terça-feira, 4 de maio de 2010

Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Tornando-se órfão de pai aos cinco anos, é levado por sua mãe e seu padrasto para a África do Sul. Em Durban. faz o curso primário e o secundário com excepcional brilho, chegando a alcançar o premio de redacção em Inglês. De regresso a Lisboa em 1905, matricula-se na Faculdade de Letras e cursa Filosofia por algum tempo. A seguir, passa a viver como correspondente comercial em línguas estrangeiras, função que desempenha até o fim da vida. Em 1912, colabora n'A Águia como crítico. Em 1915, lidera o grupo de moços que publica o Orpheu. Dispersos os seus membros logo após o desaparecimento da revista, Pessoa recolhe-se a uma vida solitária e inteiramente voltada para a criação duma extraordinária obra poética e crítica, de que uma pequena parte vai publicando em órgãos como Centauro, Athena, Contemporânea e Presença. São os membros desta última que lhe descobrem o superior talento e se dispõem a divulgá-lo como a um verdadeiro mestre de poesia. Em 1934, candidata-se ao premio de poesia instituído pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa, com a Mensagem, único livro em Português que publica em vida, mas só alcança obter o segundo lugar. Já nessa altura começam a acentuar-se os sintomas provenientes de seus desregramentos alcoólicos. Corroído pela cirrose hepática, baixa ao hospital e dias depois falece, a 30 de Novembro de 1935.

Fernando Pessoa é dos casos mais complexos e estranhos, senão único dentro da Literatura Portuguesa, tão fortemente perturbador que só o futuro virá a compreende-lo e julgá-lo co mo merece. Por ora, mal decorridos trinta anos de sua morte, é ainda muito cedo para aqui-latar-lhe a importância, o significado da obra que escreveu e a influência exercida enquanto viveu e depois de morto. Tudo, portanto, que se disser hoje como análise e julgamento de sua poesia, não passa duma tentativa provisória no sentido de compreender uma insólita personalidade literária e uma obra de carregada e densa problemática. Basta começar por entender que ele integrou em sua personalidade tudo quanto constituía conquista válida do lirismo tradicional, aquele que, a largos traços, tem seus pontos altos nas cantigas de amor, em Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Pessanha, etc.

Todavia, fez mais do que uma simples integração: com base em uma espécie de genialidade inata, quem sabe de raízes patológicas (ele se dizia "histeroneurastenico"), conseguiu su perar e enriquecer a velha herança recebida. E a tal ponto procedeu na superação e no enriquecimento das matrizes poéticas Portuguesas que alcançou realizar um feito semelhante ao de Camões: enquanto neste começou um ciclo poético que acabou recebendo o epíteto de camoniano, em Fernando Pessoa principia o ciclo pessoano, evidente nas novidades que vem revelando seja de conteúdo, seja de forma poética, aqui separados apenas por motivos de clareza didáctica. Noutros termos: do mesmo modo que o ciclo camoniano se caracteriza por uma série de cliches expressivos, assim o ciclo pessoano corresponde ao encontro de novos horizontes poéticos, comunicados numa linguagem nova, logo tornada cliche à custa de repetida. Como havia um jeito camoniano de transmitir a impressão causada pelo mundo e os homens na sensibilidade do poeta, actualmente há um jeito pessoano. Dir-se-ia que o ciclo camoniano termina quando se inicia o pessoano, visível na influência além e aquém -Atlântico exercida por Fernando Pessoa.

Por outro lado, é preciso compreender que o poeta não só assimilou o passado lírico de seu povo como refletiu em si, à semelhança dum poderoso espelho parabólico, as grandes inquietações humanas no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de pontos dispersos a certeza de que a Humanidade vivia uma profunda crise de cultura e valores do espírito. Por isso, para compreender-lhe a poesia há que ter em mira, além do aproveitamento que efetuou do espólio literário português, as agitações operadas na cultura ocidental durante os anos em que ele formou o seu espírito e escolheu um caminho. Em consequência, sua poesia se tornou uma espécie de gigantesco painel de registo sismográfico das comoções históricas havidas em torno e em razão da guerra de 1914.

Fernando Pessoa evolui do Saudosismo para o Paúlismo e daí para o Interseccionismo e o Sensacionismo, três formas de requintamento da poesia saudosista, graças ao exacerbamen-to deliberado do culto ao "vago", ao "subtil" e ao "complexo", e a influência simultânea do Cubismo e do Futurismo. Essas como categorias líricas, o poeta atinge-as por via duma consciente intelectualização daquilo que no Saudosismo era apenas nota instintiva e emotiva.

Superadas essas fases iniciais em que o poeta procura, ao mesmo tempo que épater le bour-geois, um rumo autentico para sua poesia (sem com isso querer dizer que seus poemas "paúlicos". "sensacionistas" e "interseccionistas" sejam de inferior qualidade), com a publicação do Orpheu ele começa verdadeiramente a criar sua singular poesia. Mas, em que medida singular? Num esforço de síntese que naturalmente deixará muitos aspectos de fora, teríamos o seguinte:
Fernando Pessoa parte sempre de verdades apenas aparentemente axiomáticas, e aparen-temente porque, primeiro, resultam dum longo e acurado trabalho de reflexão analítica em torno daquilo que é motivo de seus poemas; e segundo, porque contem sempre uma pro-funda dualidade dialéctica que lhes destrói facilmente a fina crosta de verdade dogmática. Dentre essas verdades, de variável dimensão e algumas delas já hoje tornadas cliches de largo uso, indispensáveis sempre que se trata de assuntos poéticos, podemos salientar as seguintes: "O Nada que é Tudo", "O que em mim sente 'stá pensando", e uma estrofe de complexo e rico sentido como doutrina poética ou expressão do mistério da criação artística: "O Poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente."

Com base nesses postulados - e nos demais, oue seria ocioso enumerar -, Fernando Pessoa diligência construir sua mundividência, que implica rigorosamente uma ordenação do caos ou uma reconstrução do mundo. Mergulhado abissalmente no plano das relactividades, e só compreendendo e sentindo as coisas e os seres dentro dum inalterado relativismo, - o poeta anseia atingir, pela análise ordenadora da caótica relactividade em que vive, o plano dum qualquer absoluto, isto é, de qualquer verdade capaz de resistir à sua impressão de desinte-gração total, ou de superar a inconstância relativa de tudo.

Por outras palavras: descrendo, ao mesmo tempo pela análise e a priori, num imutável Absoluto em si, mas sentindo ser ele indispensável para explicar o caos cósmico e conferir-lhe a ordem perdida pela simples meditação racionalista, - o poeta parte do relativo (ou Relativo) para o absoluto (ou Absoluto). Tudo se passa como se Fernando Pessoa, fenómenologicamente colocado diante do mundo, tentasse reconstruí-lo ou ordená-lo partindo do nada, da estaca zero, recebendo como se fosse pela primeira vez os impactos mil vezes recebidos pelos homens no curso da História e sentindo-os como descoberta "pura", isenta de qualquer deformação intelectual anterior.

Esse processo fenómenológico pressupõe, necessariamente, a multiplicação ilimitada do poeta em quantas criaturas compuseram e compõem a Humanidade na sequência dos sécu-los; pois apenas desse modo, isto é, somando as várias visões e verdades relativas de toda a espécie humana no tempo e no espaço, e de cada homem ao longo de sua vida particular, seria possível ter uma imagem aproximada do Universo como um todo, e tentar reconquistá-la ao caos das relactividades. O fulcro, portanto, da cosmovisão pessoana é constituído por um esforço no sentido de conhecer o Universo, como um absoluto possível e para além da contingência individual. Em suma, era preciso ser todos que existiram, existem e existirão, aprender a sentir como eles, ser um eu-cidade, um eu-Humanidade, "uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória", ou, como afirma pela voz de Álvaro de Campos: "Multipliquei-me, para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me." Só assim lhe seria possível alcançar uma medida menos provisória e menos contingente.

Mas, ao proceder a um incontrolável desdobramento interior, como se de repente se tornasse um imenso poliedro luminoso, o poeta paga um alto preço: o de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração de seu "eu". Faca de dois gumes, esse processo atomizante da personalidade torna Fernando Pessoa uno e diviso ao mesmo tempo e salva-o duma neurótica e angustiante egolatria, que poderia conduzi-lo ao suicídio ou à loucura, os dois caminhos abertos aos companheiros de geração (Mário de Sá-Carneiro suicida-se, Ângelo de Lima morre no hospício). Ora, - e aqui está o ponto a que desejo chegar -, é desse múltiplo e desintegrante desdobramento de personalidade que nascem os "heteronimos" de Fernando Pessoa. Nada tendo que ver com "pseudónimos", querem referir a existência de outros nomes, isto é, de outros poetas, com identidade, "vida" e sentido autónomos, vivendo dentro do poeta, de forma que este se torna um e vários ao mesmo tempo. Como sabemos, a dupla personalidade é fenómeno frequente, não assim a poli-personalidade. Mediante esse processo, Fernando Pessoa se habilita a ver o mundo como os outros o veem, viram e verão, e, explicando e transcendendo o caos geral, atingir alguma verdade absoluta dentro da floresta de relativismo em que se acha embrenhado.

Os heteronimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa, mas, está visto, eles não podem multiplicar-se em número igual aos seres já viventes e por vir. Em vista disso, Fernando Pessoa multiplica-se em heteronimos-símbolos, como se lhe fosse possível chegar às cosmovisões arquetípicas, necessariamente pouco numerosas, nas quais se enquadrariam todas as cosmovisões particulares, incapazes de se expressar como tal. Seria como encontrar as visões-matrizes da realidade, apenas alteradas no plano do indivíduo, e portanto passíveis de se limitar, ao menos inicialmente, a um pequeno número, embora fosse impossível prever qual seria: a visão pessoana da realidade "intuiria" uns comportamentos-padrões sem conhecer-lhes o número exacto. Vários heteronimos, uns mais complexos que outros, Fernando Pessoa "descobriu" ao fim dos anos, dos quais três são os mais importantes:

Alberto Caeiro, "nascido" a 8 de Maio de 1914 e mestre dos demais, é o poeta que foge para o campo, pois, sendo poeta e nada mais, poeta por natureza, deve procurar viver simplesmente como as flores, os regatos, as fontes, os prados, etc., que são felizes apenas porque, faltando-lhes a capacidade de pensar, não sabem que o são: "O essêncial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se ve, / E nem pensar quando se ve, / Nem ver quando se pensa".

Ricardo Reis, por sua vez, simboliza uma forma humanística de ver o mundo, evidente na adesão ressuscitadora do espírito da Antiguidade clássica, de que o culto da ode e dum pa ganismo anterior à noção do pecado, constituem apenas duas particulares mas expressivas manifestações: "Assim façamos nossa vida um dia, / Inscientes, Lídia, voluntariamente / Que há noites antes e após / O pouco que duramos."

Alvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não foge de sua condição de homem sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes, tudo transfundido numa revolta a um tempo actual e perene, própria dos espíritos inconformados: "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos de papel".

Além desses heteronimos, ficou outro incompleto, Bernardo Soares, cuja existência se documenta pelo Livro do Desassossego, e outros, como Alexander Search, que escrevia em Inglês, Vicente Guedes, A. Mora, C. Pacheco. A par da poesia heteronímica, há que conside-rar a poesia ortonímica, escrita por Fernando Pessoa "ele-mesmo": é o poeta lirico, dialético, de gosto levemente barroco, esteta, que escreve seus versos "à beira-mágoa": "Há uma vaga mágoa / No meu coração".
É fácil compreender e provar que toda a diversidade heteronímica de Fernando Pessoa radica numa unidade, que vem das semelhanças substanciais existentes entre os heteronimos e do facto de, afinal de contas, serem eles alter-ego do poeta vendo o mundo cada qual dum ângulo específico. Por outro lado, o processo corresponde a uma genial mistificação, porquanto os heteronimos acabam sendo profundamente dramáticos, encarnações, ou máscaras, de que se vale o poeta para um dúplice papel: esconder-se atrás deles para melhor revelar-se mas revelando-se às avessas, ou antes, indirectamente exigindo do leitor um trabalho de recomposição do caminho percorrido pelo poeta em seu mascaramento: esconder-se para se revelar e revelar-se para despistar. Nesse sentido, creio ser possível afirmar que Fernando Pessoa chegou a um supremo requinte, no qual só atentamos depois dum profundo contacto com os heteronimos: quer-me parecer que, ao fim e ao cabo, a poesia ortonima é ainda poesia heteronima. Mais ainda: se se pusesse o falacioso problema da sinceridade, dir-se-ia que através de Álvaro de Campos o poeta se revelaria "sincero" e des-pojado; Álvaro de Campos seria o "Fernando Pessoa" de quem Fernando Pessoa seria hete-ronimo, como se, na verdade, tivéssemos um poeta, Álvaro de Campos, e um seu heteroni-mo, Fernando Pessoa. Teríamos, enfim, um heteronimo-pseudonimo (Álvaro de Campos) e um ortonimo-heteronimo (Fernando Pessoa). Como, ao menos, sugerir uma demonstracção? Basta ver o quanto Álvaro de Campos, por ser moderno, integra em sua visão do mundo elementos que andam espalhados pelos demais, e outros elementos que porventura poderiam gerar ainda mais alguns heteronimos.

Em qualquer hipótese, seja qual for o heteronimo em causa, Fernando Pessoa usa sempre da inteligência com extrema severidade indagadora e analítica. Auxiliado pela inteligência e por aquilo que se convencionou chamar de intuição, o poeta aplica-se a investigar os dados de sua rica e invulgar sensibilidade, a fim de conhece-los e fixá-los. Ao invés de ele apenas transmitir, ou tentar transmitir, a emoção pura e simples, como fazem os poetas menores, género Garrett, submete-a ao exame da inteligência ou da razão poética (para distinguir duma razão científica, filosófica, etc.). Assim procedendo, Pessoa transforma a emoção antes estáctica em emoção-pensada, em pensamento-emoção, ou, ainda, alcança surpreender a íntima identidade que existe entre as sensações e as ideias a que as primeiras estão desde sempre amarradas. O facto pode ser explicado do seguinte modo: a emoção, sendo extremamente móvel e passageira, tende a desaparecer caso o poeta não a transmita. A angústia dele reside, portanto, em apreende-la e transmiti-Ia: o poeta menor é essencialmente emocional, ou melhor, não utiliza a inteligência na captação de suas emoções, de que resulta transmitir-nos antes uma lembrança das emoções, que elas próprias. O grande poeta surpreende-as, analisa-as, fixa-as e enriquece-as por meio da inteligência; com isso, são as próprias emoções que ele nos comunica, como se o poeta, fosse apenas o veículo de sua transmissão, e as emoções se mantivessem tais como se desenvolveram em sua sensibilidade.

Assim procede Fernando Pessoa, mas tal processo equivale a um jogo permanente entre ser e não-ser, que está na base de sua poesia: graças ao poder dissolvente da inteligência, nada se lhe resiste à sondagem, de forma que toda afirmacção ou verdade feita é simplesmente destruída. Como se, para conhecer a intimidade do objecto, fosse necessário desmanchá-lo, à semelhança das crianças e seus brinquedos. Em consequência, Fernando Pessoa acaba por negar toda verdade unitária, isto é, que não implique em contradição, e as demais - sempre paradoxais ou antitéticas -, ele as desmonta com paciência de relojoeiro, peça a peça, em busca duma essência que só existe, precisamente, na dualidade ou ambiguidade revelada e fragmentada: o relógio faz-se em dezenas de peças, pois que o relógio só existe no congraçamento harmonico de todas elas, e jamais de cada uma em particular ou do mero ajuntamento caótico, como ocorre depois do desmonte silencioso, paciente e alquímico, em busca do nada (que é tudo). É que a análise profunda das coisas - embora tenha a justificá-la o alto propósito duma compreensão autêntica e unificadora do Cosmos - importa em aniquilá-las desvendando-lhes o profundo paradoxo interior, e este, repetido ad infinitum, leva à anarquia e aos caos. Neste ponto, o jogo de reconstruir começa, para se interromper mais adian-te, quando vem à tona outra fracção de caos determinando outro recomeço em busca de harmonia, e assim sucessivamente até o limite do utópico e do imaginário.

Ao longo desse eterno reinício de Sísifo, o poeta sente na carne o que vai destruindo na ânsia de reconstruir o mundo, e o que, em troca, vai construindo (a poesia), à medida que aprofunda o olhar cansado no interior do caos: "Sol nulo dos dias vãos, / Cheios de lida e de calma, / Aquece ao menos as mãos / A quem não entras na alma!".

Vem daí que o pensamento, explorando atentamente o recesso da emoção (que em Fernan-do Pessoa importa mais que o seu foco gerador), acaba reduzindo a nada as "verdades" aceites pela tradição vesga e o acaciano comodismo intelectual, revelando que não passam dum conjunto de ideias-feitas ou lugares-comuns que o simples acto de mentar mostra falsas, inconsistentes ou contraditórias. Antidogmático por natureza, Pessoa experimentou todos os caminhos a ver se lograva arquitetar uma síntese, mesmo que relativa, para o desuniforme duma tradição cultural balofa e uma realidade contemporânea em ebulição. Por isso, foi "degenerescente" com Max Nordau e abandonou-o, foi ocultista, elogiou a ditadura, elogiou o paganismo, foi messiânicamente sebastinista, etc., sempre com a mesma força original e tudo vendo como "estrangeiro aqui como em toda parte", quer dizer, com olhos de "emissário de um rei desconhecido" que cumpre "informes instruções de além", dum visionário racionalista e frio gestaltianamente a enxergar estruturas em vez de aparências, no sobre-humano esforço de chegar a uma grande síntese ocultista do Mundo, em vez dum "retrato" dele.

Por outro lado, esse olhar que sonda para além-da-superfície-das-coisas pode induzir à ideia de que Fernando Pessoa não passava de um céptico, pelo menos em relação à vida humana entendida como fim último do homem; um niilista, diríamos, empregando o vocábulo em sua denotação mais vulgar. Ao contrário, era uma extraordinária organização intelectual à procura dum absoluto (ou do Absoluto) que sua inteligência negava e sua sensibilidade repudiava; o modo como procedeu foi o de quem satisfez a razão e a sensibilidade na análise dissolvente e procurou um caminho novo, ou um método anterior ou imanente ao indivíduo estruturado intelectualmente dentro dos padrões de civilização; foi o de quem buscou sabendo inútil a busca, mas certo de que só lhe restava essa vida de acesso ao mistério que o obsidiava; e, enfim, o de quem, por superintelectualizado e supersensível, pregava a libertação do homem por via do despes jamento da inteligência, a fim de captar a realidade como é, na essência, não como nos parece. E com isso perdeu-se e ganhou-se ambivalentemente, fosse pendor intelectualista, estribado em linguagem não raro concentrada em sínteses de recorte discursivo ou oracular, destinadas a se transformar em cliches, aproximam-no do filó sofo, que ele é ao mesmo tempo que poeta. E se este predomina, é pelo facto de a base da mundividência pessoana ser ainda a emoção, embora emoção pensada.

Fundamentalmente poeta metafísico e filosofante, propulsionado por uma concepção épica do mundo e da existência, Fernando Pessoa é já considerado um dos Maiores poetas da Lín gua, ao lado dum Camões e dum Antero. A tal ponto que a crítica estrangeira não teme clas-sificá-lo a mais alta vocação poética da Europa deste século. Tudo isso evidência que estamos em face duma excepcional aparelhagem estético-literária, das mais privilegiadas e estranhas da Literatura Portuguesa de todos os tempos.

Em vida, além de Mensagem (1934), Fernando Pessoa apenas publicou versos ingleses (Antinous, 1918; 35 Sonnets, 1918; Inscriptions 1920), reunidos nos English Poems, 1, 11 e III (1921), e alguma prosa: Aviso por causa da Moral (1923) e Interregno-Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal (1928). A Maior parte de sua produção estampou-se em jornais e revistas ou manteve-se inédita: de suas Obras Completas, iniciadas em 1942, já saíram nove volumes de poesia: Poesias de Fernando Pessoa (1942), Poesias de Álvaro de Campos (1944), Poemas de Alberto Caeiro (1946), Odes de Ricardo Reis (1946), Mensagem (1945), Poemas Dramáticos (1946), Poesias Inéditas 1 1930-1935 1 (1955), Poesias Inéditas 1 1919-1930 1 (1956), Quadras ao Gosto Popular (1965); parte de sua prosa foi coligida em volume: Páginas de Doutrina Estética (1946), Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1966), Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literária (1966), Textos Filosóficos, 2 vols. (1968); e outros estudos tem sido publicados em edições para bibliófilos por um estudioso do Porto que usa o pseudónimo de Petrus (Análise da Vida Mental Portuguesa, Apreciações Literárias, Regresso ao Sebastianismo, Sociologia do Comércio, Apologia do Paganismo, Crónicas Intemporais, etc., todos sem data de publicação, e que devem ser compulsados com muitas reservas).



Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo

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