Os primeiros anos do século XX europeu acusam profundas e amplas transformações culturais e estéticas, das quais não poucas tinham sido lentamente gestadas ao longo do século XIX: quase se diria que as mutações anteriores apenas serviram de ensaio para alguma coisa de novo que só veio a declarar-se, explosivamente, na alvorada desta centúria.
Como sempre, Portugal procurou adaptar-se ao ritmo europeu e beneficiar-se do progresso cultural em curso, embora reduzindo-o à sua medida enquanto povo, história e mentalidade. Tanto é assim que, hipertrofiando uma tendência que vinha do Realismo (para não dizer que vinha desde os românticos exaltados), se avoluma a onda de insatisfação contra o regime monárquico, incapaz de resolver os problemas mais urgentes da Nação e oferecer um clima normal de tranquilidade e progresso. A ditadura de João Franco (1905-1906), com toda a sua coorte de injustiças, mais ainda acirra os ânimos contra a Monarquia reinante. Até que, cul-minando a atmosfera de tensão que crescia incontrolavelmente, o Rei D. Carlos é assassina-do por um homem do povo em 1908, quando voltava, em carruagem aberta, de uma de suas habituais estações de caça em Vila Viçosa. Generaliza-se a desordem e a sanguinolência. Como no atentado também falecera o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, imediatamente é chamado a ocupar o trono D. Manuel II, que sobrevivera ao morticínio no Terreiro do Paço. Muito jovem ainda (nascera em 1886) e ascendendo ao poder em clima de turbulências, a nova situação em que se encontra o País, logo se formam 'duas facções, opostas no modo como a encaram: uma delas, satisfeita, ou conformada com a República, procura dar-lhe bases, uma doutrina ou filosofia tipicamente Portuguesa; a outra, a dos inconformados, dos insatisfeitos com o novo estado de coisas, assume um carácter contra-revolucionário e aglutina-se em torno de António Sardinha (1888-1925), em 1914, formando o grupo do Integralismo Português, de que veio a sair o Estado Novo, em 1926.
Para a história das ideias em Portugal neste século, o grupo dos republicanos satisfeitos ou conformados tem Maior relevância, graças ao papel que desempenha desde a primeira hora em que se instaura o novo sistema de governo. Em 1910, surge A Águia, revista mensal de "literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social", logo tornada órgão da Renascença Portuguesa, rótulo que os conformados passaram a usar como expressão de seu programa de fundamentação e revigoramento da cultura Portuguesa, em moldes modernos. As principais figuras do movimento são: Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra. Ao primeiro cabe o papel de mentor e de doutrinador, tendo por base o estabelecimento duma filosofia autenticamente lusitana, em torno da saudade, o Saudosismo: "O fim desta Revista", diz Teixeira de Pascoaes no editorial com que abre a segunda série d’A Águia, começada em 1912, "como órgão da `Renascença Portuguesa' será, portanto, dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui; isto é, coloca-las em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa todas as almas sinceramente Portuguesas: - Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arranca-la do túmulo onde a sepultaram alguns séculos de obscuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram." Passando para o exame da alma Portuguesa, chega finalmente ao seu destino: a Saudade, que "é o próprio sangue espiritual da Raça; o seu estigma divino, o seu perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção reflectida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina. Eis a Saudade vista na sua essência religiosa, e não no seu aspecto superficial e anedótico de simples gosto amargo de infelizes". E mais categoricamente: "É na Saudade revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria Renascença, original e criadora". A Águia leva uma segunda série até 1916, e uma terceira até 1930, quando desaparece, mas em 1913 opera-se uma cisão interna que provoca o afastamento de António Sérgio, Jaime Cortesão e Raul Proença, inconformados com o carácter visionário que vai assumindo o Saudosismo de Pascoaes. Do cisma vai nascer, em 1921, a Seara Nova, onde o grupo dissidente procura levar a cabo um programa de reforma cultural de bases nacionalistas, científicas e tanto quanto possível dentro duma visão universalista. Com esse desiderato, a revista se mantém até hoje.
Entretanto, o visionarismo de Pascoaes consegue momentâneamente empolgar um grupo de jovens literatos de Lisboa, aparecidos entre 1912 e 1915, alguns deles inclusive chegando a colaborar nA Águia, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Em 1915, ainda reflectindo o clima saudosista, lançam a revista Orpheu, com que tem início o Modernismo em Portugal. Antes, porém, de entrar neste capítulo, torna-se necessário minuciar a trajectória literária de Teixeira de Pascoaes.
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa
Editora Cultrix, São Paulo
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