...). Prestou serviços a Filipe II de Espanha, que o recompensou, em 1592, com uma tença de 200$000; de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou, por 1584-86, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido em Alcácer-Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada, com o posto de coronel. Em 1600, sendo Lisboa assolada pela peste, os governadores do Reino quiseram instalar-se em Almada, numa casa de D. Manuel, que para impedir tal violência, lhe lançou fogo. Na origem deste episódio estão questões pessoais, que não hostilidade ao Rei castelhano. (...)
Em 1613, quando já lhes falecera uma filha única, D. Manuel e D. Madalena resolveram seguir o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica, ela no convento, dominicano também, do Sacramento. O primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, no prefácio da 2ª parte da História de S. Domingos, entre várias opiniões que corriam sobre aquele insólito facto, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim a vida em comum de D. Manuel e D. Madalena tornara-se impossível. Esta versão constitui o ponto de partida do Frei Luís de Sousa de Garrett. (...) No claustro deu exemplo de grande austeridade, desempenhou o cargo de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa – ao mesmo tempo que se consagrava a tarefas literárias de vulto.
Uma dessas tarefas foi elaborar os materiais deixados por Frei Luís de Cácegas, investigador da mesma Ordem, para a biografia de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, um dos mais ilustres domínicos, Arcebispo de Braga (1514-1590).
Jacinto do Prado Coelho, «Frei Luís de Sousa», em Dicionário de Literatura
XII - Processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade de Telmo
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»
Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas
Frei Luís de Sousa constitui um caso particular na produção de Garrett e na literatura dramática nacional. É geralmente apontado como obra-prima do teatro português romântico.
Frei Luís de Sousa, à semelhança dos anteriores dramas do autor, tem por base a História de Portugal. Não respeitando, no entanto, totalmente, a informação histórica. o autor de acusações se defenderá à partida na Memória ao Conservatório Real:
Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a «Arte de verificar as datas» na mão (...).
Entre 1835 e 1842 conhecem-se várias obras que têm como tema a vida «romanceada» de Manuel de Sousa Coutinho: Luís de Sousa, romance de Ferdinand Denis (1835), o Cativo de Fez, drama de Silva Abranches (em 1840 apreciado pelo Conservatório), um poema em verso heróico publicado numa revista do Porto por um «poeta obscuro» (1840), o «rimance em prosa» Manuel de Sousa Coutinho, por Paulo Midosi (1842).
Sabemos que Almeida Garrett conhecia, além destes textos, a biografia de Frei Luís de Sousa da responsabilidade de Frei António da Encarnação. Nem a quantidade de obras já existentes nem o conhecimento inevitável que o público teria da «história» impediram Almeida Garrett de se lançar ao trabalho e de terminar em treze dias a escrita de uma primeira versão de Frei Luís de Sousa. Parece, pois, que o interesse do autor em escrever um texto dramático com base na conhecida biografia de Manuel de Sousa Coutinho só podia justificar-se por motivos bem diferentes daqueles que o levaram antes a escrevei D. Filipa de Vilhena e O Alfageme de Santarém.
Daí a importância da Memória, texto que surge como anúncio, justificação e interpretação do Frei Luís de Sousa. As relações que existem entre ambos podem, talvez, levar-nos a compreender melhor o lugar que Frei Luís de Sousa ocupa na história do teatro.
Maria João Brilhante, apresentação crítica de Frei Luís de Sousa
II - Frei Luís de Sousa - síntese
Drama – O drama pressupões uma acção menos tensa que o da tragédia, menos concentrado numa crise, mais submetida à influência dos acontecimentos exteriores.
Tragédia – poema dramático que desenvolve uma acção séria e completa, tirado da história, entre personagens ilustres com o fim de provocar na alma dos espectadores o terror e a piedade dados através do espectáculo da paixões luares em luta entre si ou contra o destino
Elementos trágicos e dramáticos em Frei Luís de Sousa:
Trágicos:
Tema – ilegitimidade de Maria ( adultério )
Personagens – número reduzidos e nobres
Presságios – ( predestinação ) referida por parte de Maria e de Telmo em que irá acontecer uma tragédia
Coro – Frei Jorge e Telmo ( fatalismo/ Destino = Madalena ) representa o papel de uma pecadora arrependida, pois amou Manuel de Sousa Coutinho na presença de D. João de Portugal. Acredita que o destino trará uma tragédia . Qualquer acção será irremediável ( predestinação – fatalismo ).
Estrutura
Efeitos catárticos – piedade e terror
Drama:
A peça é escrita em prosa.
Espaço:
O espaço vai-se reduzindo.
África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio
Tempo:
O tempo vai-se reduzindo também, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.
1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece M. de Sousa.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João
1585 e 1599 – Madalena casa com M. de Sousa.
1598 a 1599 ( 1 ano ) – D. João é libertado dirige-se para Portugal
28 de julho a 4 de Agosto ( 8 dias ) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.
Agosto (3 dias ) – D. João apressa-se para chegar
4 de Agosto ( hoje ) – é um dia fatal para Madalena
Divisão da peça :
3 actos escritos em prosa:
1 acto - Do início até ao incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho.
2 acto – Até à chegada do Romeiro
3 acto – Até à morte de Maria
Personagens:
Manuel de Sousa Coutinho – Segundo marido de madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar ( ideia inconfessada ); que a saúde débil de sua filha progrida para uma doença grave ; decidido, patriota ( incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; sofre, sente remorsos ao pensar na cruel situação em que ficara a sua querida Maria; Amor paternal.
D . João de Portugal – Casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; austero; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente ( quando pensa, por momentos, que Madalena o ama ).
Dona Madalena – suporte viuva de D. João de Portugal; casa com Manuel de S. Coutinho; nasce Maria, filha de Manuel; Angustia em relação à situação insegura do seu casamento; remorso por ter gostado de Manuel de S. enquanto era ainda casada com D . João; Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; Insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher p/ lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão.
Maria de Noronha – Filha de D. Madalena e D. João; amor filial, curiosidade; sonho, fantasia, idealismo, filha fatal, adolescente fantasista, sebastianista por influência de Telmo, adivinhava " lia nos olhos e nas estrelas " ; sempre febril, cresceu de repente, criança precoce; gosto pela aventura, frágil, alta, magra, faces rosadas, patriota, intuitiva, inteligente.
Telmo Pais – escudeiro de família dos condes vimioso, sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua " menina " ; sofre porque é forçado a ver o seu velho amo como um intruso que nunca deveria ter vindo. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.
A crença do sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. Logo no início, Madalena afirma a Telmo "..mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade ! "
No sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzira a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será última no plano de salvação dos Homens.
Cena I à IV – localização das personagens no tempo
Acto 1 Cena V à VIII – preparação da acção para o que se ai passar a seguir
Cena IX à XII – o Incêndio
A obra de Frei Luís de Sousa é ambas tragédia e drama, é tragédia pelo conteúdo do texto e é drama pela forma.
Cena 1 – solução adoptada
Acto 3 até à 10º cena temos a preparação do desenlace.
Cena 11 até à 12º temos o desenlace com morte de Maria em palco
Acto 3:
Cena 1 – Manuel debate-se com um dilema enorme, a doença de filha, a ilegitimidade.
Maria ficava ilegítima cheia de infâmia tal e qual como Garret.
Sempre que alguém pergunta a D. João quem ele é, ele responde espontaneamente"ninguém", este ninguém significa que D. João de Portugal já não tinha Pátria, não tinha família, não tinha lugar na sociedade, não tinha o seu palácio, pois perdeu-o .
III - A tragédia clássica:
A todo o sistema de forças, que comprime e pesa sobre a liberdade individual, o cidadão, o homem opõe o seu vivo protesto e lança um desafio ( hybris ).
À hybris responde a vingança, a punição, o ressentimento, uma espécie de ciúme ferido pela corajosa atitude assumida pelo homem – a nemesis divina.
O coro actua como um trovão ao ímpeto libertário do indivíduo aconselhado a moderação, o comedimento, a serena contenção, e traduz as ideias e os sentimentos da média humana. Os acontecimentos desenrolam-se segundo as cotas das personagens e os logros do destino, de necessidade do fatum; encadeiam-se uns nos outro se, por vezes, precipitam a acção no seu curso através de peripécias ( acontecimentos ), que acabam por voltar o rumo do drama em sentido inesperado ( catástrofe ). Esta mudança brusca é muitas vezes levada a cabo por um reconhecimento ( agnórise ) de laços parentescos até então insuspeitos.
As consequências patéticas, avolumam-se num crescendo inquietante ( climax ), até se resolver numa reviravolta brusca e brutal dos acontecimentos – a catástrofe.
Espectador e acção dramática:
O agenciamento da acção dramática da tragédia visava a exibição das consequências ( pathos ) do descomedimento humano de modo a sugerir no espectador o temor religioso ou sua simpatia.
Sebastianismo:
O mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. No sebastianismo, como ele é representado no frei Luís de Sousa, por Telmo e Maria, reside somente a crença em que o rei ao voltar conduzirá a uma época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano de salvação dos Homens.
IV - Classificação de Frei Luís de Sousa
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não é em verso, mas em prosa; não tem cinco actos; não respeita as unidades de tempo e de lugar; não tem assunto antigo.
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade, o número de personagens é diminuto;
Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa, incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);
uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena, atingindo todas as restantes personagens (pathos);
contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais pavoroso;
há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);
Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto, parecem o coro grego.
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:
a crença no sebastianismo;
a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;
a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;
as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;
o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os Governadores do Reino a não utilizassem;
a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como o uso da prosa; a divisão em três actos; o estilo todo, do princípio ao fim, teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no conteúdo.»
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II
V - Esta é uma verdadeira tragédia
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa
VI - Definição de Tragédia
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e, nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.
[...]
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.
Aristóteles, Poética
VII - Frei Luís de Sousa
Frei Luís de Sousa, representado em particular em 1843, é a obra-prima de Garrett e merece atenção mais demorada. Façamos, por forma esquemática, uma breve análise do conteúdo e características literárias do drama.
I – ARGUMENTO (macroanálise):
No primeiro e segundo actos trata-se de preparar o aparecimento de D João de Portugal; no terceiro, de resolver a situação difícil, que nasceu da sua chegada catastrófica. A progressão da intriga há-de fazer, dentro da verosimilhança e dramatismo psicológicos, aproximar o ausente que se teme como uma tremenda fatalidade, e conduzir os dois esposos ao convento, solução da sua desdita.
1º acto:
a) Conflito de D. Madalena e Telmo, que mostra os antecedentes do drama familiar e os caracteres de três personagens: um escudeiro velho, sebastianista de temperamento e por afeição ao primeiro amo, irrita D. Madalena, senhora nervosa, apreensiva, dominada pela ideia do que teme – começa a desenhar-se ao longe a sombra do ausente – repreende a Telmo porque impressiona demasiadamente, com suas 'histórias, o espírito precoce de Maria.
b) Notar um pequeno episódio que alivia a acção, concorrendo para ela: D. Madalena vai à janela indagar do bergantim que devia trazer o marido cuja ausência a preocupava; lufadas de maresia.
c) Apresentação do carácter de Maria, espírito vivíssimo, precoce, em corpo franzino. Hipersensibilidade nervosa, febricitante, mm sonhos e palpites, criança de olhos ardentes que tudo adivinham, que é por D. Sebastião e pelo Bandarra. Para logo se presume que a alma há-de consumir-lhe o corpo.
d) O episódio final do incêndio: revela o carácter íntegro de Manuel de Sousa, calmo nas grandes decisões, com a energia das pessoas bondosas e nobres; não compreende os vãos escrúpulos e temores de D. Madalena em ir habitar para o palácio do primeiro marido.
– Prepara naturalmente, a mudança de habitação para casa de D. João de Portugal. Ao mesmo tempo toma mais presente a sombra do primeiro marido e aproxima os esposos do convento em que hão-de professar.
Notar o empenho simbólico de D. Madalena em salvar das chamas o retrato do segundo marido.
2º acto.
a) Ligação da mudança dos palácios com a acção. O incêndio do retrato enche de agoiros D. Madalena. Um retrato de D. João de Portugal excita a curiosidade de Maria, para quem o incêndio fora um espectáculo sublime. Manuel de Sousa explica-lhe, magnanimamente, de quem era o retrato. Aproxima-se mais o ausente.
b) Afastamento de Manuel de Sousa e de Maria, para dar lugar ao Romeiro. Natural, pedido no pai, pelas consequências políticas do incêndio; e na filha, pela necessidade de acalmar-lhe a excitação. Vão visitar uma tia que, de comum acordo com o marido, professara, como ele, num convento. Sugestão do desfecho.
c) Aparecimento do Romeiro, em sua própria casa, e diante do próprio retrato. Naturalíssimo e como que pedido pela fatalidade das circunstâncias, e até por perguntas inconscientes de D. Madalena e Frei Jorge. Aquela, que antes era toda agoiros quando o perigo é real, então, é que se não dá conta dele. A revelação da desgraça não é total para ela, afim de se deixar uma possibilidade de entrecho no 3º acto, e por economia dramática do sentimento. D. Madalena não podia nem precisaria de ouvir mais.
3º acto:
a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste mm o movimento passional do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da solução a adoptar.
6 ) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. último adeus dos esposos, precedido do engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.
c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro, morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama romântico, no desencontro ,da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas seria mais sóbria noutras circunstâncias.
II – ANáLISE LITERáRIA (microanálise):
1. Drama...
a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes, e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.
b ) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.
c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma «anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a «catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.
2....romântico...
a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso, Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios. O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.
b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento.
Tema também do amor irremediável (a seguir virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução. Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.
c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a Joaninha das Viagens na Mina Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas, carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.
3....de Garrett
a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.
b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que Gartett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D. João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante, foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou sentido e acalmia.
c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa Assim, o Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real, como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por interposta pessoa.
E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo, ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para mais, golfando sangue sobre o peito do pai.
João Mendes, Literatura Portuguesa III,
Lisboa, Ed. Verbo, 1979, pp. 40-47.
VIII - Frei Luís de Sousa
O significado do Frei Luís de Sousa está todo [na Memória ao Conservatório]: o desejo de criar o protótipo de uma tragédia moderna e neste sentido cristã, em que a moira, o fatum clássicos sejam substituídos pela Providência Divina e em que a matéria não seja mais oferecida pela mitologia e pela história grega, mas por essa história pátria que a estética romântica tinha indicado como fonte primeira de qualquer recriação poética. É neste plano que têm de ser entendidas as opções do autor; que são todas opções de carácter literário, desde o tema nacional à forma poética (prosa, não verso, pois que o próprio verso branco, não obstante a sua docilidade, poderia constituir um diafragma entre o público e a tragédia que a família de Manuel de Sousa Coutinho modernamente encarnava).
A preocupação literária, estética de Garrett é tão exclusiva que, mais do que se deter naquilo que narra, ele sublinha os modos da transposição poética. A história é aquilo que é, a que a tradição consignou à poesia; algo que existe em si, que não se discute nem se muda e que o poeta, ao qual, de qualquer forma, cabe o mérito do reconhecimento que em última análise é uma forma de criação artística, deve apenas saber reproduzir nas suas linhas mais puras. (...)
Nascido deste fundamental impulso literário, como aplicação de uma teoria poética que o precede («Para ensaiar estas minhas theorias d'arte, que se reduzem a pintar do vivo, desenhar do nu, e não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural, escolhi este assunto porque em suas mesmas dificuldades estavam as condições de sua maior propriedade»), o Frei Luís de Sousa cai num ambiente não amadurecido para o receber: e não apenas esteticamente, mas ainda, como se viu, política e socialmente. Esta a razão por que a «tragédia moderna» não terá seguimento nas cenas portuguesas. Em primeiro lugar, à parte os méritos intrínsecos da obra, não apareciam claras as fronteiras entre este novo «género» preconizado por Garrett e as do «drama romântico» que poucos anos antes o próprio autor tinha imposto nas cenas portuguesas. Formalmente nada diferenciava a tragédia do drama: nem a divisão em actos (três como em muitos outros dramas românticos), nem a forma poética [prosa, como no Auto de Gil Vicente), nem o tema (um acontecimento da história pátria). Na sua própria teorização, Garrett tinha apenas acentuado a necessidade de evitar os excessos do dramalhão romântico: os trovões, os relâmpagos, as paixões violentas, o maniqueísmo bons-maus. Ingredientes que não obstante entrarão nessa época cada vez mais nas bacanais do teatro, até que um crítico requintado como Andrade Ferreira, quando já o público procura um diversivo na ópera bufa e na opereta, exclamará:
O drama histórico tornou-se o pesadelo das nossas plateias.
Luciana Stegagno Picchio, «Frei Luís de Sousa: Propósitos e significados»,
em História Crítica da Literatura Portuguesa.
IX - Frei Luís de Sousa
O relevo de que Garrett entre nós desfruta, como figura dominante do Romantismo, liga-se indissociavelmente à actividade política do autor; é o seu empenhamento na Revolução de Setembro que o leva a aprofundar a vocação dramática, não só como responsável pelas reformas então empreendidas, mas também como dramaturgo. Obras como Um Auto de Gil Vicente, D. Filipa de Vilhena, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa constituem não só o contributo garrettiano para a reforma do teatro português, mas também, por certo, dos poucos exemplos qualitativamente válidos que nos ficaram, como resultado desse impulso reformador-
O Frei Luís de Sousa ocupa aqui um lugar especial. Além de obra multifacetada, susceptível, por isso, de desencadear interpretações muito diversificadas, o Frei Luís de Sousa surge num momento propício para uma reflexão metaliterária directamente interessada na questão dos géneros e na função social do teatro. De facto, a «Memória ao Conservatório» é, antes de mais, um texto decorrente de uma concepção cívica e pedagógica da Literatura, num tempo propício à educação das mentalidades através das práticas culturais; ao mesmo tempo, Garrett equaciona, com uma desenvoltura que nele não é nova, a questão dos géneros, acabando por postular o hibridismo formal como decisiva opção artística: reclamando a condição de drama romântico, mas sem renunciar à memória da tragédia, o Frei Luís de Sousa inscreve-se, deste modo, na linha do pensamento estético de Victor Hugo, pioneiro de substanciais transformações na teoria e na criação literárias do Romantismo europeu.
Obra composta num estilo dotado de grande naturalidade e de formulação praticamente coloquial, tentando (e conseguindo, em grande parte) fugir à retórica esteriotipada do dramalhão romântico, o Frei Luís de Sousa desenvolve uma acção simples, enquadrada por um pano de fundo histórico – a derrota em Alcácer-Quibir e a ocupação filipina –, apenas desequilibrada com a cena final da morte de Maria, concessão melodramática que destoa da sobriedade dominante na obra; ao mesmo tempo, ao privilegiar um assunto histórico de claro recorte sebastianista, o Frei Luís de Sousa insiste na vertente nacionalista que caracteriza a produção literária garrettiana, sem, no entanto, incorrer no artificialismo da Literatura de temática histórica da segunda geração romântica.
Carlos Reis, Maria da Natividade Pires, História Crítica da Literatura Portuguesa
Escrita de um jacto, em pouco mais de duas semanas, a obra teria a sua primeira apresentação pública numa leitura feita no Conservatório Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, perante um auditório escolhido e culto. Dado o êxito obtido, uma segunda leitura seria feita num salão lisboeta, e logo ali combinada a primeira representação, que se viria a efectuar algumas semanas depois num teatro particular na Quinta do Pinheiro, em Lisboa, sendo os papéis desempenhados por actores amadores, pessoas da sociedade amigas de Garrett, que aliás viria mesmo a assegurar o papel de Telmo Pais. É só em 1850 que o grande público terá acesso ao conhecimento integral da peça, levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II, depois de terminada a ditadura de Costa Cabral, cuja censura impedira que isso acontecesse mais cedo.
Palmira Nabais, introdução à edição de Frei Luís de Sousa
X - Frei Luís de Sousa
Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, a vida criada, vinga-se cruelmente da vida presente e em criação. Os vivos não têm culpa nenhuma disto. D. Madalena foi sempre uma esposa fiel; seu marido um exemplar português, admirador do suposto morto, e a filha de ambos um anjo. (...).
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais. dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade. mesmo sem acontecimentos. Quando estes se começam a desencadear, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso. o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor. mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
– Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.
António José Saraiva, História da Literatura Portuguesa
XI - Frei Luís de Sousa
Manuel de Sousa Coutinho (tal o nome que teve no século este grande prosador) n. em Santarém cerca de 1555 e m. em 1632 [Lisboa]. (...) Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes (...). Prestou serviços a Filipe II de Espanha, que o recompensou, em 1592, com uma tença de 200$000; de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou, por 1584-86, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido em Alcácer-Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada, com o posto de coronel. Em 1600, sendo Lisboa assolada pela peste, os governadores do Reino quiseram instalar-se em Almada, numa casa de D. Manuel, que para impedir tal violência, lhe lançou fogo. Na origem deste episódio estão questões pessoais, que não hostilidade ao Rei castelhano. (...)
Em 1613, quando já lhes falecera uma filha única, D. Manuel e D. Madalena resolveram seguir o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica, ela no convento, dominicano também, do Sacramento. O primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, no prefácio da 2ª parte da História de S. Domingos, entre várias opiniões que corriam sobre aquele insólito facto, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim a vida em comum de D. Manuel e D. Madalena tornara-se impossível. Esta versão constitui o ponto de partida do Frei Luís de Sousa de Garrett. (...) No claustro deu exemplo de grande austeridade, desempenhou o cargo de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa – ao mesmo tempo que se consagrava a tarefas literárias de vulto.
Uma dessas tarefas foi elaborar os materiais deixados por Frei Luís de Cácegas, investigador da mesma Ordem, para a biografia de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, um dos mais ilustres domínicos, Arcebispo de Braga (1514-1590).
Jacinto do Prado Coelho, «Frei Luís de Sousa», em Dicionário de Literatura
XII - Processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade de Telmo
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afectiva sobre a morte do amo.
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»
Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas
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