quarta-feira, 5 de maio de 2010

Revista Águia

Revista literária e científica publicada no Porto entre Dezembro de 1910 e 1932, num total de 26 volumes e dividida em 5 séries. De orientação claramente republicana e associada à Renascença Portuguesa, nela colaboraram alguns dos principais valores intelectuais da nova geração, de tendência socialista ou vindos de movimentos anarquistas, tais como Augusto Casimiro, Mário Beirão, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Afonso Duarte, António Carneiro, Sant'Anna Dionísio, Hernâni Cidade, Adolfo Casais Monteiro, Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira, António Sérgio, António Correia de Oliveira, Manuel Laranjeira, Sampaio Bruno e Raul Proença, mantendo ainda correspondência no estrangeiro com autores como Unamuno. Um dos seus directores na parte literária foi o poeta Teixeira de Pascoaes. Era também possível encontrar nesta publicação inéditos de Alexandre Herculano, Antero de Quental e Camilo, entre outros.
A Águia surgiu de um projecto de promoção da cultura nacional cumprido na edição, na fundação de universidades populares, na realização de cursos e colóquios, na constituição de bibliotecas, entre outras acções. A revista nasceu de uma ânsia de ressurgimento nacional, de um novo Portugal, expressa através de artigos sobre assuntos variados, desde escritos filosóficos e literários, até artigos sobre a reforma do ensino, a reforma agrária e a reforma das instituições.
A direcção de Teixeira de Pascoaes impregnou o programa da "Renascença" de um ideal saudosista: a saudade, expressão da "alma portuguesa", é, para Pascoaes, "o próprio sangue espiritual da Raça, o seu estigma divino, o seu perfil eterno".
Simultaneamente movimento literário de cariz neo-romântico e propensão metafísica, e doutrina religiosa, política e filosófica, o saudosismo incutirá a A Águia um clima profético, de expectativa sebastianista e messiânica, para o qual contribuirá o jovem colaborador Fernando Pessoa, com a série de artigos "A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada". A acusação do carácter idealista, passadista e utópico desta postura, levantada, ainda na segunda série (1912-1921) ao longo de uma acesa polémica entre Teixeira de Pascoaes e António Sérgio, conduzirá à dissidência de alguns colaboradores que viriam a integrar o projecto da revista Seara Nova, como António Sérgio e Raul Proença.

Modernismo (1915 Actualidade)

Os primeiros anos do século XX europeu acusam profundas e amplas transformações culturais e estéticas, das quais não poucas tinham sido lentamente gestadas ao longo do século XIX: quase se diria que as mutações anteriores apenas serviram de ensaio para alguma coisa de novo que só veio a declarar-se, explosivamente, na alvorada desta centúria.
Como sempre, Portugal procurou adaptar-se ao ritmo europeu e beneficiar-se do progresso cultural em curso, embora reduzindo-o à sua medida enquanto povo, história e mentalidade. Tanto é assim que, hipertrofiando uma tendência que vinha do Realismo (para não dizer que vinha desde os românticos exaltados), se avoluma a onda de insatisfação contra o regime monárquico, incapaz de resolver os problemas mais urgentes da Nação e oferecer um clima normal de tranquilidade e progresso. A ditadura de João Franco (1905-1906), com toda a sua coorte de injustiças, mais ainda acirra os ânimos contra a Monarquia reinante. Até que, cul-minando a atmosfera de tensão que crescia incontrolavelmente, o Rei D. Carlos é assassina-do por um homem do povo em 1908, quando voltava, em carruagem aberta, de uma de suas habituais estações de caça em Vila Viçosa. Generaliza-se a desordem e a sanguinolência. Como no atentado também falecera o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, imediatamente é chamado a ocupar o trono D. Manuel II, que sobrevivera ao morticínio no Terreiro do Paço. Muito jovem ainda (nascera em 1886) e ascendendo ao poder em clima de turbulências, a nova situação em que se encontra o País, logo se formam 'duas facções, opostas no modo como a encaram: uma delas, satisfeita, ou conformada com a República, procura dar-lhe bases, uma doutrina ou filosofia tipicamente Portuguesa; a outra, a dos inconformados, dos insatisfeitos com o novo estado de coisas, assume um carácter contra-revolucionário e aglutina-se em torno de António Sardinha (1888-1925), em 1914, formando o grupo do Integralismo Português, de que veio a sair o Estado Novo, em 1926.

Para a história das ideias em Portugal neste século, o grupo dos republicanos satisfeitos ou conformados tem Maior relevância, graças ao papel que desempenha desde a primeira hora em que se instaura o novo sistema de governo. Em 1910, surge A Águia, revista mensal de "literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social", logo tornada órgão da Renascença Portuguesa, rótulo que os conformados passaram a usar como expressão de seu programa de fundamentação e revigoramento da cultura Portuguesa, em moldes modernos. As principais figuras do movimento são: Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra. Ao primeiro cabe o papel de mentor e de doutrinador, tendo por base o estabelecimento duma filosofia autenticamente lusitana, em torno da saudade, o Saudosismo: "O fim desta Revista", diz Teixeira de Pascoaes no editorial com que abre a segunda série d’A Águia, começada em 1912, "como órgão da `Renascença Portuguesa' será, portanto, dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui; isto é, coloca-las em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa todas as almas sinceramente Portuguesas: - Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arranca-la do túmulo onde a sepultaram alguns séculos de obscuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram." Passando para o exame da alma Portuguesa, chega finalmente ao seu destino: a Saudade, que "é o próprio sangue espiritual da Raça; o seu estigma divino, o seu perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção reflectida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina. Eis a Saudade vista na sua essência religiosa, e não no seu aspecto superficial e anedótico de simples gosto amargo de infelizes". E mais categoricamente: "É na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria Renascença, original e criadora". A Águia leva uma segunda série até 1916, e uma terceira até 1930, quando desaparece, mas em 1913 opera-se uma cisão interna que provoca o afastamento de António Sérgio, Jaime Cortesão e Raul Proença, inconformados com o carácter visionário que vai assumindo o Saudosismo de Pascoaes. Do cisma vai nascer, em 1921, a Seara Nova, onde o grupo dissidente procura levar a cabo um programa de reforma cultural de bases nacionalistas, científicas e tanto quanto possível dentro duma visão universalista. Com esse desiderato, a revista se mantém até hoje.
Entretanto, o visionarismo de Pascoaes consegue momentâneamente empolgar um grupo de jovens literatos de Lisboa, aparecidos entre 1912 e 1915, alguns deles inclusive chegando a colaborar nA Águia, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em 1915, ainda reflectindo o clima saudosista, lançam a revista Orpheu, com que tem início o Modernismo em Portugal. Antes, porém, de entrar neste capítulo, torna-se necessário minuciar a trajectória literária de Teixeira de Pascoaes.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Orfismo

O Saudosismo de Teixeira de Pascoaes e A Águia atraíram alguns jovens, dentre os quais Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Mário Beirão (1892-1965), Afonso Duarte (1886-1957), Raul Leal (1886-1964) e outros. Em pouco tempo, todavia, eles alcançam superar a iniciacção saudosista, e à luz das modernas correntes europeias no terreno estético e no filosófico (Picasso, o Cubismo, o Futurismo, Max Jacob, Apollinaire, Max Nordau, etc.) evoluem francamente para o Modernismo, por momentos confundido com o Futurismo.
Em 1915, alguns deles, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal, mais Augusto de Santa-Rita Pintor, Luís de Montalvor, Almada-Negreiros, Rui Coelho, Tomás de Almeida, Alfredo Guisado, Armando Cortes-Rodrigues e, de passagem, o brasileiro Ronald de Carvalho, resolvem fundár uma revista que sirva de porta-voz e concretização de seus ideais estéticos, em consonância com o que vai no resto da Europa. Nasce o Orpheu, cujo primeiro número, correspondente a Janeiro-Fevereiro-Março, aparece em 1915, sob a direcção de Luís de Montalvor, para Portugal, e de Ronald de Carvalho, para o Brasil (na verdade, a ideia surgira numa conversa entre os dois travada no Rio de Janeiro, quando o primeiro era funcionário da Embaixada de seu País). Na "Introdução" com que abre o número inicial da publicação, Luís de Montalvor procura fazer a profissão de fé literária de todo o grupo. Referindo-se à revista, diz: "Puras e raras suas intenções com seu destino é o do: - Exílio! Bem propriamente, ORPHEU, é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento...
Nossa pretensão é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal eso-térico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos."
E mais para o fim:
"E assim, esperançados seremos em ir a direito de alguns desejos de bom gosto e refinados propósitos em arte que isoladamente vivem por aí", etc.
De acordo com essas ideias estetizantes e confessadamente esotéricas, põem-se a criar uma poesia alucinada, chocante, irritante, irreverente, com o fito de provocar o burguês, símbolo acabado da estagnação em que se- encontra a cultura Portuguesa. A poesia, elevada ao mais alto grau, entroniza-se como a forma ideal de expressar o espanto de existir, e sintetiza toda uma filosofia de vida estética, sem compromisso com qualquer ideologia de carácter histórico, político, científico ou equivalente.
A aderência ao modernismo significa, pois, o rompimento com o passado, inclusive em sua feição simbolista.
Por outros termos, corresponde a um momento em que as consciências se elevam para planos de universal indagação, para a verificação de uma angústia geral, fruto da crise que engolfa a Europa e o Mundo. A guerra de 14 é manifestação nítida dessa crise, provocada pela necessidade de abandonar as velhas e tradicionais formas de civilização e cultura (de tipo burguês) e de buscar novas fórmulas substitutivas. O homem posta-se à frente do espelho, sozinho perante a própria imagem, e angustia-se porque vive uma quadra de desdeificação do mundo, de Beleza, de ausência de Deus ou de qualquer verdade absoluta capaz de explicar-lhe a incoerência visceral e a sem-razão do existir. O reino da anarquia instala-se como fruto do relativismo, nascido com a grande viragem histórica representada pela cultu-ra romântica, de que o Modernismo é legítimo caudatário. Está-se no ápice do processo, ou no início dum estágio mais avançado, como os anos posteriores vieram mostrar. Nasce o desespero, a instabilidade total, porquanto os padrões estão em mudança ou devem ser mudados. Nessa atmosfera, a poesia substitui os mitos, transformando-se, ela própria, num mito.
Um segundo número do Orpheu é publicado, em 1915, sob a direcção de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, confirmando o alcance da nova revista e provocando escândalo sufi ciente para determinar a reviravolta cultural preconizada pelos moços. Um terceiro número, embora no prelo, não chega a sair: Mário de Sá-Carneiro, que vem sustentando financeiramente o periódico, suicida-se. Apesar da efémera duração, o órgão havia alcançado seu objectivo, ao mesmo tempo que introduzia o Modernismo em Portugal.
Nos anos seguintes, outras revistas e jornais foram aparecendo com semelhante propósito, ainda que obedecendo a diversa orientação: Centauro (1916), Portugal Futurista (1917), Athena (1924-1925), Contemporânea (1922-1923), Bizâncio (1923), etc.
Dos participantes no Orpheu, merecem destaque Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada-Negreiros.

Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

terça-feira, 4 de maio de 2010

...com a morte de Sá-Carneiro

Com a morte de Sá-Carneiro, desaparece o Orpheu, mas não o espírito que o orientou. Embora dotadas de carácter diverso e autónomo, outras revistas vem ocupar-lhe o lugar e continuar-lhe o programa de agitar o estagnado ambiente literário português. Entre outras, citam-se as seguintes: a Revista de História (dirigida por Fidelino de Figueiredo, 1912-1928),
o Centauro (1916), o Portugal Futurista (1917), a Seara Nova (1921), a Contemporânea (1922), Athena (1924), a Lusitânia - Revista de Estudos Portugueses (1924-1927), etc., além da Nação Portuguesa (1914-1938), órgão do Integralismo Português e, portanto, avesso ao sentido das primeiras.
Todavia, à margem dos acontecimentos que envolvem estas publicações e não levando em conta escritores de épocas anteriores que ainda continuam a produzir depois de instalado o Modernismo, dois nomes alcançam nomeada e produzem obra de merecido relevo: Florbela Espanca e Aquilino Ribeiro.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.

Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.

Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu su perar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.

Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.

Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.

Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bour-geois, um rumo autentico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "interseccionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."

Com base nesses postulados - e nos demais, oue seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligência construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relactividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relactividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desinte-gração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.

Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.

Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relactividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.

Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heteronimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.

Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heteronimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:

Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essêncial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se ve, / E nem pensar quando se ve, / Nem ver quando se pensa".

Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."

Alvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".

Além desses heteronimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que conside-rar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lirico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.

Em qualquer hipótese, seja qual for o heteronimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estáctica em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.

Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no congraçamento harmonico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.

Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".

Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.

Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em cliches, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.

Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.

Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).



Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.

Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.

Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu su perar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.

Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.

Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.

Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bour-geois, um rumo autentico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "interseccionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."

Com base nesses postulados - e nos demais, oue seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligência construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relactividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relactividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desinte-gração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.

Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.

Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relactividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.

Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heteronimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.

Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heteronimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:

Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essêncial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se ve, / E nem pensar quando se ve, / Nem ver quando se pensa".

Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."

Alvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".

Além desses heteronimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que conside-rar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lirico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.

Em qualquer hipótese, seja qual for o heteronimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estáctica em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.

Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no congraçamento harmonico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.

Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".

Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.

Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em cliches, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.

Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.

Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).



Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Mário de Sá-Carneiro

Poeta e ficcionista, Mário de Sá-Carneiro constitui, tal como Fernando Pessoa e Almada-Negreiros, um dos principais representantes do Modernismo português. Nasceu em Lisboa, a 19 de Maio de 1890, e morreu precocemente a 26 de Abril de 1916, também em Lisboa. Iniciou os seus estudos em Direito na cidade de Coimbra, tendo partido depois para Paris, em 1912, para cursar também Direito, estudos que abandonaria pouco depois por se ter deixado seduzir por uma vida desregrada e de boémia. De temperamento instável e inadaptado, dedicou-se, na capital francesa, à produção de grande parte da sua obra poética. A figura de Mário de Sá-Carneiro assume uma importância basilar para a compreensão do modo como o Modernismo português se foi formando com caracteres próprios na recepção das correntes de vanguarda europeias, processo de que a correspondência que estabeleceu com Fernando Pessoa dá um testemunho documental precioso e que culminaria com a publicação de Orpheu, em 1915. Os poemas que edita no primeiro número de Orpheu, destinados a Indícios de Oiro, são, a este título, significativos da sua adesão às estéticas paúlica e sensacionista, que na correspondência entre os dois grandes poetas fora gerada, glosando, então, em moldes muito devedores do simbolismo-decandentismo, a abjecção de um eu em conflito com um outro, reverso da sua frustração e insatisfação ("Eu não sou eu nem o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro,..."), ao mesmo tempo que a publicação de "Manucure", no segundo número de Orpheu, revela uma incursão por uma forma poética mais próxima da escrita da vanguarda futurista, no que contém de autonomização do significante. Já antes de Orpheu, a colaboração de Mário de Sá-Carneiro na revista Renascença (1914) - onde Fernando Pessoa publica Impressões de Crepúsculo -, com a edição de Além (apresentado como uma tradução portuguesa de certo Petrus Ivanovitch Zagoriansky), instituíra a sua experiência poética na charneira entre a herança simbolista e as tentativas paúlicas e interseccionistas. Mário de Sá-Carneiro constitui ainda um paradigma da prosa modernista portuguesa pela publicação das narrativas Céu em Fogo e A Confissão de Lúcio, construídas frequentemente a partir do estranhamento de um narrador insolitamente introduzido em situações onde o erotismo, o onirismo e o fantástico se associam aos temas obsessivos do desdobramento e autodestruição do eu. O seu suicídio, com 26 anos (em 1916, Paris), parecendo vir selar aquele sentimento de inadaptação à vida, de permanente incompletude, de narcísico auto-aviltamento e, sobretudo, de consciência dolorosa da irremediável cisão do eu, consubstanciada na dramática tensão entre um eu, vil e prosaico, e um outro, seu duplo ideal, que alimentaram tematicamente a obra, nimbou-o para a posteridade de uma aura de poeta maldito, que deixaria um forte ascendente sobre a poesia contemporânea de gerações posteriores à sua. Com efeito, a mensagem poética do autor de Indícios de Oiro ecoa postumamente na literatura presencista da geração de 50 e até surrealista, passando por nomes absolutamente diversos como Sebastião da Gama, Mário de Cesariny ou Alexandre O'Neill.

Bibliografia: Princípio: Novelas Originais, Lisboa, 1912; A Confissão de Lúcio, Lisboa, 1914; Céu em Fogo, Lisboa, 1915; Cartas a Fernando Pessoa, Lisboa, 1958-59; Dispersão: 12 Poesias, Lisboa, 1914; Indícios de Oiro, Porto, 1937; Poesias, 1946; Poemas Completos, Lisboa, 1996



Publicada por Helena Maria

Miguel Torga

Miguel Torga, pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nasceu em São Martinho da Anta (Trás-os-Montes), em 1907. Formado em Coimbra, pertenceu ao grupo inicial da Presença. Desligando-se dela em 1930, em companhia de Edmundo de Bettencourt e de Branquinho da Fonseca, com este último lança no mesmo ano a revista Sinal e depois a Manifesto. Viveu em Coimbra, entre a clínica e a Literatura.


Tem cultivado a poesia, a prosa de ficção e, incidentalmente, o teatro. Em poesia, escreveu: Ansiedade (1928), Rampa (1930), Tributo (1931), Abismo (1932), O Outro Livro de Job (1936), Lamentação (1943), Libertação (1944), Odes (1946), Nihil Sibi (1948), Cântico do Homem (1950), Ah uns Poemas Ibéricos (1952), Penas do Purgatório (1954), Orfeu Rebelde (1958), Câmara Ardente (1962). Em prosa: Pão Ázimo (1931), A Criação do Mundo (3 vols., 1937, 1938 e 1939), Bichos (1940), Montanha (1941), Novos Contos da Montanha (1944), Vindima (1945), Pedras Lavradas (1951). Em poesia e prosa: Diário (10 vols., 1941-1968). Em teatro: Terra Firme e Mar (1941), Sinfonia (1947), O Paraíso (1949).

Toda essa extensa e variada obra gira em torno da mesma ideia motivadora: Miguel Torga é sempre o mesmo homem de pés fincados na terra transmontana, porque nela espera encontrar a explicação para a angustiante condição humana, imediatamente transformada em seu espírito num problema teológico-existencial armado ao redor de indagações-chaves:
quem somos? por que estamos aqui? qual a razão da existência? e a morte? e Deus? Do jogo paradoxal em que se envolvem as perguntas, nasce-lhe a revolta, indignada e violenta algumas vezes, serena e branda outras, mas orientada contra tudo quanto constitui a "circunstância"na qual está mergulhado, e logo transfigurada numa ira titânica contra os Elementos ou Deus, cujo poder não consegue compreender, aceitar ou abater. Como se friccionasse com lixa a alma actormentada, no afã de viver a vida intensamente através do desespero consciente, seu telurismo abre-se em profundos caminhos, desde a blasfémia herética e pagã até uma relativa entrega às forças contra as quais luta em vão, ou converte-se num panteísmo nervoso e tenso, quando não deprimido: em suma, uma "agonia" permanente, a lembrar o mesmo transe em que viveu Manuel Laranjeira, igualmente a debater-se por entre as malhas de dúvidas cruéis e de apelos sem resposta: "Me confesso de ser Homem! / De ser o anjo caído / Do tal céu que Deus governa; / De ser o monstro saído / Do buraco mais fundo da caverna".

Na essência, Miguel Torga constitui um complexo escritor-poeta de largas e humaníssimas medidas interiores, a pra curar impaciente e inocuamente converter em realidade concreta um sentimento humanista que não encontra eco em nada, na terra, no mar, ou no Alto. A consequência imediata para um tal Prometeu amarrado à vida é a solidão, a sensação de exilado no mundo, a vibrar continuamente entre estímulos opostos e a buscar na terra de origem um consolo utópico. O embate incessante em que se empenha o poeta através de estertres e brados ansiosos, apesar da calma ocasional (como em Bichos), produz um "canto" dos mais vigorosos da Literatura Portuguesa actual, em que palpita uma vibração cósmica de remotas e acendradas raízes ibéricas. Melhor que a poesia e a prosa de ficção, documenta o "caso" de Miguel Torga o seu Diário, permanente registo sismográfico de sua atracção pelo abismo e seu incorrespondido humanitarismo: nesse particular, talvez esta obra constitua o ponto alto de sua carreira literária.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

Florbela Espanca

Florbela Espanca tem sido considerada muito justamente a figura feminina mais importante da Literatura Portuguesa. Sua poesia, mais significativa que seus contos, e produto duma sensibilidade exacerbada por fortes impulsos eróticos, corresponde a um verdadeiro diário íntimo onde a autora extravasa as lutas que travam dentro de si tendências e sentimentos opostos. Trata-se duma poesia-confissão, através da qual ganha relevo eloquente, cálido e sincero, toda a angustiante experiência sentimental duma mulher superior por seus dotes naturais, fadada a uma espécie de donjuanismo feminino. A poetisa, como a desnudar-se por dentro, sem pejo ou preconceito de qualquer ordem, põe-se a confessar abertamente suas íntimas comoções de mulher apaixonada. O modo como procede, a temperatura da confidência amorosa, os reptos e os fulgores duma paixão incontrolável e escaldante, só encontra semelhança nas Cartas de Amor de Sóror Mariana Alcoforado. Aliás, a semelhança entre elas é muito Maior do que parece, quanto mais não fosse, porque ambas eram alentejanas...
A trajectória poética de Florbela inicia-se sob a égide de António Nobre, seja nos versos que vão compor a juvenilia, seja no Livro de Mágoas: esteticismo, narcisismo e culto literário da Dor: "Poeta da Saudade, ó meu poeta q'rido", "ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos", "os males d'Anto toda a gente os sabe! ".
Fase tateante ainda, mas onde já se vislumbra o encontro dum caminho autentico, duma dicção poética pessoal e forte. Com o Livro de Sóror Saudade, Florbela se encontra definitiva mente enquanto poetisa: o soneto, descoberto como a forma ideal para se exprimir, passa a ser largamente cultivado, embora sob a influência sensível dos sonetos anterianos. Conquis-tava, assim, o veículo que melhor lhe permitia confessar o drama íntimo, numa forma cada vez mais cuidada e límpida. Seu drama amoroso amadurece e desenvolve-se-lhe a expressão correspondente. Erótica e emocionalmente insatisfeita, sofre porque a sociedade não lhe compreende o conflito íntimo e a escorraça por querer a realização de apetências que catalogam de imorais, sem lhes compreender o alcance e a altitude. Mais, porém, que a hipócrita condenação social, faz sofrer à poetisa a ausência dum "outro", ou melhor, do "Outro", para satisfazer-lhe a ânsia dum amor mais forte que a vontade e as convenções burguesas:
"O amor dum homem? - Terra tão pisada, / Gota de chuva ao vento boloiçada... / Um homem? - Quando eu sonho o amor dum Deus!... ".
Uma tão obsessiva e poderosa capacidade de amar, sendo incorrespondida, derrama-se na Natureza, originando poemas de tons panteísticos logo transformados em melancólica ter-nura pela terra-mãe, por Évora, pelos lugares da adolescência e por ela própria. Exaustos de suplicar um amor integral, seus sentidos pedem o repouso no solo de onde ela recebeu toda a demoníaca força que lhe vai nas entranhas. A Morte, agora, põe-se a substituir seu anseio de Vida: "Deixai entrar a Morte, a iluminada, / A que vem para mim, pra me levar, /Abri todas as portas par em par / Como asas a bater em revoada."
Está-se na fase derradeira da poesia de Florbela, representada pelos sonetos de Charneca em Flor e Reliquae: embora menos impressionante e comovente como estado confessional, pois o relativo apaziguamento da luta interior vem acompanhado de renúncia e prostracção, corresponde ao ápice artístico de sua carreira de poetisa. Seus sonetos atingem agora um refinamento raro e uma imediata força comunicativa, próprios duma sensibilidade que subtilizou o amor a pouco e pouco até assumir uma olímpica resignação de quem traz "no olhar visões extraordinárias", e só tem "os astros, como os deserdados... ", passando por efémeros momentos de realização amorosa, numa plenitude que a leva a confessar ao Outro: "Dentro de ti, em ti igual a Deus!... ". Em matéria poética expressa em vernáculo, outra voz feminina igual não se ergueu até hoje.



Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

José Régio

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, em 1901. Ainda estudante na Faculdade de Letras de Coimbra, inicia sua carreira literária com Poemas de Deus e do Diabo (1925). Em 1927, funda, edita e dirige com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca a revista Presença. Formado, segue para o Porto, onde fica algum tempo, e de lá para Portalegre, como professor no Liceu Mousinho da Silveira. Faleceu em 1969, na cidade natal.
Ao longo duma intensa e persistente actividade literária, num recolhimento que nada concedia aos "grupos" ou "igrejinhas", José Régio dedicou-se à poesia, ao teatro, ao conto, ao romance e à crítica. Em poesia, afora os Poemas de Deus e do Diabo, escreveu: Biografia (1929), As Encruzilhadas de Deus (1936), Fado (1941), Mas Deus é Grande (1945), A Chaga do Lado (1955), Filho do Homem (1961), Cântico Suspenso (1968), Música Ligeira (1970). Teatro: Primeiro Volume de Teatro (Jacob e o Anjo) (1941), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947), El-Rei Sebastião (1.949), A Salvação do Mundo (1954) e três Peças em um acto (1957). Contos: Histórias de Mulheres (1946), Há mais mundos (1962), Davam grandes passeios aos domingos... (1941). Romances: Jogo da Cabra-Cega (1934) ; O Príncipe com Orelhas de Burro (1942) e o ciclo d'A Velha Casa: Uma Gota de Sangue (1945), As Raízes do Futuro (1947), Os Avisos do Destino (1953), As Monstruosidades Vulgares (1961), Vidas são vidas (1966). Crítica: Críticos e Criticados (1936), António Botto e o Amor (1938), Em Torno da Expressão Artística (1940), Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa (1941), Ensaios de Interpretação Crítica (1967), três Ensaios sobre Arte (1967), etc.


Em todas essas formas de expressão, é sempre o mesmo intelectual convicto e superiormente cônscio da importância de sua múltipla actividade literária, como nascida do imperativo duma espécie de missão civilizadora que não se curva a nada, mesmo a uma espessa solidão capaz de levá-lo ao desespero. O centro nevrálgico de sua obra, especialmente a poética, é representado por um problema de simultânea raiz intelectual e sensitiva: a do diálogo entre Homem e Deus, em que o primeiro manifesta irrecorrível necessidade do Absoluto. O poeta quer Deus, desespera-se, angustia-se na procura, mas ao mesmo tempo gostaria de não o querer, tal o seu egocentrismo: o seu sofrimento íntimo nasce do facto de sentir a necessidade do Absoluto, que lhe dá a medida de sua pobre relactividade terrena. Quando a desesperança vence o orgulho, o poeta arrasta-se, despoja-se, vencido e entregue à visão da transcendência, ao mesmo tempo temida e desejada: "Sobre o verme que sou, lento, descia / O olhar desses dois poços de clarões. / Sua boca selada se entreabria / Como as ondas, as rosas, os vulcões... / E a sua voz, imensa sinfonia / De palrar de águas e ecos de trovões, / Disse à pobre minh'alma confundida: / `Tu me recusas, tu, que achaste a Vida?' ".


Dessa atmosfera densamente dramática, trágica, nasce uma obra forte, quente, máscula e austera como poucas, pois o poeta não escreve embalde, mas sim quando uma "voz" o compele e lhe dita os poemas em que derrama sua torrencial vida interior. Em José Régio, a poesia nasce aos jactos, mas sem destruir uma permanente lucidez reflexiva pronta a policiar e a compreender, que confere travamento e solidez às intuições divinatórias do poeta.
Pelo aspecto religioso, José Régio repõe uma problemática antes encontrada em Antero e em Guerra Junqueiro: ao primeiro assemelha-se pela gravidade posta na solução dum problema vital, o da crença religiosa, apenas diferindo no facto de que Antero a perdera na mocidade e passara a vida toda à procura dum impossível sucedâneo; ao segundo, pela veemência revoltada, torrencial, que não se detém inclusive diante dos mais profundos.e perigosos abismos declamatórios. Entretanto, "o caso" que dá origem à sua poesia é tão forte e sincero, e vem servido de tão excepcionais recursos intelectuais, que logo faz compreender tratar-se de uma das obras mais significativas dos nossos dias. Diga-se, contudo, a bem da justiça que a trajectória poética de José Régio descreve uma curva ascendente com o ápice marcado pel'As Encruzilhadas de Deus: na verdade, o Fado, e mormente A Chaga do Lado,. em que o poeta ensaiava utilizar uma de suas possibilidades técnicas, p epigrama, traíam uma perda de tonus, que Filho do Homem e Cântico Suspenso, sua derradeira obra lírica publicada em vida, confirmaram. Entretanto, "a Poesia voltara, após uma longa ausência, a visitá-lo inesperadamente", confidênciava o poeta, nos começos de 1969, a Alberto de Serpa, seu amigo desde a juventude: dessa visita constituem registo fulgurante os poemas que integram o volume Música Ligeira, postumamente dado a lume. De fato, José Régio readquirira nos últimos meses de vida a mesma pulsação lírica de antes, enriquecida de um despojamento, uma leveza e um hermetismo novos, quem sabe fruto da clarividência trazida pela antevisão da morte.

Enquanto crítico, José Régio se mantém no mesmo nível: procurando fazer uma crítica de compreensão estética e psicológica, alcança não raro extraordinárias sínteses interpretativas, que o situam desde logo entre as grandes vocações críticas aparecidas depois de 1930; neste propósito, alguns dos capítulos de sua Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa constituem peças modelares enquanto súmulas duma interpretáção global de autores como Camilo Pessanha, António Nobre, etc.


Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

...se contextualizássemos séc XX...

A fase de decadência que a monarquia atravessava deixava já antever mudanças políticas (a implantação da República parecia inevitável) que levaram a cogitações sobre o destino dum país longe da grandiosidade doutras eras. Tal contemplação do passado confundia-se compreensivelmente com um sentimento de saudade que, no início do séc. XX, é mais do que um recurso literário e se torna mesmo um conceito filosófico.
Teixeira de Pascoaes (1877-1952) será o principal mentor desta corrente literário-filosófica, cuja doutrina estabelece em obras como Marânces (1911) e Elegia de Amor (1924).

A revista Águia, lançada por Pascoaes e editada entre 1910 e 1930, será a primeira de uma série de publicações literárias periódicas onde se vão encontrar os nomes mais significativos e inovadores da literatura portuguesa dos primeiras décadas do novo século.

Uma das mais efémeras mas mais relevantes seria Orpheu, cujo primeiro número surgiu em 1915 e iria divulgar em Portugal o Modernismo europeu, concretamente o Futurismo de Phillippo Marinetti, autor italiano partidário duma "actualização" da literatura e da arte em geral em relação aos novos tempos de progresso tecnológico.

Os primeiros mentores da Orpheu foram Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1915) e Almada Negreiros (1893-1970), o mais provocador e versátil de todos, nome também prestigiado das artes plásticas.

Sá-Carneiro publicou alguns contos, mas tornar-se-ia conhecido sobretudo como poeta. Dispersão (1914) revela logo no título a dificuldade de concentração, a pluralidade de opções com que o seu interior se confrontava, anunciando já o termo trágico que daria à sua vida.

Fernando Pessoa nunca viria a conhecer em vida uma ínfima parcela da fama de que, décadas depois da sua morte, a sua obra seria alvo. Caso único na literatura mundial, Pessoa foi além da sua própria personalidade enquanto escritor e criou uma série de heterónimos, autores por si imaginados, com estilos próprios e diferentes atitudes perante a vida.

A Fernando Pessoa, ele próprio, terá de chamar-se, em literatura, ortónimo, isto é, autor de textos assinados com o seu nome; são em grande parte poesia de carácter filosófico, centrada no mistério da vida. Mensagem foi o único livro que viu publicado (em 1934) e contém uma abordagem messiânica de aspectos da história de Portugal, envolta num grande misticismo.

O primeiro dos mais conhecidos heterónimos criados por Fernando Pessoa foi Alberto Caeiro, campesino pouco instruído, detentor duma sabedoria muito própria, duma capacidade de análise muito natural, mas nem por isso menos profunda. Álvaro de Campos, a que Pessoa atribui a profissão de engenheiro naval, é o arauto do mundo novo, mecanicista, onde o progresso é visível em cada nova máquina que irrompe na paisagem. As suas odes oscilam entre o entusiasmo pelas transformações que marcam as primeiras décadas do novo século e um certo tédio e desencanto perante a sua própria incapacidade de mudar o (seu) mundo. Curiosamente definido (biografado) por Pessoa como um monárquico exilado no Brasil, Ricardo Reis é um médico apaixonado pelos clássicos cujos poemas combinam um carácter morigerador com a defesa da liberdade de cada indivíduo.

Camilo Pessanha (1867-1926) é o primeiro verdadeiro poeta simbolista português, com uma produção marcada por um ritmo e uma musicalidade invulgares.

Ex-colaboradores da revista Águia juntaram-se para dar início a uma nova publicação literária, Seara Nova, que, entre 1921 e 1982, se tornou especialmente conhecida pelos ensaios (não só sobre literatura) que as suas páginas acolheram. Dos vultos inicialmente ligados a esta publicação merecem destaque o historiador Jaime Cortesão (1884-1960), o escritor Raul Brandão(1867-1930), expressionista que se preocupou em dar voz aos menos favorecidos, descrevendo as suas difíceis condições de vida, e que obteve alguma popularidade com Os Pescadores (1923), Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), escritor que foi também presidente da república, e Aquilino Ribeiro (1885-1963).

Aquilino Ribeiro imprimiu um tom regionalista aos seus romances a par duma linguagem riquíssima. O Malhadinhas (1922) e Terras do Demo (1928), entre outros, trazem à literatura portuguesa a vida dura dos habitantes das regiões mais isoladas do país, em descrições que ainda hoje não seriam de todo despropositadas.

De 1927 a 1940 há a salientar a importância da revista Presença, de que emergem nomes como José Régio (1901-1969) e Miguel Torga (1907-1995).

José Régio demonstrou a sua versatilidade em áreas como o teatro, a poesia, o romance e o ensaio. A temática dos seus trabalhos de ficção insere-se frequentemente numa auto-análise a que não é alheio algum misticismo e, sobretudo, o conflito entre o Homem e Deus. Enquanto ensaísta dedicou-se à literatura portuguesa, sendo um dos primeiros a abordar a obra de Florbela Espanca (1894-1930), poetisa independente de movimentos literários e que ousou passar a versos uma sensualidade até então desconhecida na (então ainda escassa) literatura feminina. Dos seus poemas não está também ausente um sentimento de desencanto perante a falta de oportunidades que a vida lhe dava no sentido de alcançar uma existência de menos sofrimento e solidão, à qual acabou por pôr termo.

Voltando à revista Presença e à inclusão de Miguel Torga nas suas páginas, forçoso é referir que o seu espírito intrinsecamente independente (patente, por exemplo, num Diário que manteve durante décadas) o levou a atingir um estatuto relevante na literatura portuguesa que faz com que a sua obra seja analisada fora da integração em correntes literárias. Da sua vasta produção, em que sobressai o talento de contista, merecem destaque Bichos (1940) e Contos da Montanha (1941), onde a força da natureza se interliga com uma certa religiosidade.

Dotado do mesmo espírito independente, perante a vida e a literatura, Ferreira de Castro (1898-1974) começou por escrever fora de Portugal, já que emigrou com doze anos para o Brasil, onde trabalhou como seringueiro na Amazónia e, posteriormente, como jornalista. Emigrantes (1928) e A Selva (1930) são exemplos duma prosa vivida que espelha muitos aspectos da sua experiência pessoal. À medida que a sua obra vai crescendo vão-se notando também mudanças a nível da linguagem, mais rica em A Lã e a Neve (1947), e da composição das personagens, mais aprofundada em A Missão (1954).

Porque relatou muito do que viveu e, essencialmente, porque fez uma descrição bastante pormenorizada das duras condições de vida das classes trabalhadoras, há quem considere Ferreira de Castro o introdutor do Neo-realismo na literatura portuguesa. A nível ideológico, porém, faltar-lhe-á (e muitos consideram isso importante) a militância política (ou mesmo político-partidária) que, em especial no caso do Neo-realismo português, marcou este movimento. Após o golpe de estado de 1926, os partidos políticos (entre os quais o Partido Comunista Português) só podiam sobreviver na clandestinidade e a censura foi assaz severa para com a imprensa e a literatura. A revista Vértice usufruiu duma actividade regular considerável, tendo em conta os condicionalismos impostos pela Comissão de Censura, e foi, por assim dizer, o órgão difusor do Neo-realismo, tentando, tanto quanto possível, dar expressão literária aos conflitos sociais e à luta do proletariado.

Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), autor de Esteiros (1941), obra dedicada a "homens que nunca foram meninos", Alves Redol (1911-1969), romancista, entre outros, de Gaibéus (1940) e Barranco de Cegos (1962), e Manuel da Fonseca (1911-1993), fecundo autor que chegou a ver obras suas adaptadas ao cinema e ao teatro após a Revolução de 25 de Abril de 1974, como Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958), foram alguns dos expoentes desta corrente literária empenhada na transmissão duma perspectiva marxista da vida e na discussão dos problemas dos extractos sociais mais humildes.

O desenvolvimento doutras formas de comunicação social ao longo do séc. XX tornou alguns escritores nomes familiares do chamado grande público, o que nem sempre, todavia, significava que a sua produção literária se tornasse substancialmente mais lida, uma vez que não se foram desenvolvendo hábitos de leitura na população.

Vitorino Nemésio (1901-1978), por exemplo, tornou-se especialmente conhecido por aparições semanais na televisão nos anos 70, em que evidenciava um estilo coloquial cativante que não escondia uma vasta cultura. Atrás de si tinha, porém, décadas de actividade como escritor e professor de literatura. Foi poeta, romancista e ensaísta e deixou vincada na sua obra a origem açoriana e um sentido apego a tradições populares. Mau Tempo no Canal (1944) reflecte bem a consciência social e literária dum escritor fisicamente ausente da sua terra natal, mas que a ela recorre como tema inesgotável.

Nos anos 60 o cinema foi veículo divulgador de parte da obra de Fernando Namora (1919-1989), médico de profissão, que passou do Neo-realismo ao Existencialismo à medida que, no desempenho dessa actividade, se afastou dos meios rurais e se radicou nos centros urbanos. Retalhos da Vida dum Médico, com um primeiro volume lançado em 1949, relatando experiências vividas no interior do país, e outro publicado em 1963, já com referências ao exercício da Medicina na capital, permitem, por si só, acompanhar a transformação do escritor e foram adaptados ao cinema, tal como Domingo à Tarde (1961), em que formula já questões de ordem metafísica.

A reflexão sobre a natureza humana foi praticamente o tema (mas com diferentes abordagens) de quase toda a produção literária de Vergílio Ferreira (1916-1996), exemplo mais claro do Existencialismo. Também graças a uma conseguida adaptação cinematográfica, Manhã Submersa, um dos seus primeiros livros (1944), tornou-se um êxito literário muito após a sua primeira edição. Escritor dos mais premiados a nível nacional e internacional, Vergílio Ferreira deixou num diário publicado desde 1981, Conta-Corrente, um contributo para o entendimento das mudanças sociais operadas no Portugal pós-25 de Abril.

Idêntica contribuição proveio de Natália Correia (1923-1993), muito mais conhecida pela sua poesia e pela truculência das suas intervenções na sociedade portuguesa, antes e depois da re-instauração da democracia. Sem se integrar numa corrente literária precisa, Natália Correia, que também abraçou a dramaturgia e o ensaio e foi responsável pela organização de antologias, toca pontualmente o Surrealismo, um surrealismo que, em Portugal, surge algo independente no tempo em relação às literaturas doutros países.

Mais claramente ligada a essa corrente, mas não presa a ela, é a produção poética de Alexandre O'Neill (1924-1986), repleta de ironia e sarcasmo. Como sucedeu com outros poetas, O'Neill viu (e nisso colaborou empenhadamente) alguns dos seus textos musicados e interpretados principalmente por Amália Rodrigues, a mais prestigiada cantora portuguesa. O fado foi um veículo para a divulgação junto de todas as classes de poemas de autores como Pedro Homem de Mello (1904-1984), oriundo da Presença e profundo estudioso do folclore português, ou David Mourão-Ferreira (1927-1996), também contista, ensaísta e professor catedrático, por cuja obra perpassa um erotismo e uma elegância formal únicos na literatura portuguesa.

David Mourão-Ferreira foi também o que pode designar-se dum "poeta de Lisboa", sendo de ter presente que a capital portuguesa foi o último bastião das tertúlias literárias. Particularmente a Lisboa se associa também uma certa boémia intelectual, vivida e admirada, por exemplo, por José Cardoso Pires (1925-1998), que preferiu deixar patentes as suas preocupações sociais e políticas numa literatura objectiva, algo influenciada pelos mestres contistas norte-americanos e fortemente crítica em relação à actuação do Estado Novo. O Delfim (1968) e Dinossauro Excelentíssimo (1972) são romances que revelam uma oposição contundente aos valores mais preservados pelo regime anterior à Revolução de 25 de Abril de 1974 e que mais contribuíam para a atmosfera fechada (dir-se-ia mesmo sufocante) então vivida em Portugal. Cardoso Pires consegue um outro grande êxito literário e de vendas com Balada da Praia dos Cães (1982), sobre um caso famoso ocorrido no seio da oposição ao salazarismo no início dos anos 60.

A década de 60, com a eclosão da Guerra Colonial, foi, aliás, determinante na tomada de consciência política de muitos escritores, que, mesmo sem uma actividade militante, usaram a palavra como arma contra a situação vigente. Sophia de Mello Breyner Andresen (nascida em 1919), após uma fase de literatura voltada para o universo infanto-juvenil e duma poesia com uma linguagem extremamente equilibrada, marcada pela admiração pela civilização grega, passa com Livro VI (1962) a mostrar de forma cada vez mais clara a sua oposição a situações de injustiça. Após a Revolução de Abril, Sophia de Mello Breyner Andresen tem sido uma das escritoras mais premiadas e homenageadas.

A chamada Revolução dos Cravos trouxe consigo a abolição da censura e uma maior divulgação das obras literárias, ainda que já não tanto ao abrigo de revistas literárias. Há, de qualquer modo, a salientar o Jornal de Letras, publicado com assinalável periodicidade desde o início dos anos 80, e a maior informação sobre novidades literárias na comunicação social.

Aumentou o número de prémios literários, para primeiras obras e para a consagração de carreiras. Agustina Bessa-Luís (nascida em 1922), profícua romancista, ímpar na capacidade de análise de personagens e situações e frequentemente influenciada por momentos e figuras da história de Portugal, é certamente dos nomes mais premiados. O seu romance A Sibila (1954) é unanimemente considerado um marco na literatura portuguesa, tendo já constado dos programas oficiais do ensino secundário.

A divulgação da literatura nas escolas tem sido alvo de amplo debate, sendo praticamente impossível chegar-se a uma conclusão sobre que autores incluir nas cadeiras ligadas à língua e cultura portuguesa. Os hábitos de leitura nunca foram grandes (e, sobretudo, nunca foram devidamente fomentados) entre os Portugueses, embora haja aumentado o número de bibliotecas, e novas formas de ocupação dos tempos livres mostram-se, de certo modo, adversárias da literatura, pelo menos na sua forma mais tradicional. Alguns jovens autores, muito em especial na área da poesia, como, por exemplo, José Luís Peixoto ou Jacinto Lucas Pires (também com incursões no teatro), têm sido bem-sucedidos na aceitação dos seus trabalhos, não descurando uma linguagem mais próxima da que é usada no dia-a-dia pelas camadas mais jovens e procurando formas actuais (especialmente no primeiro caso) de divulgação das suas obras.

A transição do séc. XX para o séc. XXI testemunha também o aparecimento duma literatura leve (é frequentemente chamada de "light"), fenómeno algo recente em Portugal mas desde há décadas bastante comum noutras latitudes (com designações como, por exemplo, "literatura de aeroporto") e que, se bem que recebida, no mínimo, com reticências por parte dos círculos mais literatos, trouxe, pelo menos, a vantagem de ter conseguido atingir assinaláveis volumes de vendas. Se os recém-conquistados leitores decidirão "atravessar a ponte" e alcançar uma outra margem literária, formal e ideologicamente mais complexa, é uma questão que fica em aberto para o novo século.

...considerando o modernismo...

No início do séc. XX as revistas culturais foram o principal meio de divulgação das transformações sofridas pela arte. No ano de 1910 surgiu, em Portugal, a revista mensal "A Águia", dirigida por Teixeira Pascoaes. O objectivo dessa revista era ressuscitar a Pátria Portuguesa a partir do saudosismo, ou seja, por uma espécie de retomada das tradições do País.
O período em que a revista "A Águia" circulou é conhecido também como Saudosismo. Por ser um momento de transição, uma vez que em 1915 surge a revista "Orpheu", marco inicial do Modernismo português, esse período também pode ser classificado como Pré-Modernismo.

O Modernismo em Portugal é difícil de ser estruturado. Alguns estudiosos dividem-no em dois, três e até mesmo em quatro momentos. Quanto ao primeiro e segundo momentos não há divergências entre esses estudiosos, mas as duas outras fases geram muitas controvérsias.
Após muita pesquisa, optou-se em dividir o período Modernista português em duas partes: Primeiro Momento ou Orphismo e Segundo Momento ou Presencismo. As duas outras fases são classificadas como Neo-realismo e Surrealismo.

Isto justifica-se porque os escritores da fase Neo-realista repudiam a literatura psicológica e propõem uma literatura de carácter social, muito próxima à praticada pelos autores Realistas. Já os escritores da fase Surrealista são influenciados pelas teorias de Andre Breton, idealizador do Surrealismo.
Devido a todas estas circunstâncias, o ano de 1940, quando o grupo da Presença se desintegrou, é considerado o término do período Modernista em Portugal.


O MODERNISMO em Portugal tem início oficial no ano de 1915, quando um grupo de escritores e artistas plásticos lança o primeiro número da "Orpheu", revista trimestral de literatura. Esse grupo é composto por Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal, Luís de Montalvor, Almada Negreiros o brasileiro Ronald de Carvalho e, entre outros, o fantástico e polémico, Fernando Pessoa e seus heterónimos (Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro).

Segundo Luís de Moltalvor, Orpheu "é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento". Ainda conforme Moltalvor, a pretensão dos integrantes da Orpheu "é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermos".
Esses jovens artistas, também conhecidos como Orfistas, foram influenciados pelo Futurismo de Marinetti; pelo Institucionalismo de Henri Bérgson, cuja linha de pensamento só admitia o conhecimento natural e espontâneo e dizia não à ciência e à técnica; e pelos ensinamentos de Martin Heidegger, que colocava a existência individual como determinação do próprio indivíduo e não como uma determinação social.

Os objectivos principais dos orfistas eram:
- Chocar a burguesia com sua obra irreverente (poesias sem metro, exaltando a modernidade);
- Tirar Portugal de seu descompasso com a vanguarda do resto da Europa.

Logo no primeiro número, publicado em Abril de 1915, os orfistas conseguiram criar o ambiente de escândalo desejado, graças a críticas violentas, que podem ser encontradas nos poemas "Ode triunfal" de Álvaro de Campos (Heterónimo de Fernando Pessoa) e "Manucure" de Mário de Sá-Carneiro.
Esse primeiro número esgotou-se em apenas três semanas graças a um sucesso "negativo": as pessoas que compravam a revista ficavam horrorizadas e despejavam sua ira contra os seus colaboradores.
Armando Cortes Rodrigues, um dos membros da Orpheu, conta que os orfistas eram constantemente ironizados e chamados de loucos.
O segundo e último número da revista Orpheu foi lançado em Julho de 1915, com conteúdos bem mais futuristas. O terceiro número chegou a ser planejado, mas não foi editado por causa do suicídio de Mário de Sá-Carneiro, responsável pelos custos da revista.


Essa primeira geração Modernista, surgida no meio da Primeira Guerra Mundial, foi niti-damente influenciada pelos vários manifestos de vanguarda europeus. Esse talvez seja o
motivo principal dos autores desse período apresentarem individualidades muito fortes e não seguirem um padrão estético linear.
Apesar do precoce desaparecimento da "Orpheu", a revista deixou uma rica herança, uma vez que surgiram várias outras revistas que, a grosso modo, foram seguidoras do orphismo e que tiveram duração efémera, ou seja, duraram pouco. Foram elas:

 Centauro (1916);
 Exílio (1916);
 Ícaro (1917);
 Portugal Futurista (1917);
 Etc.

Ainda nesse primeiro momento do Modernismo português surgiram as figuras de Aquilino Ribeiro e Florbela Espanca. Nomes de destaque na literatura portuguesa, que não tiveram ligação com nenhum dos momentos modernistas. Para o professor de Literatura Portuguesa
Massaud Moisés esses dois poetas são enquadrados em um momento literário que classifica como "Interregno".


O segundo momento Modernista surgiu da herança deixada pelo orphismo. A revista literá-ria "Presença", que teve o primeiro exemplar publicado em 10/03/1927, foi o meio divulga-dor das ideias desse grupo, também conhecido como presencismo.

A revista Presença foi fundada e editada por Branquinho da Fonseca. Em 1930, quando a revista já estava no número 27, Branquinho da Fonseca, por considerar haver imposição de limites à liberdade criativa, abandona a direcção da revista, que fica a cargo de Adolfo Casais Monteiro.
Dentre os seus principais colaboradores destacam-se as figuras de José Régio, Adolfo Rocha, João Gaspar Simões, Miguel Torga, Irene Lisboa, entre outros.
Além de dar continuidade às ideias do orphismo e de eleger os membros desse período como "mestres", os presencistas pregavam uma literatura mais intimista e artística.
Isso quer dizer que a literatura defendida por esse grupo estava voltada para uma análise interior e para a introspecção.
Por causa dessas posturas os presencistas tiveram algumas dissidências e receberam muitas críticas, baseadas nos exageros do individualismo e do esteticismo.
A revista Presença foi, em Portugal, o principal veículo divulgador das principais obras e escritores europeus da primeira metade do século. Além disso destaca-se ainda o espírito crítico de seus fundadores e de alguns de seus colaboradores. Graças a esse espírito, muitos estudiosos consideram o Presencismo como um movimento mais crítico do que criador.
No ano de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, o grupo presencista encerra suas actividades. Encerrando também o Modernismo em Portugal.
Para alguns estudiosos, o Modernismo português ainda teve mais uma ou até duas fases, que são aqui classificadas como Neo-realismo e Surrealismo.