terça-feira, 4 de maio de 2010

...se contextualizássemos séc XX...

A fase de decadência que a monarquia atravessava deixava já antever mudanças políticas (a implantação da República parecia inevitável) que levaram a cogitações sobre o destino dum país longe da grandiosidade doutras eras. Tal contemplação do passado confundia-se compreensivelmente com um sentimento de saudade que, no início do séc. XX, é mais do que um recurso literário e se torna mesmo um conceito filosófico.
Teixeira de Pascoaes (1877-1952) será o principal mentor desta corrente literário-filosófica, cuja doutrina estabelece em obras como Marânces (1911) e Elegia de Amor (1924).

A revista Águia, lançada por Pascoaes e editada entre 1910 e 1930, será a primeira de uma série de publicações literárias periódicas onde se vão encontrar os nomes mais significativos e inovadores da literatura portuguesa dos primeiras décadas do novo século.

Uma das mais efémeras mas mais relevantes seria Orpheu, cujo primeiro número surgiu em 1915 e iria divulgar em Portugal o Modernismo europeu, concretamente o Futurismo de Phillippo Marinetti, autor italiano partidário duma "actualização" da literatura e da arte em geral em relação aos novos tempos de progresso tecnológico.

Os primeiros mentores da Orpheu foram Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1915) e Almada Negreiros (1893-1970), o mais provocador e versátil de todos, nome também prestigiado das artes plásticas.

Sá-Carneiro publicou alguns contos, mas tornar-se-ia conhecido sobretudo como poeta. Dispersão (1914) revela logo no título a dificuldade de concentração, a pluralidade de opções com que o seu interior se confrontava, anunciando já o termo trágico que daria à sua vida.

Fernando Pessoa nunca viria a conhecer em vida uma ínfima parcela da fama de que, décadas depois da sua morte, a sua obra seria alvo. Caso único na literatura mundial, Pessoa foi além da sua própria personalidade enquanto escritor e criou uma série de heterónimos, autores por si imaginados, com estilos próprios e diferentes atitudes perante a vida.

A Fernando Pessoa, ele próprio, terá de chamar-se, em literatura, ortónimo, isto é, autor de textos assinados com o seu nome; são em grande parte poesia de carácter filosófico, centrada no mistério da vida. Mensagem foi o único livro que viu publicado (em 1934) e contém uma abordagem messiânica de aspectos da história de Portugal, envolta num grande misticismo.

O primeiro dos mais conhecidos heterónimos criados por Fernando Pessoa foi Alberto Caeiro, campesino pouco instruído, detentor duma sabedoria muito própria, duma capacidade de análise muito natural, mas nem por isso menos profunda. Álvaro de Campos, a que Pessoa atribui a profissão de engenheiro naval, é o arauto do mundo novo, mecanicista, onde o progresso é visível em cada nova máquina que irrompe na paisagem. As suas odes oscilam entre o entusiasmo pelas transformações que marcam as primeiras décadas do novo século e um certo tédio e desencanto perante a sua própria incapacidade de mudar o (seu) mundo. Curiosamente definido (biografado) por Pessoa como um monárquico exilado no Brasil, Ricardo Reis é um médico apaixonado pelos clássicos cujos poemas combinam um carácter morigerador com a defesa da liberdade de cada indivíduo.

Camilo Pessanha (1867-1926) é o primeiro verdadeiro poeta simbolista português, com uma produção marcada por um ritmo e uma musicalidade invulgares.

Ex-colaboradores da revista Águia juntaram-se para dar início a uma nova publicação literária, Seara Nova, que, entre 1921 e 1982, se tornou especialmente conhecida pelos ensaios (não só sobre literatura) que as suas páginas acolheram. Dos vultos inicialmente ligados a esta publicação merecem destaque o historiador Jaime Cortesão (1884-1960), o escritor Raul Brandão(1867-1930), expressionista que se preocupou em dar voz aos menos favorecidos, descrevendo as suas difíceis condições de vida, e que obteve alguma popularidade com Os Pescadores (1923), Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), escritor que foi também presidente da república, e Aquilino Ribeiro (1885-1963).

Aquilino Ribeiro imprimiu um tom regionalista aos seus romances a par duma linguagem riquíssima. O Malhadinhas (1922) e Terras do Demo (1928), entre outros, trazem à literatura portuguesa a vida dura dos habitantes das regiões mais isoladas do país, em descrições que ainda hoje não seriam de todo despropositadas.

De 1927 a 1940 há a salientar a importância da revista Presença, de que emergem nomes como José Régio (1901-1969) e Miguel Torga (1907-1995).

José Régio demonstrou a sua versatilidade em áreas como o teatro, a poesia, o romance e o ensaio. A temática dos seus trabalhos de ficção insere-se frequentemente numa auto-análise a que não é alheio algum misticismo e, sobretudo, o conflito entre o Homem e Deus. Enquanto ensaísta dedicou-se à literatura portuguesa, sendo um dos primeiros a abordar a obra de Florbela Espanca (1894-1930), poetisa independente de movimentos literários e que ousou passar a versos uma sensualidade até então desconhecida na (então ainda escassa) literatura feminina. Dos seus poemas não está também ausente um sentimento de desencanto perante a falta de oportunidades que a vida lhe dava no sentido de alcançar uma existência de menos sofrimento e solidão, à qual acabou por pôr termo.

Voltando à revista Presença e à inclusão de Miguel Torga nas suas páginas, forçoso é referir que o seu espírito intrinsecamente independente (patente, por exemplo, num Diário que manteve durante décadas) o levou a atingir um estatuto relevante na literatura portuguesa que faz com que a sua obra seja analisada fora da integração em correntes literárias. Da sua vasta produção, em que sobressai o talento de contista, merecem destaque Bichos (1940) e Contos da Montanha (1941), onde a força da natureza se interliga com uma certa religiosidade.

Dotado do mesmo espírito independente, perante a vida e a literatura, Ferreira de Castro (1898-1974) começou por escrever fora de Portugal, já que emigrou com doze anos para o Brasil, onde trabalhou como seringueiro na Amazónia e, posteriormente, como jornalista. Emigrantes (1928) e A Selva (1930) são exemplos duma prosa vivida que espelha muitos aspectos da sua experiência pessoal. À medida que a sua obra vai crescendo vão-se notando também mudanças a nível da linguagem, mais rica em A Lã e a Neve (1947), e da composição das personagens, mais aprofundada em A Missão (1954).

Porque relatou muito do que viveu e, essencialmente, porque fez uma descrição bastante pormenorizada das duras condições de vida das classes trabalhadoras, há quem considere Ferreira de Castro o introdutor do Neo-realismo na literatura portuguesa. A nível ideológico, porém, faltar-lhe-á (e muitos consideram isso importante) a militância política (ou mesmo político-partidária) que, em especial no caso do Neo-realismo português, marcou este movimento. Após o golpe de estado de 1926, os partidos políticos (entre os quais o Partido Comunista Português) só podiam sobreviver na clandestinidade e a censura foi assaz severa para com a imprensa e a literatura. A revista Vértice usufruiu duma actividade regular considerável, tendo em conta os condicionalismos impostos pela Comissão de Censura, e foi, por assim dizer, o órgão difusor do Neo-realismo, tentando, tanto quanto possível, dar expressão literária aos conflitos sociais e à luta do proletariado.

Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), autor de Esteiros (1941), obra dedicada a "homens que nunca foram meninos", Alves Redol (1911-1969), romancista, entre outros, de Gaibéus (1940) e Barranco de Cegos (1962), e Manuel da Fonseca (1911-1993), fecundo autor que chegou a ver obras suas adaptadas ao cinema e ao teatro após a Revolução de 25 de Abril de 1974, como Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958), foram alguns dos expoentes desta corrente literária empenhada na transmissão duma perspectiva marxista da vida e na discussão dos problemas dos extractos sociais mais humildes.

O desenvolvimento doutras formas de comunicação social ao longo do séc. XX tornou alguns escritores nomes familiares do chamado grande público, o que nem sempre, todavia, significava que a sua produção literária se tornasse substancialmente mais lida, uma vez que não se foram desenvolvendo hábitos de leitura na população.

Vitorino Nemésio (1901-1978), por exemplo, tornou-se especialmente conhecido por aparições semanais na televisão nos anos 70, em que evidenciava um estilo coloquial cativante que não escondia uma vasta cultura. Atrás de si tinha, porém, décadas de actividade como escritor e professor de literatura. Foi poeta, romancista e ensaísta e deixou vincada na sua obra a origem açoriana e um sentido apego a tradições populares. Mau Tempo no Canal (1944) reflecte bem a consciência social e literária dum escritor fisicamente ausente da sua terra natal, mas que a ela recorre como tema inesgotável.

Nos anos 60 o cinema foi veículo divulgador de parte da obra de Fernando Namora (1919-1989), médico de profissão, que passou do Neo-realismo ao Existencialismo à medida que, no desempenho dessa actividade, se afastou dos meios rurais e se radicou nos centros urbanos. Retalhos da Vida dum Médico, com um primeiro volume lançado em 1949, relatando experiências vividas no interior do país, e outro publicado em 1963, já com referências ao exercício da Medicina na capital, permitem, por si só, acompanhar a transformação do escritor e foram adaptados ao cinema, tal como Domingo à Tarde (1961), em que formula já questões de ordem metafísica.

A reflexão sobre a natureza humana foi praticamente o tema (mas com diferentes abordagens) de quase toda a produção literária de Vergílio Ferreira (1916-1996), exemplo mais claro do Existencialismo. Também graças a uma conseguida adaptação cinematográfica, Manhã Submersa, um dos seus primeiros livros (1944), tornou-se um êxito literário muito após a sua primeira edição. Escritor dos mais premiados a nível nacional e internacional, Vergílio Ferreira deixou num diário publicado desde 1981, Conta-Corrente, um contributo para o entendimento das mudanças sociais operadas no Portugal pós-25 de Abril.

Idêntica contribuição proveio de Natália Correia (1923-1993), muito mais conhecida pela sua poesia e pela truculência das suas intervenções na sociedade portuguesa, antes e depois da re-instauração da democracia. Sem se integrar numa corrente literária precisa, Natália Correia, que também abraçou a dramaturgia e o ensaio e foi responsável pela organização de antologias, toca pontualmente o Surrealismo, um surrealismo que, em Portugal, surge algo independente no tempo em relação às literaturas doutros países.

Mais claramente ligada a essa corrente, mas não presa a ela, é a produção poética de Alexandre O'Neill (1924-1986), repleta de ironia e sarcasmo. Como sucedeu com outros poetas, O'Neill viu (e nisso colaborou empenhadamente) alguns dos seus textos musicados e interpretados principalmente por Amália Rodrigues, a mais prestigiada cantora portuguesa. O fado foi um veículo para a divulgação junto de todas as classes de poemas de autores como Pedro Homem de Mello (1904-1984), oriundo da Presença e profundo estudioso do folclore português, ou David Mourão-Ferreira (1927-1996), também contista, ensaísta e professor catedrático, por cuja obra perpassa um erotismo e uma elegância formal únicos na literatura portuguesa.

David Mourão-Ferreira foi também o que pode designar-se dum "poeta de Lisboa", sendo de ter presente que a capital portuguesa foi o último bastião das tertúlias literárias. Particularmente a Lisboa se associa também uma certa boémia intelectual, vivida e admirada, por exemplo, por José Cardoso Pires (1925-1998), que preferiu deixar patentes as suas preocupações sociais e políticas numa literatura objectiva, algo influenciada pelos mestres contistas norte-americanos e fortemente crítica em relação à actuação do Estado Novo. O Delfim (1968) e Dinossauro Excelentíssimo (1972) são romances que revelam uma oposição contundente aos valores mais preservados pelo regime anterior à Revolução de 25 de Abril de 1974 e que mais contribuíam para a atmosfera fechada (dir-se-ia mesmo sufocante) então vivida em Portugal. Cardoso Pires consegue um outro grande êxito literário e de vendas com Balada da Praia dos Cães (1982), sobre um caso famoso ocorrido no seio da oposição ao salazarismo no início dos anos 60.

A década de 60, com a eclosão da Guerra Colonial, foi, aliás, determinante na tomada de consciência política de muitos escritores, que, mesmo sem uma actividade militante, usaram a palavra como arma contra a situação vigente. Sophia de Mello Breyner Andresen (nascida em 1919), após uma fase de literatura voltada para o universo infanto-juvenil e duma poesia com uma linguagem extremamente equilibrada, marcada pela admiração pela civilização grega, passa com Livro VI (1962) a mostrar de forma cada vez mais clara a sua oposição a situações de injustiça. Após a Revolução de Abril, Sophia de Mello Breyner Andresen tem sido uma das escritoras mais premiadas e homenageadas.

A chamada Revolução dos Cravos trouxe consigo a abolição da censura e uma maior divulgação das obras literárias, ainda que já não tanto ao abrigo de revistas literárias. Há, de qualquer modo, a salientar o Jornal de Letras, publicado com assinalável periodicidade desde o início dos anos 80, e a maior informação sobre novidades literárias na comunicação social.

Aumentou o número de prémios literários, para primeiras obras e para a consagração de carreiras. Agustina Bessa-Luís (nascida em 1922), profícua romancista, ímpar na capacidade de análise de personagens e situações e frequentemente influenciada por momentos e figuras da história de Portugal, é certamente dos nomes mais premiados. O seu romance A Sibila (1954) é unanimemente considerado um marco na literatura portuguesa, tendo já constado dos programas oficiais do ensino secundário.

A divulgação da literatura nas escolas tem sido alvo de amplo debate, sendo praticamente impossível chegar-se a uma conclusão sobre que autores incluir nas cadeiras ligadas à língua e cultura portuguesa. Os hábitos de leitura nunca foram grandes (e, sobretudo, nunca foram devidamente fomentados) entre os Portugueses, embora haja aumentado o número de bibliotecas, e novas formas de ocupação dos tempos livres mostram-se, de certo modo, adversárias da literatura, pelo menos na sua forma mais tradicional. Alguns jovens autores, muito em especial na área da poesia, como, por exemplo, José Luís Peixoto ou Jacinto Lucas Pires (também com incursões no teatro), têm sido bem-sucedidos na aceitação dos seus trabalhos, não descurando uma linguagem mais próxima da que é usada no dia-a-dia pelas camadas mais jovens e procurando formas actuais (especialmente no primeiro caso) de divulgação das suas obras.

A transição do séc. XX para o séc. XXI testemunha também o aparecimento duma literatura leve (é frequentemente chamada de "light"), fenómeno algo recente em Portugal mas desde há décadas bastante comum noutras latitudes (com designações como, por exemplo, "literatura de aeroporto") e que, se bem que recebida, no mínimo, com reticências por parte dos círculos mais literatos, trouxe, pelo menos, a vantagem de ter conseguido atingir assinaláveis volumes de vendas. Se os recém-conquistados leitores decidirão "atravessar a ponte" e alcançar uma outra margem literária, formal e ideologicamente mais complexa, é uma questão que fica em aberto para o novo século.

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