José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, em 1901. Ainda estudante na Faculdade de Letras de Coimbra, inicia sua carreira literária com Poemas de Deus e do Diabo (1925). Em 1927, funda, edita e dirige com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca a revista Presença. Formado, segue para o Porto, onde fica algum tempo, e de lá para Portalegre, como professor no Liceu Mousinho da Silveira. Faleceu em 1969, na cidade natal.
Ao longo duma intensa e persistente actividade literária, num recolhimento que nada concedia aos "grupos" ou "igrejinhas", José Régio dedicou-se à poesia, ao teatro, ao conto, ao romance e à crítica. Em poesia, afora os Poemas de Deus e do Diabo, escreveu: Biografia (1929), As Encruzilhadas de Deus (1936), Fado (1941), Mas Deus é Grande (1945), A Chaga do Lado (1955), Filho do Homem (1961), Cântico Suspenso (1968), Música Ligeira (1970). Teatro: Primeiro Volume de Teatro (Jacob e o Anjo) (1941), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947), El-Rei Sebastião (1.949), A Salvação do Mundo (1954) e três Peças em um acto (1957). Contos: Histórias de Mulheres (1946), Há mais mundos (1962), Davam grandes passeios aos domingos... (1941). Romances: Jogo da Cabra-Cega (1934) ; O Príncipe com Orelhas de Burro (1942) e o ciclo d'A Velha Casa: Uma Gota de Sangue (1945), As Raízes do Futuro (1947), Os Avisos do Destino (1953), As Monstruosidades Vulgares (1961), Vidas são vidas (1966). Crítica: Críticos e Criticados (1936), António Botto e o Amor (1938), Em Torno da Expressão Artística (1940), Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa (1941), Ensaios de Interpretação Crítica (1967), três Ensaios sobre Arte (1967), etc.
Em todas essas formas de expressão, é sempre o mesmo intelectual convicto e superiormente cônscio da importância de sua múltipla actividade literária, como nascida do imperativo duma espécie de missão civilizadora que não se curva a nada, mesmo a uma espessa solidão capaz de levá-lo ao desespero. O centro nevrálgico de sua obra, especialmente a poética, é representado por um problema de simultânea raiz intelectual e sensitiva: a do diálogo entre Homem e Deus, em que o primeiro manifesta irrecorrível necessidade do Absoluto. O poeta quer Deus, desespera-se, angustia-se na procura, mas ao mesmo tempo gostaria de não o querer, tal o seu egocentrismo: o seu sofrimento íntimo nasce do facto de sentir a necessidade do Absoluto, que lhe dá a medida de sua pobre relactividade terrena. Quando a desesperança vence o orgulho, o poeta arrasta-se, despoja-se, vencido e entregue à visão da transcendência, ao mesmo tempo temida e desejada: "Sobre o verme que sou, lento, descia / O olhar desses dois poços de clarões. / Sua boca selada se entreabria / Como as ondas, as rosas, os vulcões... / E a sua voz, imensa sinfonia / De palrar de águas e ecos de trovões, / Disse à pobre minh'alma confundida: / `Tu me recusas, tu, que achaste a Vida?' ".
Dessa atmosfera densamente dramática, trágica, nasce uma obra forte, quente, máscula e austera como poucas, pois o poeta não escreve embalde, mas sim quando uma "voz" o compele e lhe dita os poemas em que derrama sua torrencial vida interior. Em José Régio, a poesia nasce aos jactos, mas sem destruir uma permanente lucidez reflexiva pronta a policiar e a compreender, que confere travamento e solidez às intuições divinatórias do poeta.
Pelo aspecto religioso, José Régio repõe uma problemática antes encontrada em Antero e em Guerra Junqueiro: ao primeiro assemelha-se pela gravidade posta na solução dum problema vital, o da crença religiosa, apenas diferindo no facto de que Antero a perdera na mocidade e passara a vida toda à procura dum impossível sucedâneo; ao segundo, pela veemência revoltada, torrencial, que não se detém inclusive diante dos mais profundos.e perigosos abismos declamatórios. Entretanto, "o caso" que dá origem à sua poesia é tão forte e sincero, e vem servido de tão excepcionais recursos intelectuais, que logo faz compreender tratar-se de uma das obras mais significativas dos nossos dias. Diga-se, contudo, a bem da justiça que a trajectória poética de José Régio descreve uma curva ascendente com o ápice marcado pel'As Encruzilhadas de Deus: na verdade, o Fado, e mormente A Chaga do Lado,. em que o poeta ensaiava utilizar uma de suas possibilidades técnicas, p epigrama, traíam uma perda de tonus, que Filho do Homem e Cântico Suspenso, sua derradeira obra lírica publicada em vida, confirmaram. Entretanto, "a Poesia voltara, após uma longa ausência, a visitá-lo inesperadamente", confidênciava o poeta, nos começos de 1969, a Alberto de Serpa, seu amigo desde a juventude: dessa visita constituem registo fulgurante os poemas que integram o volume Música Ligeira, postumamente dado a lume. De fato, José Régio readquirira nos últimos meses de vida a mesma pulsação lírica de antes, enriquecida de um despojamento, uma leveza e um hermetismo novos, quem sabe fruto da clarividência trazida pela antevisão da morte.
Enquanto crítico, José Régio se mantém no mesmo nível: procurando fazer uma crítica de compreensão estética e psicológica, alcança não raro extraordinárias sínteses interpretativas, que o situam desde logo entre as grandes vocações críticas aparecidas depois de 1930; neste propósito, alguns dos capítulos de sua Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa constituem peças modelares enquanto súmulas duma interpretáção global de autores como Camilo Pessanha, António Nobre, etc.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
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